Estamos em um puteiro, num escritório gigantesco, no quarto de uma adolescente enfurecida com os pais ou num delírio melancólico de uma menina de 10 anos? “I’m Good I’m Gone” é tudo isso e mais. É uma espécie de “Like a Virgin” indie, engolindo as referências do pop feminino escapista do século e as transformando em suor febril, como se houvesse doses pesadas de ironia consciente em cada hit de Britney Spears ou Christina Aguillera. É também uma descida tão íngreme quanto o furacão que leva Dorothy a Oz ou o buraco em que Alice cai para sair no País das Maravilhas – com palmas, ecos, backing vocals, um piano fantasmagórico e a certeza que sai diretamente da inocência: “E se você diz que eu não estou OK, então devemos ir/ Se você diz que não tem jeito que eu possa saber/ Se você diz que eu miro muito alto daqui de baixo/ Bem, diga que não, porque quando eu for/ Você vai me chamar, mas eu não atenderei o telefone”. Lykke Li vai longe.
29) Lykke Li – “I’m Good I’m Gone“
O disco de 2008 sela a reabilitação de Chan Marshall depois de começar a década com o pé na jaca. Deixando a marvada pinga de lado, ela refaz seu Covers Records, do ano 2000, à luz da nova sobriedade. Assim, se seu outro disco de versões começava impaciente com uma releitura quase exausta para “Satisfaction” dos Rolling Stones, Jukebox abre sorridente e relaxad e Chan recria o hino “New York” como se ele tivesse sido composto para a Band gravar. E com isso sai o fantasma do rock’n’roll para dar lugar ao espírito de gêneros musicais anteriores. E no lugar do rock surgem a soul music, o country, o blue e até o gospel (via Bob Dylan), que são hipnotizados pela deliciosa voz áspera e preguiçosa da senhorita. A temperatura é tão quente e confortável quanto o anterior The Greatest, mas Chan está tão à vontade ao microfone, que é possível ouvi-la esticar-se e reclinar-se (como na capa) a cada vogal esticada ou vocal solto no ar. Jukebox ainda conta com um irmão caçula – o EP Dark End of the Street – que, além da faixa-título, traz versões para Creedence Clearwater Revival, Otis Redding, Sandy Denny e Aretha Franklin, e complementa o disco lançado bem no começo de 2008 (e, por isso, esquecido por muitos) como um bis perfeito.
30) Cat Power – Jukebox
Cat Power – “New York“
Do you listen to your classical records any more?
Or do you let them sleep in their sleeves, where they be?
Do you suffer through those records that you turned around?
Or do you make them sleep in their sleeves where they weep?
Department of Eagles – “Classical Records”
Gigas de MP3 soltos, enchendo pastas e diretórios virtuais. Algum deles até formam discos, têm capas e seus autores são conhecidos por mais de 100 mil pessoas. Mas a vasta paisagem sonora de músicas produzidas em 2008 é composta por dezenas de milhares de artistas anônimos que não são conhecidos por mais que dez mil ouvintes – e a tendência é que isso se agrave e, em pouco tempo, estaremos, todos os seis bilhões de pessoas do mundo, fazendo música para dois ou três gatos pingados ouvirem. Isso é ruim? Não para mim – não é exagero pensar que mais música foi produzida na primeira década do século 21 do que em todo século 20 e não vejo como isso pode ser ruim. Existe, sim, outro problema com essa maçaroca de músicas mendigando três ou quatro megas de espaço no seu HD – a falta de ambição, de aspiração à grandiosidade, de disposição rumo a algo que vá ficar na história sem precisar, necessariamente, reinventar a roda ou criar um gênero tipo melancia-pendurada-no-pescoço-rock. A brusca mudança que aconteceu com o Department of Eagles pode dar um rumo para esse pop oba-oba dos anos 00. O projeto paralelo do carinha do Grizzly Bear (Daniel Rossen) era um laboratório de colagens de beats e samples quando foi criado, há cinco anos. Mas depois de tanto tempo marinando à espera, Rossen e seu compadre Fred Nicolaus transformaram o DoE em outra história. Em In Ear Park, sai o experimentalismo DIY eletrônico e em seu lugar entra a precisão para compor canções que pertencem a um cânone do século passado – quando a música feita para adolescentes começou a aspirar a eternidade. Estou falando de um material de composição que une autores como os Wings de Paul McCartney, Brian Wilson, Burt Bacharach, John Lennon, Randy Newman, Todd Rundgren, Harry Nilsson, Arnaldo Baptista, Alex Chilton, Andy Patridge, Steely Dan, Roxy Music, Joni Mitchell, Scott Walker, Raspberries e Traffic. Sim, músicas escritas ao piano, quase sempre cantando a infância e a inocência (o disco é dedicado ao pai de Rossen, que morreu no ano passado), que se alongam para além dos três minutos de duração e ultrapassam a estrutura estrofe-refrão-estrofe, sem cair no experimentalismo porraloca, em busca de uma narrativa (tanto lírica quanto musical) que equivalha a de um livro. Em alguns momentos (“Waves of Rye”, “Teenagers”, “Phantom Other”) o volume das guitarras aumenta para além do clima setentão, alinhando a dupla com o Mercury Rev e o Flaming Lips da virada do século, mas por quase todo In Ear Park o clima – cheio de violões dedilhados, banjos, teclados, cordas e percussão de orquestra (são tocadas ou sampleadas? Realmente não sei) e muito, muito piano – é bucólico e introspectivo, mesmo quando soa épico e se leva muito a sério. É, de longe, a melhor coisa que Rossen já fez na vida.
