Rolem os dados

E esse é a capa da Bizz 193, a da volta, agora de setembro. O texto é pré-edição.

Rolem os dados

A maior franquia viva de entretenimento do mundo volta a funcionar e os Rolling Stones baixam no Brasil no começo do ano que vem

Alexandre Matias

“Se você começar”, rugia rouca a guitarra de Keith Richards, “se você começar, eu não paro”. Trinta mil fãs urravam em contento uníssono, abrindo caminho para a pegada firme de Charlie Watts e, à entrada, Mick Jagger – calça de cetim azul, camiseta preta, jaqueta prateada, chapéu – repetia em inglês os versos sugeridos pelo riff de Richards, agora acompanhado por Ron Wood. Eram pontualmente oito e vinte da noite do horário local em Boston, no domingo 21 de agosto de 2005. O enorme palco montado no Fenway Park parece um estacionamento vertical ou uma versão metal do museu de Guggenhein e é o maior palco já montado na história do rock. Sim, são eles de novo.

Os Rolling Stones estão de volta e não adianta mais arranhar a garganta pra abusar de clichês sobre contradições – se eles estão nessa pela grana, o sentido de fazer rock depois de velho, a imortalidade do espírito juvenil, blá-blá-blá. Nem todo entusiasmo do “Fantástico” da Globo consegue nos convencer de que “eu sei, é só rock’n’roll, mas eu gosto”. Os Stones gastaram até mesmo esta fórmula ainda nos anos 80, mas ela foi resgatada nos anos 90 graças às duas vindas do grupo ao Brasil, em 95 e 98.

Mesmo assim eles continuam e apontam uma terceira passagem pelo país, num show que promete ecoar o mesmo papo furado sem imaginação (“as pedras continuam rolando”) na insípida mídia de entretenimento brasileira (se bem que vai ser engraçado ver o programa da Luciana Gimenez). Desta vez, elevado à enésima potência, pelo pequeno detalhe que um dos shows do grupo no Brasil (especula-se a possibilidade de haver um segundo) aconteça de graça na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, numa apresentação que, dado às proporções do evento, pode ser o maior público para um único show na história. Digno dos chavões e hipérboles que os Stones fazem questão de atrair para si mesmo.

O novo álbum também não preza pela humildade. Num comunicado à imprensa, os Stones disseram que batizaram o disco de A Bigger Bang devido à “fascinação pela teoria científica sobre a origem do universo”, um caô qualquer pra justificar um título que fale em uma explosão ainda maior do que o fiat lux que deu origem a tudo. Até parece que alguém acredita que eles estão lendo livros de física (programas de TV a cabo, vá lá), mas quem se importa? Todos sabemos que é só o ego de Mick Jagger consciente que esta deve ser sua última explosão em estúdio, ao menos ao lado dos Stones. Afinal de contas, o último disco com faixas novas do grupo (Bridges to Babylon) foi lançado há oito anos e, se lembrarmos que a soma das idades dos quatro integrantes originais chega a quase um quarto de milênio, é bem provável que não veremos mais estes quatro senhores trabalhando juntos num novo disco.

Portanto, como possível capítulo final, A Bigger Bang tem sua dignidade. Desliza por momentos de puro exibicionismo Jagger e nas baladas “Pontes de Madison” de Keith, mas condensa o que grupo significa em 2005 em bons momentos como o rockão “Rough Justice”, o blues cru de “Back of My Hand” ou o groove funk de “Rain Fell Down”. Não são apenas músicas feitas para tocar no rádio. Até o próprio rádio, território livre ocupado pelos Rolling Stones em quase todos os seus 43 anos de existência, parece obsoleto e ultrapassado – a própria banda disponibilizou faixas para download de graça em seu site oficial.

