Minha coluna Tudo Tanto na edição de agosto deste ano da revista Caros Amigos foi sobre o festival candango PicNik.
Crescer pra quê?
O festival brasiliense PicNik aposta no médio porte para se tornar autossustentável e agradável ao mesmo tempo
No horizonte, impávida, a Torre de TV de Brasília parece ainda maior pela ausência de construções ao seu redor e por estar constantemente avistando os frequentadores do festival PicNik abaixo. Circulando ao redor do espelho d’água em frente a ela, o evento que começou a partir de uma inquietação e sem muitas expectativas reunia dezenas de expositores e vendedores agora era um enorme de pequenos produtores que trabalham com comida, moda, artesanato, decoração, saúde, bem estar e recebia milhares de pessoas durante os dois dias em que aconteceu no final de junho na capital federal.
Ao fundo, no final dos corredores e tendas de lojas e barracas de alimentação, camas para massagem, fumódromos de narguilê e até uma máquina que cortava discos de vinis de shows gravados na hora, uma tenda de circo cobria um pequeno palco em que a banda FireFriend apresentava-se. Liderada pelo casal Yuri Hermuche (guitarra e vocais) e Julia Grassetti (baixo, vocais e teclados) ao lado do baterista Pablo Oruê, o trio indie paulista funcionava perfeitamente naquele ambiente, a tarde fria e ensolarada de um sábado de outono reunia uma quantidade boa de gente para ver o grupo tocar. Não estava cheio mas não estava vazio e muitos dos que paravam para assistir ao show tinham ido apenas para fazer compras – ou apenas passear, já que o festival é gratuito.
Embora adequado para a proporção do FireFriend, aquele palco parecia pequeno para receber os artistas que ainda tocariam naquela edição do evento, como o trio O Terno, a cantora Ava Rocha e os dez integrantes do grupo Bixiga 70. Não o tamanho do palco em si, mas sua distância em relação à audiência, a altura e ausência de fosso entre artista e público. Mas o que a princípio parecia discrepante, na verdade é estratégico. Porque o PicNik quer crescer, mas não crescer demais.
“Nós não temos interesse em tornar o evento maior do que já é, e sim de entender como criar filtros para manter dentro do evento um público saudável e interessante, que interaja positivamente com nossa ferramenta, seja comprando dos expositores, vendo uma palestra, curtindo um show, fazendo aula de ioga, trabalhando como voluntário”, me explica Miguel Rodrigues Galvão, que idealizou o evento ao lado da publicitária Julia Hormann. “Algumas pessoas que estiveram nos primeiros anos não frequentam mais o PicniK e estamos vendo uma nova geração abraçando uma proposta: o desafio agora é contextualizar essa galera de que existem princípios e motivos para o projeto acontecer, que não somos apenas uma grande farra aberta.”
O festival começou como um bazar coletivo criado de uma hora pra outra, sem planejamento, aproveitando o momento. “Em 2012, uma amiga que trabalhava na administração de Brasília – uma espécie de prefeitura local -, me procurou para pensar uma ocupação diurna ao Calçadão da Asa Norte, espaço recém-inaugurado mas que era desprezado pela vizinhança e já se via tomado por marginais”, continua Miguel. “Na mesma época, morava com uma menina, a Dani, que estava muito envolvida com a vibe de brechós e percebi que tinha uma onda muito legal envolvida nessa movimentação. Juntamos as pontas e pensamos: se a gente trazer um público legal para esses expositores, será que eles nos ajudam a pagar a conta de nosso encontro? Daí, olhamos para uma data que parecia ideal para lançar a proposta: o aniversário de Brasília, que à tempos não tinha uma celebração que envolvesse a galera alternativa da cidade.”
Miguel conta que a ideia do evento já estava em sua cabeça há mais tempo, mas ele não via como viabilizá-la. “Estava muito desiludido com esse meio da cultura noturna alternativa – em que atuava ativamente – e vislumbrava a criação de uma plataforma de vibração de dia, onde as pessoas interessantes e diferentes da cidade poderiam se encontrar para interagir sem as ‘máscaras’ da noite, que propusesse um break, mesmo que momentâneo, dessa intensidade virtual a que somos submetidos, valorizando a realidade presencial acima de tudo”, explica. O nome veio a partir da sensação de que ele queria passar para o evento – algo leve, diurno, pra cima e para todas idades.
Esta preocupação também estava refletida na escalação das bandas. Nada muito pesado, agressivo ou barulhento – a curadoria musical do festival PicNik caminha em direção à psicodelia, ao indie rock e à música brasileira, buscando artistas que ocupem as interseções entre estes estilos. Além de FireFriend, Bixiga 70, O Terno e Ava Rocha, o festival ainda contou com a banda califoniana Blank Tapes, o pernambucano Tagore, os paraibanos Glue Trip, os gaúchos dos Mustaches e os Apaches, os mineiros do Congo Congo e Teach Me Tiger e os brasilienses Transquarto, Brancunians, Supervibe, Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro e Cassino Supernova – estes últimos homenageando o jovem recém-falecido baixista Pedro Souto.
