Enorme prazer de fazer parte da primeira edição da Wired no Brasil. Fui incumbido de uma maratona profissional: entrevistar e perfilar os 50 brasileiros mais criativos de 2020, uma lista que chegou pronta mas que pude interferir à medida em que me inteirava de todo o processo. E este foi junto de uma equipe dos sonhos: a querida Cris Namouvs no comando da espaçonave, o compadre Bruno Natal na edição, a comadre Juliana Azevedo no design e a capa assinada por Laurindo Feliciano (sem contar outros que conheci no processo, como o fotógrafo Wendy Andrade e a produtora Karina Mendes Cardoso). Mas a saga de entrevistar 50 universos pessoais em plena expansão, ainda mais num ano como 2020, abriu minha cabeça em múltiplas camadas e este trabalho tornou-se especialmente mais enriquecedor por acontecer neste ano pandêmico. Encontros, virtuais claros, com gente tão diferente e ativa como Ailton Krenak, Teresa Cristina, Emicida, Miguel Nicolelis, Silvio Almeida, Yasmin Thainá, Iana Chan, Sidarta Ribeiro, Nath Finanças, Marcelo D’Salete, Kaique Britto, Felipe Neto, Alê Santos, entre vários outros, me fizeram recuperar a sensação de horizonte que parecia ter sido perdida desde o início do ano. Abaixo, o texto que escrevi na apresentação da revista, que está sendo distribuída gratuitamente em alguns pontos de venda no Rio e em São Paulo (e não vai ser vendida em bancas) e a relação dos 50 nomes escolhidos, com os respectivos links para cada uma das matérias.
Entrevistar os 50 brasileiros mais criativos de 2020 não foi só uma tarefa hercúlea como inspiradora. Incumbido desta missão, encontrei 50 universos únicos, 50 pontos de vista singulares e 50 perspectivas distintas, mas todos, sem exceção, esperançosos em relação ao seu papel no futuro do Brasil.
Foram quase 50 videoconferências (só três responderam por email e só um pelo telefone) em que pude conferir olhares curiosos e empolgados, ver sorrisos e caras sérias para descrever altos e baixos de um ano que ficou na história de todos nós. A ausência do encontro presencial, crucial quando se faz esse tipo de entrevista, mostrou, por outro lado, que todos estavam à vontade com a rotina da quarentena.
Muitos entediados, outros exaustos, alguns felizes pela convivência com os filhos, outros tensos pela tragédia sanitária, mas todos dispostos a seguir fazendo seus trabalhos, que encontraram, neste ano, um ponto de inflexão definitivo.
50 indivíduos que tiveram que se reinventar para adequar-se ao novo ano, 50 pontos de conexão com redes exponenciais – vários inclusive conectando-se entre si -, 50 biografias que deram um salto no ano que está chegando ao fim.
Mais do que isso: 50 olhares dispostos a tirar o país do atraso conceitual que se encontra, 50 horizontes possíveis que creem em um Brasil que, mesmo na adversidade, só melhora.
Os 50:
• Miguel Nicolelis: ‘Ninguém associa ciência de ponta com soberania nacional’ • Draw Something: Rascunho milionário • Homem-objeto (Camilo Rocha): Em busca do tempo perdido • Impressão Digital (Alexandre Matias): Por uma ficção científica menos pessimista e apocalíptica • No Arranque (Filipe Serrano): Para empreender online, é preciso sair do filtro pessoal • Marco Civil da Internet: Vem aí uma longa briga • Angry Birds: Um estranho no ninho • Vida Digital: Cory Doctorow • Tim Cook na China, ‘Curtir’ à venda, Banda larga via satélite, e mais •
Aproveitei a conversa com Nicolelis para falar sobre ficção científica na minha coluna desta semana:
Por uma ficção científica menos pessimista e apocalíptica
Nicolelis e Stephenson concordam num ponto
Ao entrevistar o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis para a capa desta edição do Link, perguntei sobre aplicações de suas pesquisas fora da medicina e ele falou que a neurociência já está no dia a dia das pessoas. Citou que a indústria do videogame está de olho em formas de interface que não necessitem de interferência táctil e falou que já existe até um aplicativo para iPhone que permite movimentar os ícones da tela do telefone apenas com o cérebro. E disse, mais de uma vez, que vivemos em uma realidade que parece ficção científica.
Foi quando o provoquei sobre o pessimismo da ficção científica atual. Os principais títulos do gênero no século 21 lidam com um futuro assustador. Séries como Terra Nova e Battlestar Galactica cogitam um futuro em que a civilização acabou. Filmes como O Preço do Amanhã e Contra o Tempo falam de governos que controlam a população usando alta tecnologia.
A lista inclui ficções em que invasões alienígenas ao planeta Terra são bem sucedidas, supercomputadores fogem do controle e ameaçam seres humanos. Até a Pixar anteviu o fim do mundo em Wall-E – isso sem contar todas as previsões apocalípticas que se aproveitam do mítico 2012 para cantar aos sete ventos que o fim está próximo.