31) Department of Eagles – In Ear Park
Department of Eagles – “Teenagers“
O sample enganchado do começo e uma introdução à Dave Fridmann não nos preparam para as palmas que marcam o ritmo muito menos para os vocais esganiçados de Michael Angelakos. E pelo meio de “Sleepyhead”, percebe-se que o Passion Pit se encaixa perfeitamente na nova categoria criada pelo MGMT no ano passado – em que a psicodelia da pista de dança é traduzida para o século 21 sem perder seus ares essencialmente hippies. Mas o elemento bicho-grilo no caso não é o ripongo dos anos 60, mas o indie-kid fã de Scritti Pollitti e Prefab Sprout que, em algum momento dos anos 90, descobriu que, com uma guitarra e um sample, podia ser tão psicodélico quanto os Beatles ou o Pink Floyd de Syd Barrett. Primeiro single de uma banda ainda sem disco, “Sleepyhead” sofre do mesmo distúrbio bipolar que acomete a década – e é tão pueril e melancólica quanto assobiável e divertida. Uma jóia.
30) Passion Pit – “Sleepyhead“
“Essa lição você tem que aprender: você só ganha o que você merece”, diz a voz em português no início do tão aguardado terceiro disco do Portishead, anunciando uma desoladora paisagem sonora: ribombo de percussão, cordas sintéticas, ruídos de guitarra – tudo cessa quando entra a voz de Beth Gibbons, dramática e chorosa. A atmosfera pós-punk, o ritmo tenso, a temperatura fria e a voz épica confirmam que estamos tanto em 2008 quanto no meio de um disco do Portishead. Mas onde estão as canções? Por mais que as texturas e camadas de som superpostas pela base instrumental da banda seja afiadíssima, a melodia se desfaz entre grunhidos elétricos, teclados “colocados”, ecos e efeitos barulhentos. Fora a belíssima “The Rip” (que lá pela metade perde toda sua beleza rumo a um arranjo minimalista e industrial sem vontade), todo o resto do disco subiria algumas posições caso fosse uma digressão instrumental, uma sinfonia de ambiências que teria parentesco tanto na música eletrônica erudita quanto no hip hop sem MC ou no pop com aspirações à seriedade. Mas sem a voz da banda para defender dramas e tragédias como se chorar fosse sinônimo de cantar e canções estruturadas tradicionalmente (estrofe, refrão, estrofe, etc.), o novo do Portishead soa como um tiro no escuro: plasticamente é lindo, mas tanto quem atira quanto quem ouviu o disparo não conseguem saber se algo foi atingido.
32) Portishead – Third
Portishead – “The Rip“
Inevitável que o revival dos anos 80 saísse das bandas da trilha sonora da Sessão da Tarde e do Globo de Ouro para avançar para outros territórios – e 2008 viu o cenário pop revisitar seu apreço pelo continente negro, com todo aquela culpa pós-colonialista disfarçado de pena (seja em filmes, discos-tributo, gêneros musicais redescobertos ou na ascensão de Nollywood para o olho mundial). Revisitando os mesmos anos 80 habitados pelo “We Are the World”, pela world music do Sting, Paul Simon e Peter Gabriel e pelo Live Aid, essa (nova) pilhagem ocorreu mais no plano das idéias do que na vida real, embora juju music, highlife, kwaito e afrobeat ainda sejam o mesmo tipo de som (“música africana”) para a maioria das pessoas (como se a África fosse um só país… Alou Sarah Palin!), que também não se importam com o que acontece por lá. Um dos expoentes desta nova tendência, o grupo nova-iorquino Vampire Weekend seria só mais uma bandinha indie nova-iorquina tentando soar inglesa se não fosse essa queda pela música do Congo, daquela vaibe praieira que deu ao Caribe a essência de sua musicalidade e ritmo (a influência espanhola veio por cima, como cobertura e, em alguns casos, recheio). O hit “The Kids Don’t Stand a Chance” (pô, Bruno, achei o remix bonzão) funcionaria em qualquer época, mas tem tanto de apelo popular quanto não tem de criatividade ou originalidade. Se lançado nos anos 90, o disco homônimo de estréia do grupo cairia na vala comum da terceira onda do ska – mas provavelmente com um prefixo “alt.” na frente, pois eles não jogam pelo pop descarado, optando pelo indiesmo. Mas no meio da pasmaceira há uma pérola. “Cape Cod Kwassa Kwassa” é toda certinha: do suíngue à economia dos instrumentos, do baixo recolhido aos vibrafones, do riff curto e preciso aos acordes que desenham uma linha de baixo, da percussão que fica atravessada no refrão aos “uuuuuuuuuu” que o vocalista Ezra Koenig puxa lá pelo final. “Parece tão inatural/Peter Gabriel também”, canta a canção, auto-referente. Mas é o Peter Gabriel que parece tão não-natural ou o sentimento da música que soa tanto inatural quanto Peter Gabriel, transformando o ex-vocalista do Genesis num adjetivo. Aposto na segunda opcão, que torna a faixa ainda mais eficaz – e preciosa. Esqueça o resto do disco, você só precisa desses três minutos e meio.
