“My finger on your trigger”
Essa saiu na Folha de hoy:
Embora não tão incensado quanto discos mais emblemáticos como “Sgt. Pepper’s” (marco-zero da psicodelia), “Rubber Soul” (manual de boas maneiras do britpop) e “Abbey Road” (o réquiem do grupo), o disco que os Beatles lançaram há 40 anos aos poucos tem seu papel redefinido na história do pop. Antessala da fase estúdio do grupo de Liverpool, “Revolver” é revisitado em duas obras online, que ajudam a traçar o espectro de abrangência do disco ao mesmo tempo em que jogam novas luzes sobre sua influência.
O primeiro deles é “Abracadabra – The Complete Story of the Beatles’ Revolver”, escrito pelo funcionário do governo inglês Ray Newman nas horas vagas de seu trabalho oficial. “Escrevi isto por diversão”, conta no prefácio do livro. “Não escrevo sobre música profissionalmente nem sou um jornalista na área. A idéia surgiu depois de algumas perguntas que eu tinha sobre o disco que seus biógrafos sentem-se felizes em passar por cima. De onde Paul McCartney tirou a idéia de ‘Eleanor Rigby’? Quem ensinou George Harrison a tocar cítara? E quem deu LSD para John Lennon pela primeira vez?”.
Após uma pesquisa detalhista e aprofundada sobre os meses que antecederam o lançamento do disco de 1966, Newman não esperou editora: diagramou seu livro e o colocou para download gratuito no site http://www.revolverbook.co.uk.
“As pessoas parecem saber tudo que existe sobre ‘Sgt. Pepper’s’, que é meu segundo disco favorito dos Beatles, mas ‘Revolver’ ganha menos atenção no ‘Anthology’ (biografia oficial do grupo), por exemplo”, explica o escritor em entrevista, “eu amo este disco e não conseguia encontrar mais informações sobre ele, e era frustrante”.
“Comecei muito casualmente, tentando escrever um ensaio, mas comecei a descobrir questões o quanto mais pesquisava”, continua a explicação. “Minha grande dúvida era saber como quatro jovens que haviam composto ‘Love Me Do’ quatro anos antes criaram algo tão excitante, esquisito e cool como ‘Revolver’”.
Ray divide os novos interesses dos três Beatles da frente em grupos respectivos: Lennon descobre o ácido lisérgico, Paul McCartney se aventura pela alta cultura e movimentos de vanguarda, George Harrison traz a música indiana. Cada um destes universos é compartilhado em grupo, com “Tomorrow Never Knows” sendo um exemplo emblemático do modus operandi beatle da época: a idéia de Lennon era fazer uma música em um único acorde como os músicos indianos que já estavam inseridos na cultura londrina desde o início dos anos 60. McCartney trouxe os efeitos sonoros e loops de fita magnético que causam a estranheza na paisagem da canção, e Ringo Starr criou a batida trôpega e hipnótica que dá a sensação de tontura da música.
Newman conta que a primeira cítara de George – a de “Norwegian Wood”, do disco anterior – era quase decorativa, que Paul havia pensado em usar osciladores de freqüência em vez de um quarteto cordas em “Yesterday” e que John havia se contentado em viver uma vida de casado longe da vida cultural londrina.
Ainda juntos
No processo de pesquisa, Newman ficou pasmo ao descobrir que “Revolver” foi, de fato, o último disco dos Beatles como um grupo. “Foi surpreendente descobrir o quanto Lennon, McCartney e Harrison compartilhavam idéias na época. Eu sempre havia imaginado, por preguiça, que ‘Eleanor Rigby’ era uma canção de Paul e ‘Taxman’ era de George mas, na verdade, Paul disse ter sido influenciado pelo interesse de George em música indiana quando compôs ‘Eleanor’ e ‘Taxman’ tem letras de Lennon e um solo de guitarra de Paul. Eles ainda eram um grupo na época. E eram amigos!”.
“Sem contar a pura história sensacionalista que é a primeira noite com LSD: coelhinhas da Playboy, tentativas de orgia, perseguições de carro!”, brinca o autor, que já estuda propostas para publicar o livro fora do mundo virtual – por enquanto, só na Inglaterra.
Produtor inglês recria o álbum faixa-a-faixa
Além de “Abracadabra”, outro lançamento online mostra a longevidade de “Revolver” – mas aqui a nostalgia e pesquisa são deixadas para trás. “Revolved”, uma homenagem feita pelo produtor inglês Chris Shaw, busca referências em diferentes épocas para olhar para frente.
O disco – que, como o livro de Newman, só existe na internet – é uma releitura faixa-a-faixa do disco de 1966 à luz da cultura mashup. De cara, a faixa de abertura “Taxman” perde seu baixo e bateria originais para serem substituídos pelo instrumental de “New Pollution” do americano Beck. Mais à frente “I’m Only Sleeping” funde-se com “Glory Box” do Portishead, “For No One” é assombrada por “Close to Me” do Cure e “Tomorrow Never Knows” ganha ares fantásticos com um tema de John Barry para um filme de James Bond. “Revolved” pode ser encontrado no endereço http://revolved.blogspot.com/
“Mashup” é uma enorme subcultura de produtores caseiros que começaram jogando vocais de hip hop e R&B sobre bases de bandas de novo rock – na época, há cerca de cinco anos, chamávamos isso de “bastard pop”. Mas a cultura atingiu um novo patamar quando o DJ Danger Mouse foi revelado para o mercado e público ao colidir o álbum branco dos Beatles com o Black Album do Jay Z. Ao subverter a estética “clássica” de ambos gêneros e ignorar os direitos autorais, o produtor criou uma pequena obra-prima moderna e seguiu para produzir um dos melhores discos do ano passado – “Demon Days”, do Gorillaz – e atinge brilho próprio ao associar-se com o MC Cee-lo no projeto Gnarls Barkley, uma das melhores coisas deste ano.
Assim, vários produtores iniciantes vêm usando desse subterfúgio para chamar atenção para seu trabalho, uns mais felizes que os outros. E só entre os álbuns clássicos, já desvirtuaram o “Pet Sounds” dos Beach Boys (duas vezes, “Bastard Pet Sounds” e “Hippocamp Ruins Pet Sounds”), o “London Calling” do Clash (que virou “London Booted”) ou o “Yoshimi” dos Flaming Lips (“Yoshimi Battles the Hip Hop Robots”). E, pelo andar da carruagem, é só o começo.