Outra peculiaridade bem-vinda do festival: deixar as atrações mais disputadas para o meio da programação – e não para o final. Assim, quando a última banda estava tocando, grande parte do público já tinha ido embora e o encerramento do evento não fica naquela suspensão de eletricidade coletiva característica dos shows para multidões, terminando naturalmente. Ponto para o grupo.
Chego em Brasília neste fim de semana para conferir a edição anual do festival PicNik, uma festa que cresceu, virou mercado, já se espalhou por outras cidades e agora faz um dos festivais mais legais da minha terrinha. A edição deste fim de semana tem Mustache e os Apaches, Bixiga 70, O Terno, Tagore, Ava Rocha, Firefriend, Blank Tapes, Glue Trip e outros tantos. De graça, na Torre de TV, sábado e domingo – mais informações aqui.
“Tenho visto e ouvido coisas emergentes na música e no cenário onde a praticamos. Novos grupos revelando novos caminhos. Outras atitudes. Outros ângulos sonoros. A música em si será como sempre foi; feia ou bonita dependendo de quem a ouve. Mas a maneira de ser dessa tribo que está ocupando espaços, traz um ar novo, animador e importante: conteúdo com a qualidade alguns pontos acima” – quem descreve este cenário é Renato Teixeira, ícone vivo da música de raiz brasileira, que acaba de encontrar-se com a banda de rua Mustache e os Apaches para um encontro ao redor de uma de suas canções, “Rio Abaixo”.
A conexão entre as duas gerações foi feita pela filha de Renato, Antônia, amiga pessoal do grupo. “‘Rio Abaixo’ é uma das músicas do Renato que a gente mais gosta”, explica o vocalista da banda, Pedro Pastoriz. “E chegamos nela em uma conversa muito rápida. A princípio é uma música que o Renato não toca muito nos shows, é de um repertório antigo e a composição é de Geraldo Roca e Paulo Simões.”
Renato continua: “A música por ser invisível e inodora, repousa na gravidade da terra eternamente. As clássicas, por exemplo, continuam soando mais belas a cada dia enquanto gerações inteiras vão passando por ela. Reinventar, renovar-se, ampliar horizontes, qualificar a vida dos humanos, são missões musicais. Ouvir música, qualquer uma, é praticar auto ajuda. Os tempos mudam o comportamento conforme a humanidade evolui e é dentro dessa lógica que a arte se orienta para também avançar. Sem ter que ser obrigatoriamente um caleidoscópio de possibilidades nunca vistas de sonoridades inimagináveis, a arte musical jamais se comprometeu com qualquer tendência para ser eficiente. Basta ser do agrado de todos e o assunto estará resolvido. Uma banda como Mustache e os Apaches, a canção do Roca e do Simões, aquele arranjo certeiro que o Sergio Mineiro criou lá nos porões dos anos oitenta mais a vivencia que as canções adquirem com o passar dos anos, tudo isso somado, possibilitou que descontraidamente a gente revisitasse a canção numa manha sol na serra da Cantareira e nos divertíssemos muito com ela.”
“‘Rio Abaixo’ tem lá uma certa ironia, como quase tudo que passa pelo Roca. Tem também um que de deboche que o Simões gosta de camuflar nos seus dizeres. Quando ouvi pela primeira vez, achei que Elis iria gostar; marquei uma visita do Roca na casa dela. Elis ouviu mas não se ligou; então eu gravei no meu disco Garapa. Ficou lindo. Espero que esse numero musical venha agora trazer uma gostosa reflexão filosófica sobre a vida vivida nesse pais tropical onde ‘Rio Abaixo’ é o nome de uma determinada afinação da viola e serve também de dizer popular, quando a gente vê a viola em cacos e nao pode mais deter a evolução dos fatos”, empolga-se o velho compositor.
“Renato é uma figura engraçada, cheio de histórias”, continua Pastoriz. “Ele tava muito curioso pra saber como funcionava essa coisa nossa de tocar na rua, enfim, passamos um dia muito gostoso entre amigos. No final do dia gravamos a música num por do sol incrível com todas aquelas araras, micos e tucanos da Cantareira. Espero que a gente toque juntos algum dia ao vivo, seria legal no futuro gravar mais algumas coisas, veremos!” O próprio Renato vai além e já traça planos: “Pensei inclusive em regravar um dos meus primeiros discos, o “Paisagem” com os Mustaches.”