A orelha do Goonies

goonies

Escrevi a orelha para o roteiro romanceado de Goonies, que acaba de ser lançado por aqui pela Darkside. O livro foi escrito por James Kahn a partir do roteiro de Chris Columbus ainda nos anos 80 – época em que Kahn havia se especializado em adaptar os novos filmes para adolescentes (O Retorno de Jedi, Indiana Jones e o Templo da Perdição, Poltergeist) para o formato livro. A tradução do livro foi feita pela comadre Cecilia Giannetti e o texto que escrevi segue abaixo:

 

Sustânça

Substance

Saiu o livro do Petillo sobre discos para levar para uma ilha deserta que, além do meu texto (aí embaixo), tem discos (d)escritos por nomes como Alex Antunes, Wander Wildner, DJ Hum, Clarah Averbuck, Jardel Sebba, Wado, Fabio Bianchini, Kassin, Abonico, Pedro Alexandre Sanches, Loop B, Gabriel Thomaz, Fernando Rosa, Simone do Valle, Adriano Silva, Glauco Cortez, entre outras pessoas que eu não conheço pessoalmente. Dá uma folheada na livraria pra ver se vale à pena (pra mim, vale) e vê se lê esse texto aí embaixo no papel, que é mar legal, vai dizer… Aliás, boa pedida: saia da frente desse computador e vá ler o livro na loja. Tá um dia tão foda lá fora, soléu, proveita…

New Order
Substance 1987

Sempre que me falam nessa maldita ilha deserta, penso no Paul’s Boutique dos Beastie Boys. Certamente é o inconsciente querendo se agarrar ao caráter enciclopédico do disco, um disco cheio de filmes, livros e outros discos, uma cápsula do tempo ainda mais eficaz que discos como Sgt. Pepper’s ou London Calling. Mas o momento mais tranqüilo do disco é “Hi-Planes Drifter”, que pode ser tensa demais pra minha vontade de sossegar. E Paul’s Boutique, mesmo tendo ouvido o disco na época, foi bater direito depois de velho, por isso não traz o vínculo mais nostálgico, essencial para esses dias solitários.

Indo pra este lado, inevitável citar discos básicos na formação de qualquer um da minha geração – do Iron Maiden ao Legião Urbana, Doors e Titãs, Plebe Rude e Clash, Beatles e Mutantes, Led Zeppelin e Velvet Underground, Pink Floyd e Smiths. Discos inteiros tatuados em cérebros de hordas de moleques dos anos 80, que hoje se arrastam ouvindo vozes do passado em pistas de dança que antecipam em vinte anos os bailes da saudade do futuro. Mas são discos de bandas que têm mais de um disco representativo, que a audição de determinado álbum pode remeter imediatamente a outro disco, que não pude escolher trazer. Provavelmente me lamentaria, buscando em acordes e timbres vocais as poucas referências tácteis (ao mesmo pro tímpano) com parte do meu passado, soterrada entre as lembranças do outro disco do artista que eu escolhi. Artistas que nem têm coletâneas decentes, qualquer um deles. Mas destes vêm à cabeça músicas sem a menor preocupação de memória – letras gigantescas inteiras, mudanças de andamento e solos de instrumentos decorados nota a nota. Todos prontos para serem lembrados, bastava desligar a vitrola com o outro disco escolhido.

E há, claro, a preocupação com o ritmo. Talvez dançar fosse a terapia mais fácil de ser posta em prática em uma ilha deserta – e certamente, a que menos requereria concentração. Algo para acompanhar o ritmo com os pés, balançar a cabeça de um lado para o outro enquanto toma sol na praia, varar o azul profundo do céu de noite e furar a muralha de silêncio contínuo das ondas do mar. E é pedir para se perder: pelo ritmo, vai-se dos Jorge Ben (África Brasil? A Tábua? O do Flamengo?), Tim Maia (76? 71?) e todo o black brasileiro a discos de samba, reggae, dub e hip hop, passando por discos de MPB instrumental (um Deodato certo salvaria uma ilha deserta, mas… qual?), toda a discografia agregada de James Brown e George Clinton, o universo de Dr. Dre (Eminem incluso), tudo que se originou com a lógica do dub, todos os filhotes da disco music, o multiversos de ritmo do Caribe inteiro, toda a África, o groove da psicodelia e do rock de garagem, a new wave feita pra dançar e as duas primeiras gerações do ska. Vodus paquistaneses, danças da chuva de povos do Leste Europeu, festas judaicas, tecneira brava, dervixes rodopiantes, eletrônicos alemães, cantores de garganta dos desertos asiáticos, IDM torto, jazzistas da Escandinávia, meditações tibetanas, punk rock chinês, J-pop – universos inteiros de ritmo impossíveis de ser catalogados em uma discoteca decente, que dizer na escolha de um único disco. Fora os de ritmo abstrato, que chamam a contemplação: Miles, Ayler, Coleman… Não dá pra escolher um só disco desta natureza, se o ritmo for o único critério.