Todo exagero confere. A Bigger Bang não é simplesmente uma tentativa de voltar ao topo das paradas de sucesso (o que não acontece desde seu último grande álbum, Tattoo You, de 1983) e sim a coleção de jingles da nova campanha de marketing de uma das multinacionais mais bem-sucedidas do planeta. Um parque temático itinerante em que seus próprios CEOs prestam contas em público de um empreendimento que, só nos anos 90, faturou mais de um bilhão de dólares só em turnês, vendendo mais do que doze milhões de ingressos. “Os Rolling Stones são, de longe, a mais bem sucedida entidade em trânsito na história da humanidade”, disse o editor Ray Waddell, da revista Billboard, ao jornal norte-americano USA Today.

Mais do que uma banda, os Rolling Stones são parte de um ritual que o planeta começou a ser submetido desde que bandas inglesas começaram a migrar para o outro lado do Atlântico, tomando os Estados Unidos e, subseqüentemente, o mundo, com sua reciclagem correta do rhythm’n’blues norte-americano. Parte fundamental da histórica Invasão Britânica, que aconteceu entre a Beatlemania (1964) e a psicodelia (1967), os Stones criaram álbuns à sombra dos Beatles e singles à frente de seu tempo – “Brown Sugar”, “Honky Tonk Women”, “Satisfaction”, “Paint it, Black”, “Sympathy for the Devil”, “Jumpin’ Jack Flash”, “Street Fighting Man” -, antes de, a partir do final dos anos 60 (quando um de seus fundadores, o guitarrista Brian Jones, morreu), se tornarem uma entidade nômade para fugir dos problemas da lei, seja dos impostos da coroa britânica ou do departamento de narcóticos de qualquer outro país. Piratas em aviões particulares, ciganos elétricos.

À medida que atravessaram os anos 70, ampliavam seu caráter multinacional – moraram pela França, Jamaica, Estados Unidos, Marrocos, Canadá, Suíça e viajaram por quase todos os outros países da Europa, América e Ásia, sempre gravando e absorvendo música. Graças a turnês que ampliavam sua má fama de viver no limite da autodestruição, os cinco cresciam no imaginário ocidental como o símbolo do ego gigantesco dos anos 70 – Mick Jagger cavalgando um enorme pau inflável à medida em que Keith Richards subia na lista de apostas como o mais provável morto por overdose de drogas da vez. A rebeldia tornara-se excesso, mas foi domada pelo preciosismo de Jagger em relação aos negócios com a banda. Richards voltara do mundo dos mortos com sua lenta recuperação no início dos anos 80 e a tensão entre os velhos Glimmer Twins fez o grupo desabar de vez após Dirty Work, de 1986 – ano em que o outro fundador do grupo, o pianista Ian Stewart (que não queria tocar em uma banda adolescente e acabou se tornando roadie do grupo) morreu. Até Charlie Watts, sempre sóbrio, viciou-se em heroína neste período. Mas quando os trabalhos foram retomados, tanto Mick quanto Keith sabiam que o grupo era maior do que eles e que o logotipo da boca com a língua pra fora era uma marca tão emblemática quanto o Mickey da Disney e os arcos dourados do McDonald’s.

A grande turnê de volta dos Stones, Steel Wheels, em 1989, redeterminava todo o padrão para o mercado de entretenimento. A banda era uma franquia, um negócio e todos diretamente envolvidos com a produção a tratava como tal – só imprensa e fãs ainda viviam a ilusão de estarem assistindo a uma banda de amigos de longa data, tocando clássicos do rock’n’roll. Patrocinada pela Budweiser (quando, pela primeira vez, uma marca de cerveja investiu massissamente em um evento de música), a turnê começou a caminhar no mesmo ano em que o Muro de Berlim foi abaixo. E o cenário de ruínas da era industrial que se erguia por trás da banda parecia resumir o próprio conceito dos Stones: a falibilidade humana.