“Uma das razões que me fez escrever o livro que eu lancei no ano passado (Muito Além do Nosso Eu, Companhia das Letras) foi mostrar um cenário otimista da ciência”, continuou Nicolelis, quando o questionei. “Hoje em dia você pega um filme de Hollywood ou um livro best-seller, é tudo assim: ‘Vamos destruir a raça humana… Vai acabar o mundo… Vamos criar um híbrido de não sei o quê… Os computadores vão nos deixar obsoletos…’”
A última afirmação é suficiente para que ele comece a desancar um dos principais nomes desta realidade de ficção científica que vivemos hoje, Raymond Kurzweil, que prega a inevitabilidade da fusão entre homem e máquina, que chama de singularidade.
“A singularidade é um absurdo, o Kurzweil ganhou muito dinheiro vendendo uma balela!”, enfatiza. “A singularidade nunca vai ocorrer, porque o cérebro humano é ‘copyright protected’, não pode ser reduzido a um algoritmo, portanto não pode ser copiado por um computador. Toda máquina de Turing – todos os computadores que a gente conhece – precisa de uma sequência de códigos para funcionar. Jogar xadrez é um algoritmo. Você tem regras muito definidas. Já apreciar Bach ou ser corintiano ou palmeirense… Isso não tem como definir, não tem como você por num algoritmo. Então, por definição, você não pode repetir o cérebro. Não há como você recapitular, num computador, a história coletiva da espécie e a história individual de cada um de nós. É uma impossibilidade matemática. As grandes empresas adoram a noção de que o ser humano vai se tornar obsoleto. É a terceira onda do capitalismo, em que o valor do trabalho humano é zero. Isso é um sonho e eles vão morrer sem ver isso ser realizado.”
Ele continua, lembrando quando falou em um encontro de escritores de ficção científica há dois anos: “Eu disse: ‘Pessoal, a coisa tá preta… para vocês! Nós, os cientistas, estamos chegando na realidade que vocês inventaram… Eu não faço ficção científica, vocês fazem. Mas estamos chegando perto!’”
A provocação de Nicolelis faz coro com a de outro grande nome do século 21, este escritor de ficção científica, o norte-americano Neal Stephenson. Autor de títulos como Nevasca (o único lançado no Brasil, pela Editora Aleph) e pela intricada série de livros reunidos sob o título de The Baroque Cycle, ele propôs no fim do ano passado um projeto chamado Hieroglyph que visa instigar autores a pensar em um futuro menos sombrio que aquele cogitado hoje em dia.
“Temos uma regra”, escreveu, “nada de hackers, nada de apocalipse, nada de hiperespaço”. O projeto é um manifesto para fazer novos autores cogitarem um futuro mais otimista para todos. Pois, uma vez cogitado por escritores, ele pode ser posto em prática pelos cientistas. E a ciência, como frisou Nicolelis, está chegando perto do que a ficção científica do passado propôs…
Conversei com o cientista mais importante do Brasil hoje pra capa da edição do Link dessa segunda:
‘Ninguém associa ciência com soberania nacional’
O neurocientista Miguel Nicolelis fala com exclusividade ao Link sobre a próxima etapa de seu projeto para transformar a criação de um exoesqueleto robótico em um programa de educação e saúde para estimular o desenvolvimento tecnológico e científico do País
“A renúncia a um investimento maciço de formação de um corpo de cientistas e de atuação em diferentes áreas – tecnologia de informação, microengenharia, biomedicina, nanotecnologia, engenharia biomédica… – é uma renúncia à soberania do País.”
Miguel Nicolelis, um dos cientistas mais importantes do Brasil, é enfático sem se exaltar. Mesmo quando fala do Palmeiras – uma de suas paixões, que havia perdido de virada para o arquirrival Corinthians no dia anterior à entrevista, realizada no bairro de Higienópolis há uma semana –, ele mantém a calma e a clareza características de quando expõe suas ideias. Até quando reclama de como seu time achou que o jogo estivesse ganho no intervalo do clássico.
Futebol à parte, a conversa foi sobre outras duas paixões: ciência e educação. E ele conta, com exclusividade ao Link, mais um passo de seu projeto Câmpus do Cérebro – o início de uma parceria entre o Hospital Sabará, de São Paulo. “Com a abertura da Escola do Câmpus do Cérebro, no ano que vem, vamos poder fechar o ciclo completo, unindo o Centro de Saúde Anita Garibaldi à escola”, explica.
Ele se refere ao trabalho que iniciou há seis anos no Rio Grande do Norte, que começa pelo tratamento de mulheres grávidas no Centro de Saúde (e que reduziu a mortalidade materna da região de Natal e Macaíba a zero) para garantir que os futuros alunos de sua escola possam ser acompanhados desde antes do nascimento. “As crianças que nascem lá já são alunas da escola no pré-natal. Depois elas entram no berçário e seguem estudando em período integral até o ensino médio”, diz.
