Mashup o Culote
Materinha pra Outracoisa, a revistadolobão, que vem com um CDzinho do Carbona encartado…
O mashup, a justaposição de músicas diferentes em um mesmo single, é um fenômeno online, uma subcultura clandestina, uma fonte inesgotável de hits e uma tendência econômica. E está apenas começando
De um lado, o ritmo cru e a putaria clandestina que negros americanos faziam com guitarras elétricas, baixo e bateria. Do outro, a toada pesada e o senso de bebedeira que brancos americanos faziam com banjos, violões e percussão. Moleques entre 20 e 30 anos que tentavam a sorte no incipiente mercado de discos – ganhar dinheiro se divertindo era possível! – e que cantavam sobre sexo, álcool e confusão nos mesmos compassos, tempo e pegada. Eram apenas divididos por barreiras raciais e econômicas, mas um profeta chamado Sam Philips anunciou a chegada do escolhido quando ele descobrisse “um branco com voz de negro”. Elvis Presley canalizou ambas subculturas em algo único – rhythm’n’blues com sotaque de caubói, country’n’western com suíngue de negão. Representava duas culturas como se elas fossem uma mesma, ao tocar gêneros diferentes na mesma levada. O veículo para a mudança havia sido tecnológico e técnico – instrumentos fáceis de se tocar, tocados de forma simples.
Cinqüenta anos passados e o universo inaugurado pelo big bang de Elvis segue em franca expansão. Da fusão original que inventou um modismo dançante nos anos 50 nasceu uma imensa e fragmentada árvore genealógica, cujos galhos se entrelaçam quase sempre, mesmo quando crescem em direções opostas. E, apesar de não existir uma consciência de que a história do rock surgiu da justaposição de realidades diferentes, é notável que os grandes momentos desta história aconteceram quando estas colisões cognitivas comandaram o imaginário coletivo.
Os Beatles venderam, primeiro para a Inglaterra, depois para os EUA e finalmente para o mundo, que a colcha de retalhos da música popular americana dos anos 40 e 50 era, na verdade, uma só trilha sonora. A psicodelia diminui as distâncias entre bandas de rock e o ocultismo, as drogas de expansão da consciência e outras experiências místicas. O punk rock surgiu de uma estranha semelhança entre as bandas de garagem americanas e a apatia dos jovens operários ingleses. O reggae começou como uma tentativa de se fazer soul music no Caribe. O indie rock sempre emulou o rock clássico em condições opostas – o anonimato em vez do estrelato, o fracasso em vez do sucesso, a fraqueza em vez do poder. O grunge chocava hard rock farofa com hardcore tosco. O hip hop transformava o MC dos bailes em uma estrela do canto falado e o DJ, que usava trechos de músicas, em um instrumentista pilotando uma vitrola. Em todos estes momentos – todos cruciais para a formação e consolidação do rock e da música pop como trilha sonora de nossos tempos – aconteceram as mesmas duas coisas que ajudaram a criação e popularização do rock’n’roll: técnica e tecnologia se tornando mais acessíveis, baratas e simplificadas, proporcionando a criação de novas músicas e gêneros criativos a partir da simples soma de duas realidades.
Em pleno século 21, isso é nítido. Fãs de música eletrônica começam a entender o bate-estaca do rock – e via electro, um gênero inventado pelo hip hop. Roqueiros skatistas passam a entender o groove negro e fundi-lo com guitarras pesadas. A lógica do dub e do funk africano passa a definir novos subgêneros em áreas diferentes como samba, techno e jazz. Rock, rap, música eletrônica, dance music – tudo é entendido na mesma batida, no mesmo riff, na mesma frase repetida várias vezes.
Até que, em 2001, o inglês Roy Kerr, usou a base de “Hard to Explain” dos Strokes com o vocal de “Genie in a Bottle”, da Christina Aguillera, para lançar-se com o nome de Freelance Hellraiser. A dupla de irmãos belgas David e Stephen Dewaele foi ainda além e juntou pedaços de várias outras músicas em um longo mix que casava gêneros e canções tão diferentes quanto “Push It” do grupo de hip hop Salt’n’Peppa e “No Fun” dos Stooges ou “Dreadlock Holiday” do 10cc com “Independent Woman” das Destiny’s Child em um longo set lançado com o nome de As Heard on Radio Soulwax – Part 2, assumindo profissionalmente um codinome de brincadeira, 2ManyDJs. E embora o uso de pedaços de canções para construir diferentes faixas seja um hábito quase tão velho quanto a história do rock’n’roll (experiências com vitrolas feitas pelo compositor francês Pierre Schaffner datam dos anos 50, a psicodelia inglesa já havia superposto a narração da “invasão marciana” feita por Orson Welles nos anos 30 sobre uma base de rock, o hip hop e a acid house já tinham discos clássicos – Paul’s Boutique dos Beastie Boys e Straight Outta Compton dos NWA de um lado, Into the Dragon do Bomb the Bass e as experiências da dupla Double Dee & Steinski do outro), foi no primeiro ano do novo século que este hábito tornou-se um gênero próprio que cresce cada vez mais: o mashup.