E há de se levar também em conta a duração do disco escolhido. Porque se um compacto simples pode levar uma pessoa à loucura (que é sempre uma saída possível, como veremos adiante), um disco cheio de ambientações pode salvá-la. Discos duplos ou triplos (como o avô de Paul’s Boutique, Sandinista), proporcionariam horas a mais de diversão e fuga que, digamos, os discos gravados no começo dos anos 60, quase todos com pouco mais de meia hora. Concisão, neste caso, pode ser um defeito grave.

Mas discos duplos ou triplos sempre pecam pelo excesso de gordura. Raros compensam toda a audição – até o Álbum Branco (ops, Beatles já tá fora) tem “Revolution 9”, que pode ser uma viagem ou um tremendo pé no saco, dependendo do seu humor. Assim, enfileiramos fora quase todos os discos lançados no final dos anos 90 que, aproveitando-se da duração do CD, tornaram-se vinis duplos – como os do Radiohead, os do Chemical Brothers, discos de drum’n’bass ou os do Racionais MCs. Reunidos ao lado de outros duplos clássicos (o Tommy e o Quadrophenia do Who, o Great Rock’n’Roll Swindle dos Pistols, a Ópera do Malandro do Chico Buarque, Porgy & Bess com Louis Armstrong e Ella Fitzgerald, coisas do Tom Jobim, o Tim Maia Racional, o Blonde on Blonde do Dylan, inúmeros discos ao vivo e inúmeros discos ao vivo do Zappa), estes sempre têm músicas que pedem para ser puladas, o que pode torrar a paciência – descobrir que todas aqueles sulcos de vinil não ouvidos poderiam trazer outras canções gravadas em seus corpos…

Era preciso um disco de vinil duplo que a nostalgia tornou-o todo bom. Nem precisa ser um disco realmente bom, mas algo que se tenha ouvido com tanta freqüência em uma determinada época da sua vida, que se torna, de certa forma, parte, mais do que da sua formação musical, mas da própria formação da sensação de ser você mesmo. Música é fundamental neste desenvolvimento, até mesmo para os poucos maus sujeitos que não gostam de música.

Eu sei qual disco levaria para uma ilha deserta: a coletânea Substance 1987, do New Order. Ela sintetiza um período que, para mim, é o ápice da música pop – o surto coletivo que desconstruiu o rock via punk e a música para dançar via discoteca, que foi enquadrado pela indústria fonográfica apenas para, em sua decadência, dar origem ao mercado paralelo que movimenta DJs, bandas, jornalistas e produtores – a chamada “cena independente”. Entre os anos de 75 e 85, a música pop viveu seu período mais turbulento, o equivalente à histeria dos primeiros anos da década de 60 e a psicodelia de seus últimos dias – ao mesmo tempo. E ainda teve o Prince, a Madonna e o Thriller de Michael Jackson, não custa lembrar.

Substance reúne os singles de uma banda que, de formação bretã, não colocava singles em seus discos (como a segunda metade dos Beatles, os Smiths e o Led Zeppelin – que sequer lançava singles!). Ao mesmo tempo, fotografava a evolução de uma banda pós-punk (meu gênero favorito, repetirei isso mais adiante) rumo ao universo da dance music – trombando, pelo meio do caminho, com o incipiente hip hop, a cultura techno, inventando o universo rave, o segundo verão do amor e fazendo músicas perfeitas. Eu já falei desse disco mais de uma vez, em tom professoral:

“O New Order surgiu bem antes de ter a idéia deste nome, na primeira cidade da história moderna, a decadente Manchester. Cinzenta, a metrópole era o símbolo da decadência do capitalismo. Se um dia fora a primeira cidade industrial do planeta, transformando-se primeiro num pólo fabril têxtil (entre 1760 e 1870) e depois em um centro de produção automobilística, química e de maquinário pesado (entre 1870 e a primeira guerra mundial). Foi lá que o filósofo Friedrich Engels escreveu A Condição da Classe Operária na Inglaterra em 1844, um dos textos básicos do marxismo.