Que nos remonta, novamente, aos anos 60, quando o empresário mais famoso da banda, o espevitado Andrew Loog Oldham, forjou a imagem de antagonista dos Beatles. A relação foi muito boa para ambas bandas, que nunca brigavam de frente (sem lançar discos juntos ou fazer shows no mesmo dia, por exemplo), juntas ganhando território. Os Beatles eram um grupo de caipiras de uma cidade portuária que vestiam-se de couro e usavam topetes cheios de gel, que tiveram que ser reeducados por seu empresário Brian Epstein, tornando-se uma banda comportada e apresentável. Os Stones eram um grupo de blueseiros puristas com o risco de, se sujassem um pouco mais seu som, conquistarem um público maior e mais jovem. Os dois se completavam naturalmente.

“Os Stones se comportavam como Lennon queria que os Beatles se comportassem”, contou Richards em uma recente entrevista ao jornal “The Independent”. Marianne Faithful, em sua autobiografia, conta que Jagger ficou feliz ao ser comparado a uma cópia de John Lennon, pelo dono de galeria inglês John Dunbar: “Tudo que ele queria era ser ele”, escreve a ex-namorada do cantor. Mas mais do que “imitar os Beatles seis meses depois”, como ria Lennon, os Stones não cresceram sob a sombra do grupo de Liverpool. Eles eram a própria sombra e logo os efeitos desta escolha artística (“Paint it, Black”) começaram a ser sentidos na pele.

Primeiro, eles mesmos começaram a forçar a barra, com drogas mais pesadas, acabação full-time, militância política, espancamentos de namoradas (cortesia de Brian Jones), flertes com satanismo, homossexualismo e o crime organizado, filmando com o diretor francês Jean-Luc Godard, armas, promiscuidade e singles citando a frágil e velha natureza humana, boa ou má de acordo com a corrente. “A guerra, crianças, está a um tiro de distância”, canta Jagger até hoje, “o amor, irmã, está a um beijo de distância”. Enquanto os Beatles falavam da chegada de um amor supremo, onisciente e para todos, os Stones lembravam da natureza do individualismo, dos limites que precisam ser testados e que nem tudo na vida é fácil. O fim efetivo dos Beatles, vinte anos antes da queda do Muro de Berlim, era o início da Nova Ordem Mundial dos Rolling Stones, um período que também conhecemos como Anos 70.

Então eles começavam a atrair todo o tipo de más vibrações possíveis: além do fatídico festival de Altamont na Califórnia (e sua subseqüente passagem para o cinema, no documentário snuff “Gimme Shelter”), o grupo esteve envolvido em tretas com oficiais alfandegários, vigaristas, contadores, gangstas da Jamaica, policiais, políticos locais, cobradores, motoqueiros, roadies, traficantes, groupies, amigos junkies, aproveitadores, empresários e toda espécie de pulha que podia se reunir ao redor da Maior Banda de Rock’n’Roll do Mundo. Como os Estados Unidos sem a União Soviética, os Stones sem os Beatles foram até onde puderam ir, até que quase se acabaram no meio do caminho: Keith podia ter morrido, Mick queria lançar-se em carreira solo a todo instante, Mick Taylor não agüentava mais ser roubado por Jagger e Richards e não receber os créditos, Bill Wyman saiu da banda e voltou em seguida, Charlie não suportava mais rock’n’roll e estava mais interessado em seus canis de sheepdog e seus haras de cavalos árabes e Ron Wood estava viciado em cocaína, indo ladeira abaixo.

Foi com Steel Wheels – e daí em diante – que os Stones se assumiram ruína, para se recriar como uma paródia séria de si mesmo, algo que o U2 tentou com a turnê PopMart, em vão (aliás, o U2, seu principal rival em megalomania atualmente, mesmo 26 anos mais moço, não conseguiu esse equilíbrio entre a seriedade e o humor que os Stones tiram de letra desde, pelo menos, 1965). Assumir a máscara de lenda-viva como se encarna um personagem, sem querer convencer as pessoas de que você é de verdade ou de mentira. Por isso, o grupo, em 2005, rende tributos dos mais improváveis, como o remix do duo trance Deep Dish para “Saint of Me”, o disco-tributo Bossa’n’Stones (com regravações impagáveis de bandas fictícias como Groove da Praia, Marvin meets Banda do Sul e Michelle Simonal), o fato de Johnny Depp ter se inspirado em Keith para compor o pirata Jack Sparrow em “Piratas do Caribe” ou o convite que a revista “Playboy” fez à filha de Jagger com Jerry Hall, Elizabeth, de 21 anos, para posar em suas páginas. Não é um legado qualquer.

