O legado milenar dos Tincoãs

, por Alexandre Matias

Só a notícia que existe um disco novo inédito dos Tincoãs que nunca foi lançado já seria suficiente para segurar o fôlego de qualquer um que goste de música. Mas não para por aí: esse disco, engavetado há quarenta anos, finalmente verá a luz do dia, trazendo Dadinho (violão), Mateus Aleluia (atabaques) e Badu (agogô e ganzá) acompanhados do Coral dos Correios e Telégrafos do Rio de Janeiro, um projeto que foi idealizado pelo produtor Adelzon Alves, que trabalhava com o grupo. O primeiro aperitivo de Canto Coral Afrobrasileiro, que será lançado ainda este semestre, é o single “Oiá Pepê Oiá Bá”, que chega às plataformas digitais nesta quinta-feira, mas já dá pra sentir um gostinho em primeira mão aqui no Trabalho Sujo.

Ouça aqui.

Adelzon, que além de trabalhar com o trio também produziu e lançou nomes como Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Martinho da Vila, Alcione e João Nogueira, explica que a importância deste disco é muito maior do que para a própria carreira dos Tincoãs. “Os Tincoãs começaram como qualquer trio vocal de antigamente, como Trio Irakitan, Trio Nagô, Trio Marayá, cantando boleros, mas num dado momento eles resolveram se dedicar à tradição que conheciam de sua cidade natal, Cachoeira, na Bahia, que é uma das cidades mais ricas de cultura negra do país”, me explica por telefone. “É lá que fica o mais antigo templo de cultura negra do Brasil, que é do tempo da escravidão, chamado Roça do Ventura”, prossegue o produtor, explicando que quando foi gravar com o trio, teve que certificar-se de que eles não estavam gravando músicas de outros autores sem conhecê-los.

Até que conheceu um antropólogo nigeriano que, ao ouvir aquelas canções, garantiu que eram músicas gravadas em iorubá arcaico e que vinham de uma tradição milenar. “A antropologia oficial das universidades diz que o homem começou a escrever, pintar nas paredes e a tecer alguns fragmentos de palavras há cerca de 100, 150 mil anos, mas na Nigéria existe um caldo de cultura que tem 250 mil anos”, continua o produtor, citando o pesquisador, que conheceu há cinquenta anos, que atestou que até parte das palavras que o trio cantava não fazia mais parte do iorubá moderno. “Esses cantos têm essa idade e são cantados iorubá arcaico, que não é nem mais falado”, completa.

Adelzon também explica que essa é uma tradição imaterial africana. “O Donga, aquele que tocava com o Pixinguinha e com o João da Baiana, tinha uma tese que ele chamava de Três Trezentos, quando ele falava que o Brasil foi o país que soube melhor aproveitar a herança que recebeu da África, ao herdar três tambores e transformar em trezentos, que são os instrumentos da bateria da escola de samba”, continua o produtor. Mas esses cantos não são reconhecidos como parte dessa tradição, reparo proporcionado pelos Tincoãs e reforçado no lançamento deste disco inédito. “É um disco que ultrapassa muito a importância de um disco artisticamente bem feito, porque esse canto coral é o gospel norte-americano, aquele que é cantado nas igrejas, mas que não foi tratado desta forma no Brasil. Resolvemos gravar neste formato de canto coral pra mostrar que aquele aquele canto que parece simples e humilde dos terreiros tinha a grandeza, a dignidade e a importância do canto coral universal. São os spirituals, que são a base do gospel, que são a base do jazz. A tradição do canto negro no Brasil não teve essa importância que teve nos Estados Unidos, foi isso que resolvemos fazer neste disco que está sendo finalmente lançado”.

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