Mas as duas guerras, a depressão e os bombardeios destruíram os dias de glória e Manchester tornou-se uma espécie de parque de diversões morto. Os grandes galpões de fábrica se misturavam ao horizonte e suas casas vitorianas com tijolos à vista. Uma cidade-museu sobre a revolução industrial abandonada, Manchester perdeu metade de sua população e foi um dos primeiros grandes centros ingleses a ceder à pobreza e miséria, com subúrbios que cresciam cada vez mais.

Até que os Sex Pistols, o Clash e os Heartbreakers (de Johnny Thunders) passaram pela cidade em dezembro de 1976. Foi o suficiente para os jovens desempregados arrumarem algo que fazer além de jogar bola e encher a cara. Montar uma banda tornou-se moda entre a juventude prontamente contagiada pelo punk e Anthony H. Wilson, apresentador de um programa de música pop na TV local, percebeu uma geração a seu redor. Era uma chance única e Wilson a agarrou: investiu metade de todo dinheiro que tinha na Factory, uma gravadora independente. E entre os grupos que logo sondou, o Joy Division foi quem primeiro despontou.

Peter Hook, Bernard Albrecht e Stephen Morris decidiram montar a banda durante o show dos Pistols. Nenhum dos três sabia tocar nenhum instrumento direito, o que os liberou para criar. E depois de escolher quem tocava o quê em um sorteio, cada um tratou seu novo instrumento da maneira mais ímpar, revelando suas verdadeiras intenções. Bernard foi para a guitarra fazer ruídos e bases percussivas. Stephen desenvolveu uma técnica própria que consistia em repetir seguidamente uma determinada seqüência de batidas em alguns tambores de sua bateria, criando um loop acústico que transforma alguns clássicos do Joy em celebrações tribais. E Peter, guitarrista frustrado, passou a tocar seu baixo de forma melódica, como se este fosse uma guitarra. Usando palheta e assobiando melodias inusitadas para seu instrumento, Hook tornou-se símbolo de qualquer trabalho que aquele trio viesse a fazer junto.

Até que conheceram Ian Curtis, que de tempero, passou à substância do Warsaw, o primeiro nome que o grupo teve. As letras de Curtis eram esparsas e clássicas, com referências à poesia moderna inglesa e francesa e descreviam cenas horríveis, sentimentos pesados, questionamentos perturbadores. Seu vocal, soturno e macio ao mesmo tempo, dava às canções uma paz de espírito frente ao terror ou o desespero diante do nada. Este sentimento dava uma respeitabilidade à anarquia total dos grupos punk de Londres. Compartilhando sensações e idéias com toda sua geração, Curtis traçava uma árvore genealógica que começava na poesia francesa, passava pelo modernismo europeu, pela decadência de Berlim, por campos de concentração da Segunda Guerra Mundial (de onde tiraram seu nome – “a divisão da alegria” eram as alas das prostitutas nestes campos), a Nova York do Velvet Underground, chegando finalmente a Manchester. Era mais do que suficiente para que a cidade passasse a se gabar de ter o melhor grupo da Inglaterra, numa típica provocação dos britânicos do norte.

Ao vivo, eram incendiários. Sua performance devia tanto ao Velvet quanto aos Doors, com o grupo entrando em jam sessions de barulho interminável, acompanhados da dança peculiar e agressiva de Ian, que largava o microfone para debater-se para delírio do público. Algumas apresentações depois, os outros integrantes da banda descobriram que Curtis era epilético e que sua dança era, na verdade, fruto de convulsões cerebrais.