Se o mashup é o gênero musical que melhor reflete a década (remixada, esquizofrênica, rock e dance ao mesmo tempo, infame e divertida), Girl Talk é o espelho que os 2ManyDJs haviam imaginado no ano 2000. Mas se o Night Ripper tinha sido um dos discos cruciais para entender 2006, neste ano Gregg Gills simplesmente fez um upgrade básico, sem propor nada propriamente novo. A impressionante montanha russa de samples ainda causa espanto e delírio ao mesmo tempo em que é impossível acompanhá-la de forma racional – esqueça quem está cantando o que, deixe-se levar pelo convite de ouvir boa parte da produção pop do final do século 20 num flashback no liquificador, que não tritura as diferentes partes dos singles usados transformando-os em uma maçaroca de som – e sim os derrete com gosto e pulso firme, deixando todos os temperos usados facilmente reconhecível. Feed the Animals ainda se deu ao luxo de desafiar abertamente os detentores dos direitos autorais usados – se o primeiro disco teve uma prensagem mínima e foi mais distribuído em formas não tradicionais de divulgação oficial (como sites de compartilhamento e redes P2P), o Girl Talk em 2008 tinha endereço virtual para ser encontrado e quem quisesse ainda podia pagar por sua obra, como o Radiohead havia cogitado em 2007. Mas mesmo repetindo a própria fórmula, Gills ainda conseguiu fazer um discaço – tão bom quanto importante. Agora é torcer para ele se reinventar – porque ele sabe que essa é a regra.
33) Girl Talk – Feed the Animals
Girl Talk – “Give Me a Beat“
Num ano em que uma das principais protagonista foi uma menina de 15/16 anos, quatro moleques um pouco mais velhos que isso (mas com menos de 20 anos) surgiam de Colatina, no interior do Espírito Santo, cantando a seguinte canção:
“I was born in the 90s and asked my mom
“Why did i came so late?”
Cause all my friends born in 80s
And i’m still lost in 90s
Oh my god, something isn’t OKWhen i go to the club
Waiting DJ play J-Lo
The only thing i hear is another Devo song
I wish Spice Girls were younger
So they could save the worldI was born in the 90s
(91 or 92 or 93 or 94)
We were all born silly guys
Now all we think is about fuck(I’d say I love Prince if you stay
Come and wash my “Purple Rain”)I still love my walkman
Cause these ipods are only trendsCome to my house
Spend the afternoon watching friends
Then we could go my room
Do the “Macarena” dance
Can’t touch this?
Can’t touch this?
Don’t go on baby cause it’s not working
I’m horny but I’m not a slut
I was born in the 90sSave my posters of Backstreet Boys
My Nintendo and Lion King box
Hold on mother I’m coming home tonight”
Toda “I Was Born in the 90s” é noventista: irônica, cospe referências como se precisasse delas para parar em pé, transformando pós-punk inglês em hit de rádio, enquanto finge apatia e casa riffs secos com bateria crua e camas de teclado que resvalam no gótico. E a música é uma demo. Forma e conteúdo não se distinguem e faz com que a Gangue do Mickey soe moderna e retrô ao mesmo tempo – algo como se o tema dos anos 00 fossem a volta dos anos 00.
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E hoje continuo com a retrospectiva do ano passado que havia parado pouco antes do natal. E amanhã nós dOEsquema começamos uma retrospectiva geral de 2008 apontando para o ano que começa: cada um dos quatro escreverá um texto sobre um determinado assunto por semana, até o carnaval, quando o ano começa de fato. Enquanto isso, vou acrescentando aos melhores discos e músicas do ano passado listas com 20 itens dos melhores mashups, filmes e shows de 2008, todos estes apresentados sem ordem específica.