E é assim que os Rolling Stones acontecem em 2005. Não são só uma banda de velhos roqueiros querendo faturar um trocado a mais, como o cinismo ultrapassado à Sex Pistols (“Olhe para os Sex Pistols hoje”, ri Richards ao jornal Chicago Tribune, “nós estamos na frente, no limite. Ninguém esteve aqui antes”) poderia propor, e sim presidentes grisalhos de uma corporação global que, quando começam a trabalhar, como a Microsoft ou a Coca-Cola, abrem o mapa-múndi sobre a mesa e não falam em menos de milhões de dólares. Assim, os trabalhos a respeito de A Bigger Bang – um disco de conotação política, se permitem a inflexão – começaram sintomaticamente na mesma França que foi boicotada pelos EUA durante a Guerra do Iraque. A mesma França que assistiu à decadência aristocrática das gravações do clássico Exile on Main St. de 1972, na vila Nellcote, que Keith alugara em Villefranche (que o repórter Robert Greenfield, da “Rolling Stone” definiu como uma mistura de Suave é a Noite, de F. Scott Fitzgerald, com o disco de Greatest Hits das Shyrelles). A mesma França que assistiu às gravações do último grande arco de disco do grupo (entre It’s Only Rock’n’Roll e Tattoo You, todos gravados no estúdio Pathé-Marconi, em Paris).

O disco começou a ser composto e gravado em dezembro do ano passado, Jagger e Richards em Paris sob a atenção de Don Was, produtor que já acompanha o grupo há mais de uma década. Depois, vieram Ron Wood e Charlie Watts, este último recuperado de um câncer de garganta, para lapidar as faixas, que mais tarde seriam mixadas e masterizadas em Los Angeles. Antes disso, o grupo convocou uma coletiva no dia 10 de maio deste ano em Nova York para falar dos novos álbum e turnê, contrariando a expectativa que a viagem de divulgação da coletânea dupla Forty Licks fosse a última do grupo. Na apresentação, os quatro tocaram uma nova música do disco novo, “Oh No, Not You Again”, no meio de dois clássicos – a já citada “Start Me Up” e “Brown Sugar”. Apenas o baixista Darryl Jones, na banda desde a saída de Bill Wyman, acompanhava os quatro Stones – sem tecladista ou backing vocals.

Na coletiva, o grupo anunciou uma turnê de 12 meses que passa por 40 cidades norte-americanas, até dezembro, e que depois continua pela América do Sul, no começo de 2006, passando pelo Japão e, se o grupo conseguir, na China, onde tocam pela primeira vez. Em maio do ano que vem, eles passam pela Europa, estendendo a turnê até agosto do ano que vem.

De lá, o grupo começou a ensaiar para a turnê em clubes noturnos em Toronto, a mesma cidade em que Keith Richards foi pego com heroína pela polícia em 1977, sujando de vez sua barra e encerrando o fim de seu relacionamento com a modelo Anita Pallenberg. A mesma Toronto que acolheu o grupo sem pátria como sua banda local, que sempre retribui aquecendo suas turnês em lugares como o Palais Royale e The Phoenix. A mesma Toronto onde, em um hangar do aeroporto internacional de Pearson (cuja sigla foi imortalizada pelo Rush na instrumental “YYZ”), toda a estrutura do show estava sendo montada – nada menos que 70 caminhões!