Este não era o único problema com o vocalista. Além de antissocial, Curtis só saía de casa para cair na noite onde, inevitavelmente, entrava em depressão. A mesma depressão que o levava a escrever, o atacou naquela madrugada de domingo, quando colocou The Idiot, de Iggy Pop, na vitrola e escreveu uma carta com as mesmas letras maiúsculas que escrevia as letras do grupo. Logo depois, se matou.

Na semana seguinte, o maior sucesso do grupo – “Love Will Tear Us Apart” – era lançado como aperitivo do recém-gravado Closer. Na mesma semana, Hook, Albrecht e Morris decidiram acabar com o grupo – não sabiam mais o que fazer. Em poucos dias, voltavam a ensaiar juntos e, como um trio, exorcizaram o fantasma de Ian em improvisos à procura de uma nova identidade.

O empresário Rob Gretton, o mesmo dos tempos do Joy Division, sugeriu a entrada da tecladista Gillian Gilbert à banda. Com um quarto integrante, o novo grupo cobria a sombra de Curtis e estava disposto para voltar à ativa. Com Bernard assumindo os vocais e as letras, eles gravaram com o mesmo produtor do Joy, Martin Hannett, as duas últimas músicas do antigo vocalista – “Ceremony” e “In a Lonely Place”. As duas faixas não davam idéia do que poderia acontecer logo depois e novamente a banda prestava tributo ao falecido grupo. Batizada de New Order, a nova banda substituía o romantismo “mal do século” pela introspeção adolescente – um nerd no lugar de Lord Byron. Nesta fase, o grupo lançou o disco Movement que marcaria outra característica (bem inglesa) da banda: os discos não traziam as faixas que eram lançadas como singles.

Mas algo estava mudando. A cena technopop que invadiu a Inglaterra no começo dos anos 80 provocou um súbito interesse pela eletrônica e pela dance music. Entre os interessados, os quatro New Order compravam discos de rap, disco music, rock alemão e música eletrônica, interagindo aos poucos com o som. Logo dispensariam a produção de Hannett e se dedicariam eles mesmos a produzir seus próprios discos.

E saía o single de “Everything’s Gone Green”, em dezembro de 1981, que apresentava ao mundo o novo New Order. Com seqüenciadores e bateria eletrônica, o grupo levava o sentimento vazio e tímido do primeiro disco para a pista de dança, mas sem perder os vínculos com o rock. Além das guitarras e baixos onipresentes, as canções do grupo tinham começo, meio e fim e estruturavam-se na forma mais tradicional da canção ocidental.

A faixa começa com chimbaus e bumbo eletrônico perseguidos pelo baixo fantasmagórico de Peter Hook, que é jogado para escanteio com a chegada do seqüenciador de Gillian, que abre espaço mais à frente para o violão elétrico de Bernard (que agora assina Sumner). Dance music, rock, dance music, rock – a seqüência é quebrada com a entrada dos vocais, que impõe a fusão de todos os elementos da longa introdução. Ecos, gritos ao fundo, repetição de certos trechos, o ritmo como nível básico da canção: o New Order trabalha como os velhos jamaicanos que inventaram o dub. Só que em vez do reggae, a base é a canção rock, o pop rumando à perfeição. E em vez da malemolência do ritmo caribenho, o que manda aqui é o pulso marcial da discoteca, martelando firme ao fundo, como se a vida dependesse daquilo. A canção era apenas uma desculpa: o que o grupo queria era prolongar improvisos elétrico-eletrônicos feitos pra dançar. Nascia o New Order como conhecemos.

“Por favor, alguém me ajude/ Quero saber onde estou/ Vi meu futuro diante de mim/ Te machucarei quando puder/ Sinto como se já estivesse estado aqui antes” – a confusão mental verbalizada por Sumner é vista com desdém pelos fãs de Ian Curtis, mas o ponto não é exatamente esse. Letras têm pouca ênfase no espaço do New Order e funcionam como acessórios – tão valiosas quanto riffs, seqüências de acordes, loops, beats. E mais tarde começamos a entender o que ele quer dizer com essa indecisão de idéias.

“Um céu, uma passagem, uma esperança/ Como um sentimento que preciso, é sério”, canta Barney em “Temptation” (single lançado em abril do ano seguinte) sobre a necessidade de acreditar em algo. “Alto, baixo, vire-se/ Não deixe-me cair no chão/ Hoje à noite eu volto só/ Encontro minha alma no caminho de casa”, canta o refrão. De que outra coisa ele pode estar falando senão do vão exercício que é a dança? Deixar-se levar pelo ritmo, entregar-se à pista de dança como se nada mais importasse, sem se importar com quem está ali (“Você tem olhos verdes/ Você tem olhos azuis/ Você tem olhos cinza”).

