Nesta quarta-feira acontece a última exibição de um filme no Centro da Terra antes da realização da edição deste ano do festival de documentários In Edit (cês viram que saiu a programação completa? Depois comento aqui), com quem firmamos esta parceria no início do ano. E para fechar esta fase, o filme escolhido foi Manguebit, de Jura Capela, que conta a história de um dos movimentos mais importantes da música brasileira nos últimos 50 anos, que não apenas lançou a geração de artistas como Chico Science & Nação Zumbi, Otto, Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio e Karina Buhr, como influenciou cenas locais de todo o país a valorizar a sua própria cidade. Com entrevistas com todo mundo que esteve envolvido com o movimento e cenas de arquivo maravilhosas, o documentário é uma introdução perfeita àquela transformação cultural e o melhor documento sobre aquele período já feito. O filme começa a ser exibido a partir das 20h, os ingressos podem ser comprados neste link e o trailer pode ser visto abaixo:
E essa versão demo de “A Cidade”, gravada na versão pré-histórica da Nação Zumbi chamada Bom Tom Rádio? O grupo era formado por Chico Science, Jorge du Peixe e o produtor H.D. Mabuse. Entre o pós-punk e o hip hop oitentista, dava o recado com a música que depois se tornaria hit nos anos 90, mas com a vibe oitentista que adubou o caminho para o surgimento do mangue beat.
Que pérola.
“O Moogbeat começou como um desafio musical, de recriar em um único sintetizador monofônico de toda aquela mágica sonora da Nação”, me explica Carlos Trilha, por email, sobre o recém-lançado Moogbeat – Nação Zumbi para Minimoog, em que o ex-colaborador da Legião Urbana, Carlos Trilha, reinventa clássicos da banda pernambucano no formato analógico retrô que parece voltar no tempo dos primeiros videogames. “Foi um estudo, uma forma de entender a sonoridade e de se apropriar de alguma maneira daquela força, um presente pra eles, queria impressioná-los”, continua o músico, conhecido pela parceria nos dois únicos discos solo de Renato Russo.
“No começo não tinha a intenção de fazer um álbum, pois não sabia como soaria, mas quando a primeira música ficou pronta e mostrei pro Pupillo, que me chamou de louco por conta da quantidade de detalhes que sintetizei no Moog, que e sugeriu que eu fizesse um álbum inteiro, é que percebi a riqueza sonora e artística do que estava nascendo”, continua Trilha, referindo-se à versão que fez para “Meu Maracatu Pesa uma Tonelada”. Depois partiu para “Prato de Flores” e aos poucos foi mostrando para o grupo. “A banda curtiu de cara a ideia do álbum e cada música nova que eu fazia era um festival de comentários e mensagens que foram me dando muita satisfação durante o processo. Quando eles sabiam que eu havia começado alguma música nova, ficavam cheios de curiosidade e me cobravam que terminasse logo para eles ouvirem.”
O projeto começou como uma brincadeira mas já começa a render frutos além do disco – e Trilha já está fazendo shows deste novo formato. “Muitas ideias surgiram, não sabia se montaria uma orquestra de Moogs ou se simplesmente colocaria tudo em uma MPC e deixaria algumas linhas para tocar ao vivo”, lembra. “Até que cheguei na forma do Concerto para Sintetizadores, onde toco clássicos da Synthesizer Music, composições próprias e músicas do Moogbeat. Nestes, os sons gerados originalmente no Moog foram substituídos por outros doze sintetizadores clássicos que ficam no meu ‘cockpit’ de máquinas sonoras.” Trilha não descarta fazer projetos do tipo com outros artistas, mas por enquanto quer focar neste novo formato ao vivo, o Concerto para Sintetizadores, que terá parte de seu repertório extraído do Moogbeat.
Vinte anos após sua morte, o legado de Chico Science está mais vivo do que nunca. Escrevi sobre isso no meu blog no UOL.
“Modernizar o passado é uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enchem a imaginação de domínio
São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade
Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os Panteras Negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia”
Não importa o que poderia ter acontecido com Chico Science se ele não tivesse morrido vinte anos atrás no trágico acidente daquele 2 de fevereiro, um dia de domingo, entre Olinda e Recife. Todas as hipóteses cogitadas são meros exercícios de imaginação e o personagem criado por Francisco França para sublinhar sua mensagem poderia seguir destinos bem diferentes, como cada um de nós, independentemente de sua vontade. O que importa é o que Chico Science fez enquanto esteve vivo, sua marca emblemática nos rumos da música – e da cultura – brasileira desde que entrou no imaginário mental do Brasil. Ele hoje é mais importante do que nunca.
Pois vivemos num mundo – e num país – antevisto por Chico em sua versão brasileira do cyberpunk. O movimento de ficção científica criado pelos escritores William Gibson e Bruce Sterling nos anos 80 cogitava um futuro próximo completamente distante do futuro Jetsons imaginado pela geração anterior. A crise ambiental, a superpopulação, as megalópoles e, claro, a presença do computador e da internet como sistema nervoso de um planeta decadente, tornava a aurora do século 21 sombria e aquela distopia unia obras que adubaram o inconsciente coletivo vindo de diferentes artistas em diferentes mídias – do Akira de Katsuhiro Otomo ao Blade Runner de Ridley Scott, passando pelo Tron da Disney, o Incal de Jodorowsky e o Robocop de Paul Verhoeven -, criava uma realidade totalitária e alienante como a que vivemos hoje. Uma mistura do 1984 de George Orwell com o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley embebedida pela internet e por dispositivos de vigilância portáteis (nossos celulares).
