O Homem Duplo

, por Alexandre Matias

Essa saiu na Folha de hoje

De volta para o futuro

The two hemisphere in my brain... are competing?

Dirigido por Richard Linklater e com Keanu Reeves, “A Scanner Darkly” é baseado em um insólito conto de Philip K. Dick

Filme estreou no mês passado nos EUA; projeto de uma cinebiografia do escritor americano está em andamento, diz sua filha

O maior atentado terrorista que não aconteceu, uma facção criminosa seqüestra um jornalista para que se veicule em rede nacional um comunicado sobre direitos dos presidiários ou o lento genocídio no Líbano tratado como um assunto corriqueiro em capas de jornal. A realidade atual parece assombrada pelas projeções fatalistas dos livros de Philip K. Dick (1928-1982), cuja influência permanece cada vez mais presente.

E – tudo bem, exagero –também o fato de um filme do diretor de “A Escola do Rock” estrelado por Keanu Reeves, Wynona Ryder, Woody Harrison e Robert Downey Jr. ainda não ter previsão de estreiar nos cinemas brasileiros, cogitado até mesmo para partir direto para o DVD, sem projeções na tela grande.

Este parece ser o triste fim do inacreditável “A Scanner Darkly”, dirigido por Richard Linklater, que estreou no mês passado nos EUA, sem mover ponteiros consideráveis nas bilheterias mas ganhando altas notas da crítica. Baseado num dos livros mais insólitos do autor – “O Homem Duplo”, que só tem versão em português em Portugal – o filme é inteiramente feito usando a técnica da rotoscopia, em que atores são filmados e transformados em animação a partir de seus movimentos originais. Linklater já tinha usado esta técnica em seu pequeno clássico “Waking Life”, uma animação cabeçuda em que ponderava sobre o sentido da vida a partir de diálogos de pessoas diferentes em lugares diferentes.

“Nós nos envolvemos muito para trazer essa história para a tela”, explica Laura Leslie, 36, filha mais velha do escritor. “Eu e minha irmã Isa tivemos acesso ao roteiro original de Ric, mas antes de concordarmos em confiar a história para ele, sentimos que precisávamos conhecê-lo pessoalmente. Como o livro é muito autobiográfico, tínhamos que saber se a sua visão era fiel ao texto”.

“Ficamos muito satisfeitas com o filme”, continua Laura, responsável pelo espólio do escritor. “Isa expressa isso ainda melhor quando ela diz que o livro foi escrito como uma carta de amor do nosso pai aos seus amigos que se perderam com o uso de drogas. Ric o adaptou lindamente. Ele também captou o humor maravilhoso entre os personagens principais no começo do livro”. Este humor é valorizado pelos diálogos entre os personagens de Robert e Woody, que se empolgam em diálogos chapados sobre assuntos diferentes, atores que têm seu próprio envolvimento com drogas – o primeiro foi para a cadeia graças a drogas pesadas, o segundo é um conhecido ativista pró-maconha.

“Scanner Darkly” se passa num futuro bem próximo (daqui a sete anos), quando o governo monitora as ações de todos os cidadãos e usa a dependência em drogas pesadas – em especial, a “substância D”, droga futurista em cápsulas que permeia todo o filme. No meio de tudo isso, temos o personagem de Keanu Reeves – um policial viciado que é posto para vigiar seus próprios amigos – revivendo seu Neo de “Matrix”, trilogia que, apesar de não citar, vinha coberta de referências à obra de Philip K. Dick.

Mas o Neo de K. Dick não sabe se ele é Neo ou Thomas Anderson, não tem certeza de qual realidade em que ele realmente vive (é um amoroso pai de família, um drogado ou um policial?) e mantém uma constante guerra entre os hemisférios direito e esquerdo de seu cérebro.

Pelo filme, alguns dos temas favoritos do escritor, como a fragilidade ao determinarmos o que é real, o estado-policial que controla tudo, o tráfico de drogas como justificativa para a paranóia generalizada, tanto individual quanto institucional. Itens de ficção científica que K. Dick usava para divagar sobre a natureza da existência e da realidade, o propósito da vida, o sentido de tudo. Filosofava fingindo escrever histórias futuristas.

“Certamente há muitos aspectos da vida atual que ele já estava preocupado e escreveu sobre isso no começo dos anos 50”, continua Laura. “O que ele pensou que era paranóia naquela época infelizmente se tornou rotineiro hoje em dia. Eu poderia listar dez coisas que apareceram em seus livros que agora são comuns, como homens-bomba, no conto “Impostor”; a internet, num livro inédito chamado “The Acts of Paul”; espionagem doméstica, que era um tema comum em vários livros, entre outros…”

Além de “A Scanner Darkly”, que deve sair em DVD nos EUA no final deste ano, outros projetos retomam cada vez mais o nome de K. Dick. Além de dois livros saindo no Brasil (“O Homem do Castelo Alto” e “Valis”, veja ao lado), ainda está sendo produzido o filme “Next”, baseado no conto “Golden Man”, com Nicholas Cage, Jessica Biel e Julianne Moore. Adaptado para o cinema pela primeira vez no ano de sua morte (“Blade Runner”), a obra de K. Dick cada vez rende mais adaptações para o cinema, como as recentes “Minority Report” e “O Pagamento”.

“Minha esperança é que estas adaptações façam com que as pessoas descubram o trabalho do meu pai e venham conhecê-lo em livro”, continua Laura; “Encontrei muitas pessoas que falaram para mim que foram apresentadas à obra de Philip K. Dick graças a ‘Blade Runner’”. Ela e a irmã Isa acabaram de constituir a empresa Electric Shepherd (Rebanho Elétrico, em referência ao título original do livro que originou o filme “Blade Runner” que, em inglês, perguntava se os andróides sonham com ovelhas elétricas), dedicada a supervisionar adaptações dos livros de PKD – mas elas não adiantam os títulos com os quais estão trabalhando.