“Temptation” coloca o baixo pós-punk em primeiro plano, ao lado da cadência quadrada dos beats programados por Stephen Morris e Gillian Gilbert, que aproximam-se instrumentalmente enquanto tornam-se um casal na vida real. A guitarra aos poucos vai descobrindo a possibilidade de transformar ruídos em ritmo, traçando paralelos entre os guitarristas de funk dos anos 60 e 70 e os guitarristas pós-punk ingleses. O vocal de Barney está mais solto, como percebemos pela doce melodia que ele murmura ao começo da canção, e canta sobre a necessidade de explorar os limites, de ir além, de ceder à tentação como autodescoberta: “Para onde me viro, sei que vou tentar/ Para romper este círculo ao meu redor/ De vez em quando acho que perdi uma necessidade/ Que era urgente para mim, eu acredito”. E encerra a canção nos falando da alienação e apatia de sua geração (“Raios lá de cima machucam as pessoas aqui em baixo/ Povos do mundo, não temos para onde ir”), antes de listar o amor como a única esperança (“E eu nunca encontrei alguém como você”, diz antes de estalar um beijo ao microfone) – liberando a banda para dois minutos de casamento entre guitarra, teclados, baixo e bateria. As duas faixas se encontrariam no EP New Order 1981-1982.

Mas a revolução ainda ia acontecer – e aconteceu sob a autoridade sintética de beats mecânicos. “Blue Monday”, lançado em março de 1983, explodia se tornando o single independente mais vendido da história. Construído em cima da seqüência de beats mais conhecida da história (e um dos breques de bateria mais memoráveis de todos os tempos), “Blue Monday” tornava o New Order um dos nomes mais importantes da noite mundial. Logo, DJs e programadores de rádio caçavam os discos daquele grupo inglês para colocá-lo em seus setlists. Com sua letra propositadamente vazia e vocal monótono, o single mostrava para todo o planeta o potencial instrumental do grupo – elevando-o ao nível de um Kraftwerk pop. Mas eles iriam além.

“Blue Monday” também se distinguia dos outros singles pelo visual. Com sua capa preta recortada, ele lembrava um disquete antigo, daqueles de 5 ¼ polegadas. O visual era assinado pelo mesmo Peter Saville que acompanhava o grupo desde os tempos do Joy Division. Designer oficial da Factory, a partir de “Blue Monday”, Saville passou a se dedicar especialmente ao trabalho do New Order, sendo responsável pela assinatura visual do grupo. Dono de uma noção gráfica limpa e funcional, as capas de Saville criavam imagens enigmáticas com elementos simples e cores de tons semelhantes.

Enquanto isso a Factory crescia cada vez mais. Idealizada por Tony Wilson como uma espécie de bunker revolucionário, a gravadora tinha seus preceitos tirados da Internacional Situacionista, grupo de vanguarda artística influenciado pelo surrealismo e dadaísmo que atingiu seu ápice durante as manifestações estudantis de Paris em 1968. Dos textos da corrente artístico-política que Wilson tirou o conceito de diversão como protesto que atravessaria os anos 80 e chegaria à nossa década como base de toda a cultura rave. “As cidades devem ser esvaziadas para as pessoas dançarem na rua”, pregava o dono da Factory que colocou em prática suas idéias ao idealizar o clube que abriria com o New Order, a Haçienda.

E Manchester abria suas portas para o novo. Logo várias bandas começavam a aparecer entre a classe operária, sendo os Smiths, a mais importante delas. É bom ressaltar este aspecto: mais do que fundir rock com música eletrônica, o New Order reacendia o interesse inglês pela canção perfeita e pela música produzida no norte do Reino Unido. Mas o estrago feito pelo grupo estava longe de ser medido.

