O mito de Cora

, por Alexandre Matias

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A banda curitibana Cora anuncia seu primeiro álbum, El Rapto, ao assumir uma nova sonoridade a partir do single “Tulpa”, que elas antecipam em primeira mão para o Trabalho Sujo. É a primeira vez que elas compõem e cantam em português – e, como o nome não deixa de entregar, a letra tem inspiração lyncheana: “Veio do Twin Peaks sim, sempre muito presente nas nossas criações e performances”, explica uma de suas mentoras, a vocalista Kaíla Pelisser. “Quando descobrimos toda a simbologia da Cora, usávamos samples das intros da Log Lady nos shows. Já a Tulpa foi um nome que caiu como uma luva pra essa música, que fala exatamente sobre ser tomado por um alterego que se materializa e toma conta da situação, deixando seu ‘verdadeiro’ eu preso, só assistindo. Esse tipo de distúrbio de despersonalização é bem comum que seja engatilhado por uso de alucinógenos, o que é um paralelo mais uma vez com o mito da Cora, que estava colhendo narcisos ao ser raptada – os narcisos teriam deixado ela doidona e suscetível ao rapto e à cisão dela em duas, Cora e Perséfone.”

Kaíla continua, se aprofundando sobre o mito grego que batizou a banda: “Essa alegoria criada pelos mitos e o que eles simbolizam levam muita coisa que está incrustada na nossa cabeça e a gente nem sabe de onde vem. Foi muito louco descobrir quem era a Cora da mitologia e o que ela significava, foi a verdadeira epifanóia. Ela simboliza exatamente essa busca por entender mais profundamente o que tem dentro, da verdade, da auto-aceitação e da aceitação do outro como ele é, da consciência das próprias limitações e dessa dualidade que acontece no processo de amadurecimento. Você tem um pé cá, outro lá, várias vezes se orgulha da autossuficiência e da própria capacidade, e outras vezes fraqueja e acaba cometendo os mesmos erros de sempre.”

“Quanto mais a gente pesquisa sobre esse mito mais ‘coincidências’ com o nosso trampo vamos achando: ao cheirar a flor, que teria agido como um narcótico – narciso e narcótico tem o mesmo radical grego, a palavra narkés, que significa entorpecido -, ela teria ficado vulnerável à captura”, continua a guitarrista Katherine Zander. “Encontramos muitas coincidências com o Twin Peaks também, por um tempo usamos a Log Lady como nosso arquétipo: louca porém realista e sábia. Tem uns lances com o chão preto e branco também e outras surpresas que você vai encontrar no álbum que foram diretamente inspiradas na série.”

A nova fase da banda chega com uma nova sonoridade, mais obscura e triste que o indie pop com guitarras do EP Não Vai Ter Cora, um dos grandes lançamentos do ano passado. “As músicas que lançamos ano passado no single já são muito antigas, de 2013, 2014. Demoramos muito no processo de gravar e lançar”, explica Kathe. “Já as músicas do disco novo são de 2017/ 2018. Então essa transição foi bem progressiva até.” “Já estávamos caminhando pra chegar nessa sonoridade, que seguiu o mesmo conceito que pensamos para a concepção do disco: o rapto da Cora, símbolo da inocência, e a entrada dela no mundo obscuro do inconsciente. O estalo foi mesmo a descoberta e a vontade de explorar o próprio nome da banda, que vem desse mito grego da Cora, que ao ser raptada se transforma em Perséfone e passa a viver um período no inferno e outro junto da mãe na terra/Olimpo. Seguindo o conceito, pensamos que o som também tinha que parecer mais escuro e denso, com elementos que expressassem esses momentos de inferno e céu, morte e ressurreição, que é todo bem carregado e dramático”, conclui Kaíla.

Pergunto se esta nova fase está ligada à redescoberta do sagrado feminino que tem acompanhado o feminismo do século 21. “Essa questão do sagrado feminino passa perifericamente ao conceito do álbum, então é difícil de responder”, responde Kathe. “Mas com base nas coisas que temos observado, os arquétipos femininos e o que eles representam ganham mais força quando as energias masculinas estão muito intensas, como momentos de guerra e terror. E levando em consideração que estamos passando por um retorno do conservadorismo e totalitarismo, faz muito sentido a consequência de uma nova onda feminista para contrapor essa força masculinista.”

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