Mas Laura comenta a anunciada cinebio sobre seu pai, com Bill Pullman vivendo o escritor. “Não estamos envolvidas com este projeto, nem ninguém que conheceu ou escreveu sobre o meu pai. Tememos que esta biografia possa focalizar apenas nos componentes sensacionalistas da sua vida”, lamenta.

“Isso fez com que concluíssemos que nós devemos ser a força-motriz por trás de um filme mais compreensivo sobre o nosso pai. Desde o ano passado, estamos trabalhando em uma cinebiografia de nosso pai com cuidade e de forma seletiva, trabalhando com pessoas em Hollywood que reconhecem o trabalho dele e em quem podemos confiar para lidar com as complexidades de sua vida. Acreditamos termos encontrado parceiros sensíveis e cuidadosos em Paul Giamatti (de “Anti-Herói Americano” e “Sideways”) e a na Anonymous Content (produtora de filmes como “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” e “Quero Ser John Malkovitch”)”, revela.

“O Homem do Castelo Alto” e “Valis” chegam às livrarias até o final do ano

Se o filme não chega ao Brasil, o mesmo não pode se dizer sobre os livros. A editora Aleph, responsável pelo relançamento no Brasil de clássicos da ficção científica como “Neuromancer” de William Gibson e “Laranja Mecânica” de Anthony Burguess, lança dois livros de K. Dick ainda este semestre.

O primeiro deles chega às livrarias no começo de setembro e é uma de suas obras-primas. “O Homem do Castelo Alto”, publicado em 1962, se passa no começo dos anos 60 em um mundo em que o Eixo ganhou a Segunda Guerra Mundial e dividiu os Estados Unidos em duas metades: a Costa Leste ficou com a Alemanha e a Costa Oeste com o Japão. Outras conseqüências da vitória nazista garantem o extermínio dos povos africanos, a transformação do Mediterrâneo em lavoura e a colonização espacial.

Mas a maior parte da ação acontece na Los Angeles orientalizada, em que um oficial do exército japonês e um judeu fugitivo têm seus caminhos estranhamente cruzados à medida em que um é fascinado pela memorabilia americana da primeira metade do século e o outro é um falsificador destes itens. Acrescente à história um misterioso escritor – o personagem do título – que lançou um livro clandestino em que fala de um mundo em que os Aliados venceram a Guerra e um matador de aluguel posto em seu encalço, discussões sobre autenticidade e cópia e personagens guiados pelo I-Ching (como era o próprio autor durante a escrita do livro) e, voilá, um clássico.

“Valis”, o segundo livro de K. Dick a chegar nas livrarias este ano, não é propriamente ficção. O livro foi escrito após um surto esquizofrênico (ou uma revelação divina, ele mesmo nunca soube responder) que aconteceu com o escritor no meio dos anos 70, quando ele passou dois meses achando que habitava duas épocas diferentes ao mesmo tempo e parecia ter descoberto o sentido da vida.

Escritor da geração seguinte à época de ouro da ficção científica (de nomes como Arthur C. Clarke e Isaac Asimov), K. Dick escrevia constantemente e fazia livros para pagar as contas, se submetendo a sessões de escrita que duravam dias e eram abastecidas com comprimidos e bolas para não dormir. Aliado ao fato de ter perdido a irmã gêmea no parto e a casos de esquizofrenia na família, o consumo de drogas o isolou e o tornou paranóico, levando, em última instância, à visão que teve na década de 70.

“Valis” (1978) é um calhamaço que funciona, ao mesmo tempo, como tentativa de explicar o que aconteceu naquele período e de exorcizar fantasmas que o acompanhavam desde então. O livro nunca foi publicado no Brasil, ao contrário de “Castelo Alto”, que foi publicado nos anos 60, mas está fora de catálogo.

Philip K. Dick no cinema
Cinco filmes baseados na obra do autor

“Blade Runner” (1982), de Riddley Scott, com Harrison Ford e Rutger Hauer.
Um exercício de estilo fantasiado de divagação sobre a existência, “Blade Runner” não apenas extinguiu o futuro clean de “2001” como inventou o cyberpunk, como estética.

“O Vingador do Futuro” (1990), de Paul Verhoeven, com Arnold Schwarzegger e Sharon Stone.
Douglas Quaid é um pai de família que sonha em ser um agente secreto salvando Marte da destruição ou é um agente secreto que apagou a própria memória para ser apenas um pai de família?

“Minority Report” (2002), de Steven Spielberg, com Tom Cruise e Max Von Sydow.
E se um policial, cuja missão é prender antecipamente assassinos antes de eles cometerem um crime, cometer um crime? Quem o prende?

“O Pagamento” (2003), de John Woo, com Ben Affleck e Uma Thurman.
Michael Jennings é um engenheiro que desmonta lançamentos da concorrência e os remonta para seu chefe – mas para isso, ele sempre deleta o que fez, para não vender para ninguém. Até que um dia, ele começa a ser perseguido – sem saber porquê.

“A Scanner Darkly” (2006), de Richard Linklater, com Keanu Reeves e Wynona Ryder.
Uma fantasia que se camufla com partes de 4 mil pessoas diferentes (só assistindo!), insetos imaginários, realidades paralelas, drogas sintéticas e um final lindamente phildickeano, com monólogo mea culpa e a poesia da resistência. Espetacular – e isso sem contar o visual.