Enquanto isso, o New Order atravessava o Atlântico para colher os frutos do estouro de “Blue Monday”. Ciceroneados por Arthur Baker, co-piloto de Afrika Bambaataa no hit “Planet Rock”, foram apresentados à noite nova-iorquina e a um sistema de produção estranho ao grupo. Depois de passar alguns dias no estúdio de Baker (os primeiros gastos apenas com as impressões entre o grupo e o produtor), compuseram “Confusion”, que equilibrava os elementos de ambas as partes: de um lado, a visão electrofunk e o arranjo soul de rua criado por Baker, do outro, as ambiências, o senso melódico e a instrumentação do New Order. Gravaram a canção e, no mesmo dia, Arthur tocou ela em seu set à noite. “Foi a primeira vez que ouvíamos a música ser tocada na mesma noite que havia sido feita”, lembra Peter Hook, “e ver a reação das pessoas frente a algo novo foi algo revelador”.

“Você não pode acreditar/ Quando lhe mostrei o que você significava pra mim/ Você não pode acreditar/ Quando lhe mostrei algo que você não pode ver” – as letras ficavam mais vagas, mas ao mesmo tempo referiam-se à vida pessoal, fazendo que qualquer um tivesse sua versão do que Sumner estava cantando. Seqüenciando guitarras funk, backing vocals gritados e um ritmo menos minimal, mais detalhista, Baker entregava o New Order para as pistas de dança americanas de mão beijada em agosto de 1983. Antes disso, lançaram seu primeiro álbum depois da inserção eletrônica, o belo Power Corruption & Lies. No disco, algumas faixas entregavam a amplitude da influência do grupo: “Age of Consent” (“A Era do Consentimento”, termo usado pela cultura gay para designar o fim do preconceito contra homossexuais) e “Ecstasy” (que tornaria-se apelido da mais popular droga de seu tempo, o MMDA).

Depois o grupo gravaria a climática “Thieves Like Us” (lançada em abril de 1984), repleta de teclados, a faixa também foi supervisionada por Arthur Baker, embora sua presença seja mais discreta. Aqui o grupo enveredava por sua primeira balada lançada num single – o que provou uma escolha acertada. A faixa foi tão bem sucedida nas paradas que entrou na trilha sonora do filme A Garota de Rosa Shocking, estrelado por Molly Rigwald. Nas letras, a tentativa de encontrar no amor a causa para a apatia de sua geração – “Assisti seu rosto por tanto tempo/ É sempre o mesmo/ Estudei as rachaduras e rugas/ Você sempre está absorta/ Agora você vive à sombra/ Na chuva/ Chama-se amor/ E pertence a nós/ Morre tão rápido/ Cresce tão devagar/ E quando morre, morre de vez”. Mas o clima melancólico, crescido com um dos momentos mais belos do baixo de Hook, é interrompido pela esperança. “Eu vivi minha vida no vale/ Eu vivi minha vida nas montanhas/ Eu vivi minha vida à base de álcool/ Eu vivi minha vida à base de pílulas/ (…) Chama-se amor e é a única coisa que vale a pena viver”.

Abril de 1985 coincidiu com o lançamento do novo disco e o novo single do grupo. Low Life ironizava o anonimato visual do grupo ao estampar a cara de cada um deles em um das capas do LP. Fotos distorcidas, esticadas, que mostravam pessoas simples, antipopstars, num comportamento que se tornaria padrão entre os grupos de dance music. Puxando Low Life vinha o single “The Perfect Kiss”, que misturava a placidez de “Thieves Like Us” com a frieza dançante de “Blue Monday”, puro feeling cirúrgico. A letra exaltava um paraíso escondido na noite, na dança como solução para o vazio da existência: “Eu sempre pensei em ficar aqui ou sair/ (…) Fingindo não ver sua arma/ Eu disse: “Vamos sair e nos divertir”/ Eu sei, você sabe/ Acreditamos na terra do amor”. Ao mesmo tempo em que mostrava o paraíso, apontava o inferno, detectando a violência que crescia nas noites de Manchester: “Quando você está só à noite/ Você procura as coisas/ Que acha correto/ Se você desistir de tudo/ Você joga fora a única chance de estar aqui hoje/ Então outra briga começa na sua briga/ Você perde outro coração partido na terra da carne/ Meu amigo deu seu último suspiro/ E agora sei que o beijo perfeito é o beijo da morte”, canta ao cravar quatro minutos de música, seguidos de outros quatro de puro delírio instrumental New Order. Outro clássico.