Os Stones chegaram a Toronto no dia 14 de julho e começaram a ensaiar em uma escola particular que foi fechada para o grupo. Graças ao site do tecladista Chuck Leavell (http://chuckleavell.com) e à vigília dos fãs ao redor da escola, pode-se saber que, além das faixas tocadas pelo grupo no show de Boston, muitas outras foram ensaiadas, como “Paint it, Black”, “All Down the Line”, “Bitch”, “19th Nervous Breakdown”, “Live With Me”, “Dead Flowers”, “Sway” (que eles nunca tocaram ao vivo!), “Neighbours”, “Love Train”, “Sister Morphine”, “Loving Cup”, “Saint of Me”, “Midnight Rambler”, “Rocks Off”, “Harlem Shuffle”, além de versões para “Ain’t Too Proud to Beg”, “Mr. Pitiful”, “Get Up, Stand Up” (é, a de Bob Marley) e “Everybody Needs Somebody to Love”. Nenhuma banda na ativa tem um repertório desses.

Os ensaios culminaram com um show no clube Phoenix no dia 10 de agosto, com uma hora e quarenta e cinco minutos em que passaram 14 faixas para uma platéia de mil felizardos. O show, acelerado e preciso, mostrou a disposição dos Stones em rever o próprio catálogo ao mesmo tempo em que reduziu o aspecto Broadway que marca seus shows há mais de vinte anos, jogando a maior parte dos holofotes nas guitarras e não nos arranjos cheios de vocalistas de apoio e metais.

Para o show de abertura, a prefeitura de Boston preparou um esquema de contenção de trânsito para evitar congestionamentos, um problema da cidade devido à falta de estacionamentos públicos. As placas, engraçadinhas, citavam os Stones para alertar motoristas incautos do guincho: “We GET NO SATISFACTION by Towing You: Park Legally”, “The Transportation dept. Has It’s Own BEAST OF BURDEN, It’s called A Tow Truck” e “YOU CAN’T ALWAYS GET WHAT YOU WANT, So Don’t Even Try to Park Illegally”. A abertura do show em Boston foi do grupo Black Eyed-Peas, que não teve muita atenção do público (mesmo porque tocou ainda de dia).

O disco A Bigger Bang (o primeiro com uma foto do grupo na capa desde Their Satanic Majestic Requests, de 1967) é o carro-chefe da turnê, embora, ao contrário dos últimos discos de estúdio, ele não seja o tema dos novos shows – pelo menos no show de abertura, só quatro músicas eram do novo disco, num setlist com vinte e duas faixas.

Em Boston, o grupo estava à vontade, feliz por estar de volta à ativa, mas mais comedido do que em suas apresentações no Brasil – exceção feita a Mick Jagger, que não para de correr e sacudir ombros e joelhos. Estão cercados de velhos conhecidos: Jones no baixo, Lisa Fischer nos vocais, Bobby Keys (o mesmo desde os anos 70) no saxofone, Chuck Leavell, favorito de Mick Jagger, nos teclados, além de outros sopros, percussionistas e vocalistas. Atrás deles, os andares de metal que formavam o cenário contavam com bacanas que pagaram US$ 400 nos chamados “stage tickets” para assistir, literalmente de camarote, ao show ao lado do palco. Pelo público, caminhavam nomes como Carly Simon e Steven Tyler, do Aerosmith.

Mas houve quem pagasse até cem mil dólares no ingresso, para assistir ao show ao lado do “governator” Arnold Schwarzenegger, que usou tal recurso para arrecadar fundos para sua próxima campanha eleitoral. Jagger soube da presença do austríaco republicano e alfinetou, perguntando se o público havia encontrado com ele do lado de fora, se passando por cambista e vendendo camisetas dos Stones. É parte do novo posicionamento político de Jagger (o mais à direita dos Stones, que apoiava Margareth Thatcher nos anos 80), que tornou-o explícito na faixa “Sweet Neo-Con”, do novo álbum, em “homenagem” ao neoconservadorismo americano. A música (chatinha, é bom falar) não foi executada no primeiro show, mas foi ensaiada em Toronto e deve fazer parte do repertório da turnê, bem como outras (a balada “Streets of Love”, “Rain Fall Down”) também passadas pela banda no Canadá.