José Luiz Setúbal, presidente da Fundação Hospital Sabará e responsável pela aproximação do hospital a Nicolelis, explica que a parceria começa com a troca de experiências em saúde materna e de recém-nascidos, mas Nicolelis frisa que não deve parar por aí. “Estamos discutindo a possibilidade de evoluirmos a relação para uma parceria clínica.” O que, na prática, significaria que o hospital paulistano é candidato a ser o primeiro lugar em que o projeto dos sonhos de Nicolelis, o Walk Again, possa ser testado em humanos.
Andar de novo. Walk Again é o projeto de criar um exoesqueleto robótico controlado pelo cérebro. O grande sonho de Nicolelis é fazer um tetraplégico dar o pontapé inicial no primeiro jogo da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, como disse em entrevista ao Link no ano passado. “Testamos um protótipo nesta semana que são pernas mecânicas. Vestimos um macaco e elas se mexeram, não com o pensamento, mas com um programa de computador”, explica. “O próximo passo é anestesiar a medula espinhal do macaco, para, finalmente, testarmos se a veste consegue fazer movimentos. Faremos isso até o meio do ano. E, mais ou menos no ano que vem, nesta época, já estaremos trabalhando com pacientes em potencial. Mas isso ainda está em fase de discussão.”
Mas o Walk Again não é um fim em si mesmo. Nicolelis o compara ao programa espacial norte-americano, que estabeleceu a meta de levar o homem à Lua, mas que, no processo, alavancou outras tecnologias que surgiram durante a pesquisa. “Há várias aplicações que surgem desta meta, que chamamos de ‘spinoffs’. Até mesmo para entretenimento, como o videogame. Quando os executivos da indústria de games veem um macaquinho imerso num mundo virtual jogando videogame com a mente, eles veem o futuro.”
E antecipa, sem entregar: “Eu não posso contar agora, mas estamos perto de divulgar três novas ideias que ninguém nunca tinha tido – e que não tínhamos a menor ideia que iriam acontecer. As grandes descobertas são acidentes. Na hora em que a gente estava fazendo um experimento com macacos, vimos isso e pensamos ‘não é possível’… Essas novas ideias são tão fora do esquadro que quando a gente publicar as pessoas vão achar que estão num filme de ficção científica.”
Mas Nicolelis quer menos ficção e mais ciência. E reforça a importância do Walk Again em seu projeto científico-educacional. “O Walk Again é a semente de uma nova indústria no Brasil, a da tecnologia de reabilitação. Gostaríamos de usar o Walk Again como projeto-âncora para lançá-la aqui no Brasil com a construção da infraestrutura do parque neurotecnológico do Câmpus do Cérebro”, diz.
O projeto visa criar uma geração de cientistas no Brasil para tratar futuros alunos no pré-natal e ensinar ciência, na prática, numa escola de período integral. “Nossa abordagem de ensino de ciência é prática. As crianças aprendem a lei de Ohm descobrindo como funciona um chuveiro. E contratamos nossos ex-alunos para trabalhar conosco. Na prática, estamos pegando crianças que nunca tiveram contato com ciência, colocando-as em um programa de educação e em cinco anos elas estão trabalhando em um laboratório de ponta. E são crianças que, até os 10 anos, não tiveram oportunidades. Imagina quando pegarmos as crianças que tiveram um pré-natal ótimo…”
Isso tudo é para reverter o quadro científico brasileiro. “Nossa situação é dramática. O déficit de engenheiros que o Brasil tem é gigantesco. E esse é um assunto estratégico. A indústria deste século, sem dúvida, é a do conhecimento e estamos em grande desvantagem. Se não acordarmos agora, não precisamos mais acordar. A janela de oportunidade está se fechando – e rápido.”
Contudo, o neurocientista é otimista. “As coisas estão mudando. Esta nossa conversa seria impossível há dez anos. O governo federal está ouvindo. Presido uma comissão – a Comissão do Futuro – que está preparando um relatório para mostrar todos os indicadores internacionais sobre a verdadeira situação do ensino de ciência e da produção científica brasileira. O relatório deve ficar pronto em junho.”
E conclui: “Meu intuito diz respeito à criação de uma nova geração de brasileiros. Produzindo não apenas cidadãos – muito mais felizes, engajados, competentes – mas também engenheiros, médicos, cientistas, professores… Pessoas que têm outra visão de mundo. E de Brasil.”
• Continuem bobos • O efeito Jobs • Ninguém entendeu tão bem a linha que une o óbvio ao único • O sonho visto pelas lentes da simplicidade • Jobs é a pessoa mais importante do design dos últimos 30 anos • Diferente e muito melhor • Ser um bom homem de negócios não o torna um homem bom • Reações, mensagens, flores, maças e velas virtuais • Vida digital: Ana Luiza Pereira • OccupyWallStreet: A queda do muro • “Somos um movimento de natureza aberta” • Manifeste-se você também • Miguel Nicolelis e o sexto sentido • Novo blog do Link, Anonymous vigiado, o fim do Zune, Wikipédia em greve…