“Sub-Culture” (que saiu em novembro daquele ano) segue o nível ao adicionar vocais gospel com teclados technopop à receita infalível do grupo. O vocal monótono contrasta-se com a melodia dos backing vocals e o ritmo massivo, que adorna a história da música, que escolhe a monogamia à boemia: “O que eu aprendo disso tudo? / Sempre tento, sempre erro/ Dia desses eu volto pra sua casa/ E você nem perceberá que está só/ Dia desses quando estiver só/ Você perceberá que não pode ficar com outra pessoa”. Mas lembra ao ouvinte que “essas minhas palavras malucas/ Podem estar tão erradas”. Ao fim da música, o indefectível baixo melódico entra em ação.

1986 via o grupo crescendo cada vez mais. A espera pelo sucessor de Low Life foi apaziguada por “Shellshock”, que ampliava ainda mais o espectro do grupo. Fundindo melodia, melancolia, ritmo e eletrônica, o single de março daquele ano era um manifesto pró-vida, mesmo que à força: “Não é suficiente até seu coração parar de bater/ Quanto mais fundo que você vá, mais doce é a dor/ Não desista do jogo até seu coração parar de bater”. Setembro assistia ao lançamento do melhor álbum do grupo, Brotherhood, uma incrível coleção de canções que funciona como um relógio se tocada na ordem original. O single do disco, “State of a Nation”, reduzia a eletrônica para voltar o foco à guitarra e ao baixo.

Mas o sucesso de Brotherhood foi tamanho que logo a Factory se viu obrigada a tirar um single de dentro do disco. A escolhida foi “Bizarre Love Triangle”, a música que está mais associada ao New Order. Não é pra menos, afinal todos os elementos do grupo estão ali: a melodia perfeita, um furacão de ritmo sintético, o instrumental do Joy Division diluído num dia de sol, o baixo inconfundível, o vocal sussurrado de Bernard Sumner, a indecisão entre o amor e a noite (o triângulo amoroso bizarro): “Eu me sinto bem, eu me sinto ótimo/ Me sinto como nunca deveria ter me sentido/ Quando fico assim, não sei o que dizer/ Por que não podemos ser nós mesmos como fomos ontem à noite?”.

O grupo entrou em 1987 como uma das maiores bandas do mundo. No mesmo ano, a Haçienda assistia a ascensão de uma nova tendência: a fusão de dance music com rock. Mas isso não era exatamente o que o New Order havia fazendo? Sim, só que agora toda uma geração de adolescente descobria os prazeres da dança ao mesmo tempo que debruçava-se sobre o rock psicodélico do fim dos anos 60. Consumindo ecstasy como se este pudesse sair de moda a qualquer minuto, a Haçienda tornou-se um dos maiores clubes noturnos do mundo e os jovens de Manchester não apenas construíam a cena de acid house como montariam bandas que dominariam o pop inglês na década seguinte, como Stone Roses, Happy Mondays, The Verve, Charlatans, Inspiral Carpets e Oasis.

Ao mesmo tempo DJs de todo mundo procuravam os singles do New Order para tocar em suas festas. Logo, eles se tornaram raridades no mercado, uma vez que a Factory não relançava seus singles. A solução foi uma coletânea que reuniria todo material que o grupo lançou em single: o resultado é Substance 1987, um dos melhores discos de todos os tempos. Com versões diferentes (refeitas em 87) para “Confusion” e “Temptation”, o disco reúne todas as canções descritas até aqui, mais a inédita True Faith, menor comparando-a com as outras faixas.

A coleção não é apenas uma das melhores coletâneas de uma só banda de todos os tempos (comparando-se com os duplos 1962-1966 e 1967-1980 dos Beatles) como prova o valor histórico do New Order. Recapitulando, o grupo deu início ao resgate da melodia na Inglaterra, à cultura clubber, à popularização da música eletrônica, à volta da respeitabilidade à dança, à cultura clubber e à acid house. Grupos tão diferentes quanto Orb e Belle & Sebastian devem sua existência ao quarteto de Manchester, cuja amplitude do espectro só não é maior que o dos Beatles (e talvez do Velvet Underground e do Kraftwerk). O mundo nunca mais foi o mesmo”.