Pouco antes dos Stones entrarem no palco, as quase 30 mil pessoas do público começaram um coro de “Yankee Sucks!”. A explicação é beisebolística, afinal o grupo se apresentava no estádio do time Red Sox, grande rival dos Yankees de Nova York. Mas no show de abertura da turnê de lançamento de um disco em que Mick Jagger pergunta-se “onde o dinheiro foi parar? No Pentágono?” não deixa de ser engraçado ouvir dezenas de milhares de americanos berrando que os “ianques são uma merda”.

Mas se não se baseia no disco novo, a turnê também não se apega aos grandes clássicos da banda e visita hits de épocas diferentes, como “Shattered” (com a letra mudada, pós-11 de setembro), “She’s so Cold”, “The Worst” (com vocais de Keith Richards), “Out of Control”, “Heartbreaker” e “Beast of Burden”. Rendem a clássica “Tumbling Dice” (cujo mantra final parece ser regra para os Stones, “keep on rolling…”) para em seguida entrar em A Bigger Bang com “Rough Justice” seguida de “Back of My Hand”, em que Mick assume a guitarra slide e toca apenas com Keith Richards, sacramentando a eterna dupla.

“Night Time”, de Ray Charles, é a única versão da noite, em uma homenagem ao único artista da música pop a ter uma carreira mais longeva que a do grupo, culminando com um belo solo vocal de Lisa Fischer, que abre para as apresentações da banda – as maiores salvas de palmas vão para Charlie Watts e Keith Richards, saudado com gritos de “Keith! Keith! Keith!” pelo público. O guitarrista assume o microfone e Jagger deixa o palco, para seu já clássico set de duas faixas. Desta vez foram “The Worst” e “Infamy”, do último disco, ambas com Ron Wood aos teclados.

Mick Jagger volta para o palco, de jaqueta vermelha, enquanto canta “Miss You”. Uma pequena parte do palco vai se projetando para a frente e o grupo todo se concentra neste apêndice menor, transformando o estádio em um pequeno clube. No palco menor, tocam “Oh No, Not You Again”, “Satisfaction” e “Honky Tonk Women”. O palquinho volta ao seu lugar e abaixo do telão (sobre a banda) aparece uma enorme boca inflável com a língua para fora – é o símbolo dos Stones, desta vez em azul e flores. “Out of Control” faz a transição antes da apoteose final.

Que, claro, vem com “Sympathy for the Devil”. O palco torna-se vermelho e Jagger começa a escalar o cenário, enquanto fogos de artifício explodem por todos os lados. “Jumpin’ Jack Flash” e “Brown Sugar” (mais fogos) encerram a noite e a banda vai embora. Pra voltar para o bis, em menos de quatro minutos, quando tocam “You Can’t Always Get What You Want” e “It’s Only Rock’n’Roll (But I Like It)”.

Tudo muito preciso, mas satisfação garantida. Como quem reclama da falta de sabor da carne da rede de lanchonetes ou que o tênis daquela marca é costurado com trabalho infantil, é fácil apontar as inconsistências de um show de rock de tal calibre – falta de intimidade, som superestimado, a idade dos caras. Mas não é uma empresa que está cantando, tocando e correndo de um lado do outro do palco – são os mesmos caras que tocavam no Crawdaddy lotado em 62, no Hyde Park de graça em 69, que gravaram com Phil Spector, que tiveram shows abertos pela Tina Turner e Stevie Wonder, que viram o sujeito morrer assassinado pelos Hell’s Angels no show deles mesmos em Altamont, que brigaram com Peter Tosh… É o próprio contato com a história em forma de loja de departamento viva – delivery, ainda fresco, na hora marcada. Você não pode ter tudo que quer, mas se tentar, às vezes…