No coração da máquina

, por Alexandre Matias
Foto: Fábio Bitão

Foto: Fábio Bitão

Guizado antecipa em primeira mão para o Trabalho Sujo “Cidade Neon”, o segundo single de seu mais novo álbum, O Multiverso em Colapso, que ele desenvolveu na temporada que fez no Centro da Terra em maio deste ano e que será lançado na semana que vem. Ele também me chamou para escrever o release do disco, que reproduzo abaixo.

Não lembro quem falou primeiro, mas tanto Guizado quanto Miranda me avisaram mais ou menos na mesma semana que estavam começando a trabalhar juntos. O trompetista já é um dos principais nomes no Brasil em seu instrumento e o dividiu palco com alguns dos principais nomes da nossa música neste século, além de ter desenvolvido uma sólida carreira solo pop e instrumental, artefato raro na paisagem musical daqui. Imaginar que ele entregaria um capítulo de sua carreira a um dos grandes produtores da história da nossa indústria fonográfica abria inúmeras possibilidades sonoras. Um universo em expansão – multiversos!

Duas cabeças intensas e prolíficas, Guizado e Miranda bateram de frente para entender o rumo que iriam tomar juntos. Nesta colisão, o produtor gaúcho puxou o músico paulistano do free jazz e do espaço sideral para trazê-lo de volta à Terra. Embarcaram em uma jornada para um passado que ambos viveram e curtiram: os anos 80 que viram a formação do músico e do produtor em suas respectivas cidades e áreas de atuação.

Com isso, as referências contínuas das duas cabeças começaram a jorrar uma sobre a outra: discos, filmes, quadrinhos e livros daquele período acabaram dando uma tônica de ficção científica completamente diferente da viagem interestelar que Guizado havia feito em seu disco anterior, Guizadorbital. Juntos, partiram para um viagem no tempo que lhes valeu uma completa invertida na sonoridade do músico.

Este ainda vinha acompanhado por uma banda magistral: Richard Ribeiro na bateria, Meno Del Picchia no baixo, Allen Alencar em uma guitarra, Regis Damasceno na outra e Zé Ruivo nos teclados talvez seja um dos melhores conjuntos instrumentais de São Paulo, cada um com suas referências e backgrounds que se fundem em uma sonoridade pesada e límpida, livre e pop, agressiva e reluzente. Encontrei com Guizado no início do ano e ele me falou sobre os rumos do novo disco, que vinha com influência de quadrinhos apocalípticos dos anos 80 e deveria se chamar O Multiverso em Colapso. No mesmo encontro, o convidei para tomar conta de uma das temporadas de segunda-feira no Centro da Terra, espaço de resistência cultural escondido no bairro paulistano do Sumaré, em que atuo como curador de música, dando-lhe a oportunidade de concluir o processo que estava realizando no disco antes de sua gravação.

Entre o encontro e a temporada, veio a morte de Miranda, sobre quem havíamos conversado naquele papo no início do ano. Guizado me contou que o produtor gaúcho já andava mal de saúde e só conseguia acompanhar aquela etapa do processo em conversas remotas, mas sua influência paira por todo disco O Multiverso em Colapso, que leva as duas assinaturas na produção e foi gravado em uma das semanas de maio de 2018, no meio do mês em que celebrava o final daquele processo na temporada batizada com o nome do disco.

Nas apresentações de segunda-feira, Guizado recebeu a presença de nomes ilustres da nova música brasileira, como o rapper Edgar, o grupo instrumental Ema Stoned, o guitarrista Kiko Dinucci, o baterista Maurício Takara, o guitarrista Júnior Boca, além de outros que acabaram entrando nas gravações do próprio disco, como Ava Rocha, Sandra Coutinho, Rômulo Froes, Lucas Santanna, Thiago França, Angela Merkel e Negro Léo.

O resultado é um disco noturno e paranoico, pop e frenético – e com muitos vocais. É o disco de Guizado com mais canções tradicionais, incluindo refrões que poderiam estar no rádio. Por todo o percurso, Guizado mostra o rumo com seu trompete como se ele fosse um cursor de um velho computador, abrindo programas e pastas de passados remotos que ainda se mostram atualíssimos. Os timbres das guitarras são prateados ou néon, como o caminho traçado pelo trompete, e brilham num escuro que não para de ferver composto por uma cozinha por vezes fria e robótica, por outra esparsa e vulcânica.

No meio de tudo, o instrumento de Guizado funciona como holofote para sua própria voz (que canta em “Sobre Deuses e Demônios”, “Sonho Delírio”, “Tengo Piel”, “Coração Caverna” e no primeiro singfle, “Modern Fears”) e para as de Negro Léo, Ava Rocha e Sandra Coutinho, bem como para as presenças cortantes dos músicos de sua banda.

O Multiverso em Colapso é um passeio por um futuro que não aconteceu, em que carros voadores e jazz fusion coexistem com corporações sem rosto e vendedores de rua. Resvala pelos futuros tech noir de Blade Runner e cyberpunk de Akira, mas sem perder uma identidade brasileira, urbana e cerebral. Um robô que sonha ser uma pessoa – ou justo o contrário. É nesta zona intermediária que faz seu coração binário pulsar.

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