(Ah, a falta de culpa da autocitação da geração ctrl+C, ctrl+V…)

O pós-punk cada vez se consagrada como meu gênero favorito, por vislumbrar flertes com o experimentalismo e com o pop deslavado. É um estilo musical meio mutante, que põe sob o mesmo guarda-chuva os revivalistas psicodélicos do Echo & the Bunnymen, as incursões cubistas do Public Image Ltd., os discos mais legais do Clash, do Wire, do Gang of Four, do Pere Ubu e do Talking Heads, toda a cena no-wave, grupos pop de primeríssima linha (Legião Urbana, Depeche Mode, U2, Smiths, Cure e R.E.M.) além de jornadas musicais que nos revelaram, em escala mais ampla e tudo ao mesmo tempo agora, mitologias inteiras, como o dub, o novíssimo hip hop, o krautrock, a vanguarda eletrônica e outros subgêneros misteriosos da história do som gravado, funcionando como lenha e munição para o nascimento de algumas das melhores bandas que já existiram: Sonic Youth, Pixies, Nirvana, Pavement, Flaming Lips, Hüsker Dü, My Bloody Valentine – enfim, o rock clássico dos anos 90.

Mas de todos estes grupos, talvez o que melhor resuma o estado das coisas – tanto na teria quanto na prática -, seja o New Order, cujo Substance é impecável, cheio de nuances emocionais e instrumentais, improvisando batidas eletrônicas, soando melancólico ou eufórico de acordo com a ocasião. O disco acerta por puro timing: foi lançado exatamente em uma época em que começava-se a esquecer o passado dark do grupo, tão pop quanto seus dias de pista. Um passo semelhante a que seu contemporâneo Cure fez com a igualmente fantástica coletânea Standing on a Beach (que, como Substance, incluiu os lados B dos singles em sua versão em CD) ou para onde o U2 foi em Achtung Baby, um disco que teria um impacto tão forte quanto os primeiros discos solo dos Beatles ou o começo dos anos 70 dos Stones, caso não fosse atropelado pelo Nevermind do Nirvana.

(Em menor escala, o Brasil viu discos igualmente fortes de bandas que nasceram na sopa de aminoácidos pós-punk, como o Õ Blésq Blom dos Titãs, o Supercarioca dos Picassos Falsos ou o Psicoacústica do Ira!, para ficarmos apenas em três exemplos óbvios)

Mas o disco duplo, mais do que quaisquer de seus contemporâneos, mostra o grupo tateando no escuro em busca do próprio som – convergindo pista de dança, lamento indie, atitude faça-você-mesmo, peito punk e sensibilidade inglesa numa versão levemente modificada do trio baixo-guitarra-e-bateria consagrado pelo rock’n’roll. Tocando seus instrumentos fora do padrão convencional e adicionando samplers, baterias eletrônicas, teclados frios e outras novidades dos digitais anos 80, o New Order não apenas deu o tom de parte do pop daquela década como o de boa parte da música pop que a sucederia.

E tem “Blue Monday”, única concorrente à altura de “Billie Jean” de Michael Jackson para o posto de melhor canção de todos os tempos, uma competição individual que travo sozinho e que já teve, entre seus competidores, nomes como “Strawberry Fields Forever” e “God Only Knows” – tanto é verdade que Quincy Jones comprou os direitos para lançar o grupo nos Estados Unidos, na época do Low Life. A música de 83, marco na cultura independente, na cena dance e na história do rock, pode se tornar a melhor trilha sonora para uma estada indefinida em uma ilha deserta. Seu bumbo sintético incessante inspira a dança ininterrupta e compactua a cumplicidade dos movimentos contínuos que auto-organizam o planeta. Beats intermináveis que furam o chão, os tímpanos, a razão. E numa audição a longo prazo, colocam-nos de frente ao único coqueiro da ilha, martelando a cabeça em direção ao tronco da árvore no ritmo das batidas eletrônicas. Até que rache o coco e consigamos ver, pela primeira e única vez, a própria massa cinzenta pulsando, quem sabe, em sintonia com o ritmo massacrante repetido, pela milionésima oportunidade, na única vitrola da ilha.

Nenhuma música parece ser melhor que “Blue Monday”, neste sentido. Até acabar.