Sempre que Negro Leo se propõe a levar um disco para o palco, seu desafio não é simplesmente soar parecido ou reproduzir os fonogramas com a força da música tocada ao vivo, mas transformar uma obra sonora em um espetáculo vivo em que a participação do público possa ser menos que passiva e a interação entre audiência e artista capture a essência conceitual da peça musical registrada em disco. E assim foi feito quando levou o ótimo Rela – seu primeiro disco pós-pandêmico – para o palco do Sesc Pompeia neste sábado. Disco eletrônico composto sobre bases rítmicas do boi maranhense (de sua terra-natal – apesar de carioquíssimo, Leo nasceu na pequena Pindaré-Mirim, no estado mais nortista do nordeste brasileiro), Rela trata das novas formas de lidar com o amor e o sexo a partir da interação humana feita pelas plataformas digitais. Se apenas transposto para o palco, essa faixa sonora bebe tanto no trap, no R&B e na música eletrônica experimental, mas não limita-se ao som, indo desde o figurino do artista (blazer de lantejoulas sobre o torso nu) às paisagens geradas por inteligência artificial nos telões. E por mais que a presença dos produtores musicais Vasconcelos Sentimento, Eduardo Manso, Lcuas Pires e do diretor do show e técnico de som da noite Renato Godoy tenham sido cruciais para mexer com o público, a chave da noite era o próprio corpo de Leo, entregue a uma performance em escala gigantesca. Logo na segunda música, ele já havia se jogado na plateia e aberto uma roda no meio do povo para puxar pessoas aleatórias (ou não) para dançar a dois no meio do público, trouxe sua companheira Ava Rocha para dominá-lo e chicoteá-lo no palco, puxou primeiro uma coreografia no fundo do palco (convidando todos para “o maior flash mob que o Sesc Pompeia já viu”), depois um trenzinho que fez todos circularem pela comemoria para terminar rastejando pelo chão até o backstage. Uma aparição intensa e um espetáculo pós-moderno que não bastasse transpor a sensação de bailão do disco de uma forma extrassonora, ainda terminou trazendo Twin Peaks para o norte do Brasil, transformando o tema da série de David Lynch em um pagodão eletrônico e colocando a própria Laura Palmer (mais uma vez uma criação de inteligência artificial) dançando como se fosse uma bailarina de música pop nordestina, num remix inacreditável para a mais inesquecível melodia de Angelo Badalamenti rebatizada como “Davi do Lins”. Um devaneio físico coletivo memorável.
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Nesta segunda-feira, a Associação Paulista de Críticos de Arte reúne-se mais uma vez para escolher os grandes nomes do ano que passou e esta relação abaixo lista os 50 discos mais importantes de 2024 de acordo com o júri de música popular da Associação, da qual faço parte ao lado de Adriana de Barros (Mistura Cultural), Bruno Capelas (Programa de Indie), Camilo Rocha (Bate Estaca), Cleber Facchi (Música Instantânea), Felipe Machado (Times Brasil), Guilherme Werneck (Canal Meio), José Norberto Flesch (Canal do Flesch), Marcelo Costa (Scream & Yell), Pedro Antunes (Tem um Gato na Minha Vitrola) e Pérola Mathias (Poro Aberto).
Adorável Clichê – Sonhos Que Nunca Morrem
Alaíde Costa – E o Tempo Agora Quer Voar
Amaro Freitas – Y’Y
Bebé – Salve-se!
Black Pantera – Perpétuo
Bonifrate – Dragão Volante
Boogarins – Bacuri
Cátia de França – No Rastro de Catarina
Caxtrinho – Queda Livre
Céu – Novela
Chico Bernardes – Outros Fios
Chico César e Zeca Baleiro – Ao Arrepio da Lei
Crizin da Z.O. – Acelero
Curumin – Pedra de Selva
Duda Beat – Tara e Tal
Exclusive Os Cabides – Coisas Estranhas
Febem – Abaixo do Radar
Fresno – Eu Nunca Fui Embora
Giovani Cidreira – Carnaval Eu Chego Lá
Gueersh – Interferências na Fazendinha
Hermeto Pascoal – Pra você, Ilza
Ilessi – Atlântico Negro
Josyara – Mandinga Multiplicação – Josyara Canta Timbalada
Junio Barreto – O Sol e o Sal do Suor
Kamau – Documentário
Lauiz – Perigo Imediato
Luiza Brina – Prece
Maria Beraldo – Colinho
Milton Nascimento & Esperanza Spalding – Milton + Esperanza
Ná Ozzetti e Luiz Tatit – De Lua
Nando Reis – Uma Estrela Misteriosa
Negro Leo – RELA
Nina Maia – Inteira
Nomade Orquestra – Terceiro Mundo
Oruã – Passe
Papangu – Lampião Rei
Paula Cavalciuk – Pangeia
Pluma – Não Leve a Mal
Pullovers – Vida Vale a Pena?