Também conhecido como “bastard pop” ou “bootleg” (ou abreviações como “booty” ou “boot”), o gênero, como mais um sólido degrau na escalada do pop, propõe a fusão de realidades diferentes a partir de facilidades tecnológicas e técnicas. São duas ações simultâneas: programas de edição de áudio de interface cada vez mais simples e de resultados convincentes e profissionais caminham lado a lado com a proliferação de arquivos de áudio de toda espécie através da troca de MP3s online. Assim, um material que antes era disponibilizado apenas para DJs – modalidade que, à medida em que a eletrônica e o hip hop ganharam terreno, tornou-se tão distante do público quanto o decadente popstar – passou para a mão de pessoas com uma boa conexão online, um processador potente e um HD parrudo. É um passo ainda além do “faça-você-mesmo” do punk rock – quem faz música, nesta cena cada vez maior, são as mesmas pessoas que baixam e compartilham música na internet. Ou seja – gente que nem eu e você.
Citar nomes destes artistas é algo improdutivo, pois eles se multiplicam numa velocidade incrível, pelo simples fato de, ao ouvir um mashup, qualquer um comece a cogitar possibilidades de fusões musicais. Uns vêm da colisão de extremos opostos (Eminem com Smiths?), outros de possibilidades lingüísticas (há uma faixa que reúne quatro canções chamadas “Last Night”/“Last Nite”) e trocadilhos infames (“Smells Like Beach” reúne Nirvana e Beach Boys) – e saem das cabeças, mãos e mouses de pessoas chamadas CCC, DJ Zebra, Go Home Productions, DJ BC, Lenlow, Arty Fufkin, DJ Moule, Bobby Martini, C.H.A.O.S. Produtions, Team9, A plus D, Party Ben, DJ Riko – mas é só puxar qualquer um deles pra descobrir uma outra lista de artistas anônimos e igualmente numerosos.
A subcultura mashup se movimenta na internet e em festas – San Francisco, Nova York, Londres e Paris têm suas cenas consolidadas a partir destas baladas – e não se restringe a reciclar flashbacks. Um dos principais desafios destes produtores é capturar o sucesso mais recente e misturá-lo com hits do passado: LCD Soundsystem, o último disco de Madonna, a “Promiscuous” de Nelly Furtado e “Crazy” da dupla Gnarls Barkley são alguns dos favoritos entre estes produtores.
Gnarls Barkley, aliás, é o melhor exemplo do que está acontecendo com esta cultura. O grupo foi fundado pelo DJ Danger Mouse que, há três anos, mashupou o Álbum Branco dos Beatles com os vocais do Black Álbum do rapper Jay-Z, criando o “Grey Álbum”. Depois de ameaçar ser processado pela EMI, detentora dos direitos dos Beatles, o DJ suspendeu as vendas do disco e o download das músicas de seu site, mas teve a solidariedade de mais de uma centena servidores de internet pelo mundo, que, num ato de desobediência civil online, disponibilizaram gratuitamente o álbum em protesto contra a rigidez da EMI. Este protesto aconteceu no dia 24 de fevereiro de 2004, dia que ficou conhecido como “Grey Tuesday” (“Terça-feira Cinza”), em homenagem ao disco.
A repercussão do caso levou Danger Mouse a produzir o disco do ano passado do grupo Gorillaz, sendo responsável direto por duas das melhores músicas de 2005 – “Feel Good Inc.” e “Dare”. Na prática, Damon Albarn, do Blur (mentor dos Gorillaz), chamou Danger Mouse para produzir singles para o grupo de hip hop De La Soul e para o ex-vocalista dos Happy Mondays, Shawn Ryder, estrelas centrais de cada uma destas faixas do Gorillaz, respectivamente (ironicamente lançadas pela EMI). Dos Gorillaz, Danger Mouse produziu o disco Danger Doom ao lado do produtor de rap MF Doom – e usando samples de personagens do Adult Swim, a faixa adulta do Cartoon Network. E depois lançou o grupo Gnarls Barkley, ao lado do rapper Cee-Lo (ex-Goodie Mob), responsável pelo melhor disco do ano até então, St. Elsewhere, além da melhor música do ano, a citada “Crazy” – que também foi a primeira música vendida apenas online a chegar ao topo de uma parada de vendas (no caso, a britânica).
MP3s no topo das paradas, discos e desenhos animados, soul e indie dance, processos e discos de ouro – a história de Danger Mouse é uma interessante fábulas sobre as transformações de nossa época. E quando o Google começa a falar em fazer mashups de sites e a bolsa americana passa a elogiar mashups de empresas (diferentes de meras fusões), mais uma vez vemos a música assumir o papel de carro-chefe das transformações de nossa época.
E isso é só o começo.