O Drama de 2019

, por Alexandre Matias

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“Quantos negros tem aqui? Quantos índios tem aqui? Quantos trans tem aqui? Quantos gays? Quantas minas?”, pergunta Tantão ao final de “Nação Pic Pic”, que encerra seu segundo disco com Os Fita, Drama, lançado nessa quinta-feira. Motivado pelos acontecimentos recentes na vida política brasileira, o trio liderado por Carlos Antonio Mattos, nome de batismo de metade da crucial dupla de pós-punk carioca dos anos 80 Black Future, foi gravado durante o processo eleitoral do ano passado e isso inevitavelmente contagiou todo o trabalho, a partir do título. “Drama é um disco totalmente diferente em termos de processo”, Abel Duarte, um dos produtores d’Os Fita, contrapõe o novo disco a Espectro, o disco de estreia do trio, um dos melhores de 2017. “Apesar da estética das músicas guardar alguma semelhança com as músicas de Espectro, ele surge de um processo criativo totalmente diferente. Pra começo de conversa já sabíamos que estávamos fazendo um disco, já tínhamos o nome Drama e todo um imaginário em torno desse conceito.”

O Drama do título refere-se ao que está acontecendo no Brasil. “Acho que esse ano e meio que separam os dois discos – podemos pensar em dois anos e meio se levarmos em conta a data de gravação do Espectro – foram um turbilhão de acontecimentos significativos no Brasil e no mundo”, continua Abel. “O Tantão é muito sensível a tudo isso e acho que a antena dele captou um monte de coisa no ar e traduziu a sua maneira nessas letras. Elas trazem muitas referências da violência que o capitalismo avançado aplica no corpo do povo. Aqui no Brasil, pais de ‘terceiro mundo’ – dividido – subdesenvolvido, colônia, essa violência é praticamente inescapável, principalmente para um cara tipo o Tantão, que transgride tudo sempre. Isso tudo assumiu uma forma muita clara e direta nos últimos anos – pós-golpe – quando todos os últimos resquícios de uma certa segurança social e todo e qualquer mecanismo de proteção dos trabalhadores e principalmente das ‘minorias’ passaram a ser destruídos e atacados diretamente pelo próprio estado. Ele sente isso de forma muito própria e todas as letras trazem esses dramas, tanto os seus dramas subjetivos, quanto os dramas da política institucional e os debates e pautas de políticas identitárias. Não tem como não se afetar por isso tudo, o disco foi gravado durante o processo eleitoral, essas discussões de racismo, homofobia, Bolsonaro, Trump, comunismo, as terras indígenas, isso tudo estava muito no imaginário coletivo, nas ruas, nas redes.”

“Tem uma coisa interessante também que aconteceu ao longo desse tempo que foi a convivência que tivemos, super intensa, trabalhar com o Tantão, viajar, ele chegar na tua casa louco quando você menos espera, várias farras, loucuras e tal, acho que tudo isso serviu pra gente chegar nesse lugar do Drama”, continua o produtor. “Tudo é muito dramático. Ele de uma forma muito inteligente pegou essa ideia e transformou em sete letras que trazem essa carga dramática muito forte.”

“Quanto às bases, eu e Cainã (Bomilcar, o outro Fita) já trabalhamos há um tempo juntos e isso fez nascer certas linguagens/processos que são próprias dessa parceria e está nos dois discos. O uso abusado dos samples, das distorções, a coisa da colagem, da edição, dos loops. Agora, sem dúvida, esse projeto com o Tantão, fez a gente abrir o ouvido e prestar bastante atenção em muita coisa nova para nós em termos de música eletrônica de pista, principalmente das periferias, então acho que o footwork, grime, o funk, o 150, o rap, kuduro e suas derivações, dub, todos esse guarda-chuva sonoro aí mexeu muito com a gente nesses últimos tempos. Talvez não como referência direta, mas como uma coisa que estamos sempre ouvindo e trocando.”

Abel gosta de fazer a separação processual entre os dois discos, sendo que o primeiro nem foi pensado como um disco. “Penso o Espectro como um disco que nasceu de um processo de edição/colagem no ProTools. Depois da gravação de uma sessão de improviso – que não tinha a pretensão de virar disco – ficamos um ano nesse processo. Pouquíssimas coisas foram gravadas depois. Os instrumentos eram mais toscos, não gravamos no grid, não tínhamos os BPMs anotados direito, as coisas haviam sido gravadas somadas em poucos canais – isso tudo tornou o processo as vezes um pouco difícil, o material tinha muitas limitações, obviamente dessas limitações surgem muitas coisas interessantes. As letras como são, também surgiram assim, muita coisa foi cortada e as estruturas, as partes, o texto também surgiram na edição.”

“O processo do Espectro foi mais guerra e talvez por isso mais experimental, foi surgindo ali, sem pressa, do material que tínhamos ao longo de um ano até entendermos que tinha um disco. Soa mais lo-fi, mais sujo, mas acho muito legal o que surgiu do material, o que era a gravação e o que virou o disco no final”, Abel segue a comparação. “Drama foi bem mais objetivo, planejado, feito muito mais rápido. Soa muito hi-def, apesar da sujeira, das distorções, os elementos de bateria tem muito mais peso, a voz ficou muito mais bem gravada, a performance do Tantão foi mais calculada por ele. Os beats são mais complexos, os BPMs mais acelerados, apontam mais pra música eletrônica de pista. O disco é mais certeiro como um todo, tem menos sobras em todos os sentidos. Olhando para os dois discos, acho muito interessante ver que criamos juntos um jeito de produzir uma música eletrônica “pop” com métodos e processos muito próprios, muito específicos do projeto, que fazem as coisas funcionarem e acontecer apesar das loucuras e limitações técnicas e musicais de cada um – isso vale também para os shows.”

As letras de Tantão (sintetizadas em títulos de músicas como “Vai Não Volta”, “O Sinistro”, “Adoração de Ídolos” e “Música do Futuro”) e as bases processadas d’Os Fita criam uma sensação de desconforto e de falta de pertencimento que ecoa outras referências musicais deste século. “Acho que o Cainã colocou de maneira perfeita, somos tendência, mas acho que sempre vamos soar estranho no contexto da música pop”, continua Abel. “Além do mais não consigo identificar claramente qual seria ‘a’ tendência. Acho que temos várias por aí, milhares. Realmente não consigo muito associar esse projeto a outras coisas. As nossas músicas não seguem um estilo, um gênero, elas conversam com muitas coisas, são ecléticas, diferentes entre si também. Não apontam com certeza pra nenhum lugar, não é rap, não é rock, não é techno. Alguém em Porto Alegre me falou que flagrou uma discussão num grupo de rap no Facebook sobre se Tantão e Os Fita era rap ou não, tenho quase certeza que não é, mas sei lá. Fiquei viajando que Drama também pode ser lido como um gênero literário, teatral, cinematográfico. Inauguramos o Drama como gênero musical, uma música do conflito, da ação, da encenação. Isso é obviamente uma zueira e acho que não temos a pretensão de ‘fundar’ gênero musical nenhum, talvez destruir alguns, mas acho que uma leitura interessante pra se fazer. A receptividade que o Espectro teve me surpreendeu muito. Acho que o público, essa grande massa cinzenta amórfica, se transformou um várias bolinhas dessa massa e daí tem umas três ou quatro bolinhas dessas, que podem se identificar e gostar do disco. Acho muito difícil fazer essa leitura do próprio trabalho, acho que é uma tarefa para os críticos.”

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