Samuel Rosa – Rosa
Selton – Gringo Vol. 1
Sergio Krakowski Trio e Jards Macalé – Mascarada: Zé Kéti
Silvia Machete – Invisible Woman
Sofia Freire – Ponta da Língua
Tássia Reis – Topo da Minha Cabeça
Taxidermia – Vera Cruz Island
Teto Preto – Fala
Thalin, Cravinhos, Pirlo, iloveyoulangelo & VCR Slim – Maria Esmeralda
Thiago França – Canhoto de Pé
Zé Manoel – Coral
Olha 2025 já chegando: a peça Avenida Paulista, idealizada, escrita e dirigida pelo dramaturgo Felipe Hirsch vai estrear em fevereiro no teatro do Sesi (onde ele mesmo montou Avenida Dropsie, do Will Eisner, há vinte anos) com a nata da atual música da cidade (Fabio Sá, Lello Bezerra, Negro Leo, Roberta Estrela D’Alva, Thalin, Maria Beraldo, Arnaldo Antunes, Romulo Fróes, Tulipa Ruiz, Alzira E, DJ K, Jéssica Caitano, Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Maurício Pereira, Nuno Ramos, Rodrigo Campos e Rodrigo Ogi) é só um gostinho do ano que vem. Olha isso:
Que maravilha ver o Cine Joia cheiaço neste domingo para assistir ao show de lançamento do segundo disco dos Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, Música de Esquecimento. Com abertura do Jonnata Doll e os Garotos Solventes e participações do próprio Jonnata, Negro Leo, Vítor Araújo e Felipe Vaqueiro (vocalista da banda Tangolo Mangos, tocando gaita em “O Pato Vai Ao Brics”, do Leo), o show mostrou como o grupo está cada vez mais coeso musicalmente e como as músicas novas se contrapõem às antigas de forma radical, embora encarada pelo público como uma enorme saudação coletiva. Foi muito bom vê-los tocar a mesma “Idas e Vindas do Amor” que a Sophia me mostrou quando a banda ainda engatinhava cantada por um público completamente inebriado pela sensação indescritível de estar com sua banda favorita, transformando o grupo e os fãs numa pequena comunidade. Isso infelizmente foi posto à prova num incidente tenso, quando um fã subiu no palco e se atirou de cabeça no chão, sem tempo para alguém pudesse segurá-lo, fazendo-o perder os sentidos em um dos grandes momentos do show, quando tocavam “Delícia Luxúria”, do primeiro disco. E a banda, mesmo abalada (era possível ver nos rostos deles), foi precisa ao lidar com a situação: Sophia parou o show na hora, pediu para o público abrir espaço para que os médicos da casa pudessem retirá-lo e logo todos deixaram o palco avisando que dariam um tempo até saber como estava o fã. A banda voltou minutos depois com a notícia de que o enfermo estava melhor (tanto que até voltou para o público no final do show) e encerrou a apresentação tocando duas músicas além do previsto. Foi um momento crítico que podia comprometer ainda mais o show (e até a carreira do grupo), mas eles souberam lidar com a situação como muitos artistas com mais tempo de carreira talvez não soubessem, embora tenha encerrado uma apresentação que estava com a energia muito pra cima num tom acridoce. Felizmente foi só um susto.
Às vésperas de lançar disco novo, Ava Rocha ainda encontrou tempo para revisitar mais um clássico da música brasileira que completa meio século neste 2023 neste fim de semana, no Sesc Ipiranga: o sexto disco de Gal Costa, Índia, que viu ela reunir uma constelação de nomes da música brasileira de seu tempo (Duprat, Verocai, Dominguinhos, Toninho Horta, Luizão, Wagner Tiso, Chico Batera, Wagner Tiso) para cantar um repertório repleto de canções modernas e tradicionais, de Lupicínio Rodrigues a Caetano Veloso, passando por uma música do folclore português arranjada por Gil, Tom Jobim, Luiz Melodia, Jards e Waly, Tuzé de Abreu e a guarânia que batiza o disco. Ava reuniu uma banda à altura do desafio e surfou na intensidade daquela onda e o show conduzido pelo violão de Negro Leo e o teclado de Chicão Montorfano, ainda contou com a bateria de Alana Ananias, o baixo de Pedro Dantas e a guitarra de Fernando Catatau. O resultado daquela egrégora de entidades fez o disco soar tão moderno e ousado quanto em seu lançamento e Ava, no centro daquele altar, invocou a presença de Gal com toda sua graça e força. Foi lindo – e tomara que ela possa voltar a esse repertório de vez em quando.
A estreia do projeto Rotunda – formado pelos cariocas Bella, Thiago Nassif e Cláudio Britto – aconteceu em São Paulo pois os dois primeiros vieram morar na cidade depois do período pandêmico. Criado durante a turnê que Nassif fez pela Europa no ano passado, quando foi acompanhado de Bella e Cláudio como integrantes de sua banda, o trio mistura as origens musicais de cada um de seus integrantes a partir da conexão entre células de som – boa parte delas vindo do samba, devido à presença de Brito, percussionista analógico e digital. A guitarra de Thiago, que por vezes pega o violão, também cai no samba, mas em muitos momentos trabalha no território oitentista em que afiou seu instrumento, entre o noise, a música latina, o pós-punk e o funk. Ligando os dois vêm as texturas sonoras de Bella, que também deixa cair no suíngue quando puxa seu synth bass completando o trio – e ela inclusive chega a cantar. Este primeiro show que aconteceu na terça no Centro da Terra marca a reta final da gravação do primeiro disco do grupo e contou com a participação de Negro Leo, que começou tocando um piano dissonante no escuro e logo assumiu o violão para engatar essa improvável – e contagiante – roda, ou melhor, rotunda, de samba.