O meteorito de Arthur Decloedt
“Eu não lembro bem quando foi a primeira vez que eu ouvi falar do Bendegó, mas em 2018 após o incêndio do Museu Nacional, eu ‘tropecei’ em um artigo de ciência na internet, meio pedagógico, bem simples na verdade, que contava a história do Bendegó desde o momento em que ele foi encontrado no interior da Bahia até a sua transferência ao Museu Nacional, e fiquei fascinado”, lembra o músico e compositor Arthur Decloedt, que está lançando um álbum dedicado ao mais famoso meteorito a cair em nosso território. “Logo depois li outro artigo sobre como a Imperatriz Leopoldina havia assinado a independência do Brasil 5 dias antes do 7 de setembro, no dia 2 de setembro, em seu Palácio Imperial, que veja só, veio a se tornar anos depois o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. Foi ai que eu percebi essa coincidência absurda: o incêndio de 2018 do Museu Nacional ocorreu no mesmo dia 2 de setembro que a Imperatriz Leopoldina assinou a Independência do Brasil, exatamente no mesmo local. Imagine todo simbolismo desse fato histórico: uma personagem interessantíssima da nossa história, apelidada de ‘Imperatriz Cientista’, em grande parte esquecida por ser mulher, que assinou a independência do Brasil na mesma data do terrível incêndio, 196 anos depois. A presença insólita dessa gigante pedra extraterrestre no Museu falava por sí e naturalmente se tornou para mim central no que viria a ser esse álbum. Bendegó é um sobrevivente milenar que resistiu e segue resistindo a tudo, persistente em sua existência material e profundamente misterioso em relação a sua história. Quantos anos tem? Quando aterrissou no Brasil? Por quantos anos ainda existirá?” Arthur mostra a peça O Meteorito Bendegó, que será lançada nesta sexta-feira, em primeira mão aqui no Trabalho Sujo.
Ouça abaixo:
A ideia de compor uma obra sobre o meteorito vem justamente deste trágico incidente. A referência inicial de Arthur foi a peça “A História do Soldado”, de Igor Stravinsky, de 1918. “Essa peça é exatamente uma história encenada por atores com música, para mim a perfeita definição de uma fábula musical”, explica o compositor, que também é um dos integrantes do grupo Música de Selvagem, que misturou as áreas com que mais lida na música atualmente: “a improvisação, a música clássica, a trilha sonora, a música eletrônica e a canção.” “Esse aspecto de fábula da ‘Historia do Soldado’ do Stravinsky, foi o ponto de partida para o formato narrativo do álbum, embora o que fizemos não seja literalmente uma fábula, fez muito sentido para nós trazer um pouco de leveza para essa história e buscar a clareza fundamental das fábulas.”
A peça foi gestada ao lado da escritora Leda Cartum, que também faz o podcast Vinte Mil Légias. “Ela abraçou o projeto completamente e foi uma grande parceira ao longo desses quatro anos, mergulhou em uma pesquisa sobre meteoritos, história do Brasil, até achou um conto escrito pelo Machado de Assis sobre o Bendegó, e escreveu brilhantemente a história que é interpretada pela Julia Ianina e o Marat Descartes no álbum”, lembra Arthur.
As coincidências entre números foram cruciais para o desenvolvimento da obra, quando Arthur dividiu o disco em duas faixas: “‘1820’, ano do primeiro incêndio, provocado pelos naturalistas Spix e Martius ainda no leito do Rio Bendegó, e ‘2018’, ano do incêndio do Museu”, explica. “Como são anagramas, eu quis que a duração das faixas fossem cruzadas, ou seja ‘1820’ tem 20 minutos e 18 segundos e 2018 tem 18 minutos e 20 segundos”, explicando que este formato fez com que ele compusesse também um um prólogo e um epílogo para a obra.
“Apesar da ideia ter começado antes da pandemia, ela ganhou muito mais importância para mim depois dela”, continua Arthur. “Se o caos pandêmico por um lado atrasou muito o projeto e, na verdade, quase o comprometeu, viver essa verdadeira guerra em que o negacionismo à ciência causou uma tragédia sem precedentes na nossa história, me deixou ainda mais obstinado em concluí-lo.” Arthur, no entanto, não tem planos para executar este meteorito ao vivo. “Apesar de se tratar de um produto fonográfico bem átípico, que pode até ser mal compreendido enquanto álbum musical e ser facilmente confundido com um podcast ou audio book, acho que seria interessante ve-lô no palco, até porque ele tem um apelo cênico muito forte”, conclui.
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