O mangue beat, criado no Recife por Chico Science, sua Nação Zumbi, e pelo Mundo Livre S/A de Fred Zero Quatro, trazia este futuro para o sol de rachar da linha do Equador. O cyberpunk era urbano, sombrio, meio gótico, meio romântico (impossível não notar a semelhança entre o movimento musical liderado pelo Duran Duran – o New Romantic – com o marco-zero do cyberpunk – Neuromancer). O mangue beat era diurno, à praia, pés na areia – e na lama -, o horizonte é o mar. Ao criar um personagem que funcionava como um narrador daquele novo universo, Chico Science conectava a distopia cyberpunk ao terceiro-mundismo sonoro que une o reggae ao bhangra, o raï ao hip hop. Plugava o Brasil à aldeia global de Marshall McLuhan antes mesmo da ascensão da web – e pela cultura da favela global, de países subdesenvolvidos.
Conheci Chico um pouco antes de ele tornar-se um nome nacional, quando a importância do movimento que puxava a partir do Recife ganhava reconhecimento em todo o país, mas ainda nas entranhas, no meio independente que outrora conhecíamos como underground. Estava começando minha carreira no jornalismo quando pude entrevistá-lo pouco antes do lançamento de seu primeiro CD, lançado pela Sony. A gravadora havia o contratado ao lado de sua Nação Zumbi sem nem entender direito o que estava acontecendo e a prova disso é que a primeira vez que os encontrei foi no camarim da boate Pachá, em Campinas, quando o grupo pernambucano foi escalado para abrir o show da banda de eurodance Culture Beat, cujo hit robótico e sem alma “Mr. Vain” era o extremo oposto do groove vivo, intenso e de protesto puxado por Chico. A banda divertia-se com o choque dos extremos, enquanto Chico ficava tentando entender quem era o público que estava assistindo àqueles dois shows tão diferentes.
Era uma característica que pude perceber nele das outras vezes que nos encontramos – ele sempre estava tentando entender algo que não entendia. Buscava o contexto, tornava-se aluno. Gostava de conversar e de contar histórias, mas, diferente da maioria dos artistas, também gostava de ouvi-las. Arregalava os olhos e arqueava as sobrancelhas, concordando com a conversa enquanto ouvia.
Depois botava aquilo tudo pra fora. Ao colocar os óculos escuros, tirar a camisa, botar o chapéu e abrir o sorriso de lado, Chico virava o arquetípico mangue boy, criava o b-boy nordestino cujo semblante hoje é tão forte quanto os de Bob Marley, Che Guevara e Raul Seixas – um personagem que certamente foi influenciado pelos de Angeli, repare. A partir deste púlpito, narrava sagas de vida e morte pelo sertão, crônicas violentas nas favelas, dias de preguiça na praia. E aos poucos redesenhava um país de contrastes, que já havia sido desenhado pelos modernistas nos anos 20 e pelos tropicalistas dos anos 60. Repensava a Casa Grande e a Senzala com um satélite na cabeça, contextualizava globalmente os tristes trópicos.
Chico viu, há mais de vinte anos, o país que vivemos hoje. As caricaturas dos contrastes, a truculência no traquejo social, a violência sob a superfície fanfarrona, o sorriso aberto que fecha-se num segundo em uma carranca. Suas letras são alegorias que usam arquétipos e ícones estabelecidos para falar sério em frases de efeito cujo significado vai além do mero slogan. É só prestar atenção. “Há fronteiras nos jardins da razão”, “em cada morro uma história diferente que a polícia mata gente inocente”, “cerebral, é assim que tem que ser”, “o de cima sobe e o debaixo desce”, “no caminho é que se vê a praia melhor pra ficar”, “é o povo na arte, é arte no povo e não o povo na arte de quem faz arte com o povo”.
Líder de uma banda de protesto para dançar, Chico Science foi ele mesmo a antena cravada no mangue, no caso, o Brasil. O impacto de sua breve passagem por nossas vidas não deve ser lembrado apenas com tristeza ou saudade, mas pela importância e força representadas nos poucos anos que viveu conosco durante os anos 90. Sua influência é presente, contínua. Chico está vivo.
Aproveitando o relançamento dos três primeiros vinis do Ira!, o site Azoofa (esse nome é muito feio, broder) fez uma longa entrevista com o Nasi, que comentou sobre a relação do Psicoacústica com o nascimento do mangue beat:
“Foi um disco que decepcionou não só as rádios e a gravadora, mas também parte da crítica, que classificou o Psicoacústica como um disco pretensioso. Tipo: ‘Quem são esses caras aí pra misturar maracatu com rap e rock?’. Até hoje vejo o cara que falou isso aí assinando diversas resenhas. Mas de certa forma, despretensiosamente, Advogado do Diabo acabou sendo a base do manguebeat. Não que fizemos a música e dissemos: “Estamos aqui inaugurando o manguebeat!”. Não, mas eu falei pro André: “Você é pernambucano, conhece a levada do maracatu, faz no pandeiro! Vamos fazer um rap, vamos colocar guitarra, um scratch!” Na época eu chamei o Thomas Pappon, ex-baterista do Voluntários e que hoje é jornalista da BBC, pra fazer o release do Psicoacústica. Ele fez um release todo cheio de frescura, mas um outro jornalista me disse que o Thomas riu pra caralho do disco, que achou uma bosta! Lembro de ir com o André na casa dele, picar o release e jogar na cara dele. Vai se fuder, você não e obrigado a gostar! Se você não gostou, não faz um release falando da rebimboca da parafuseta! Tudo isso é só pra dizer que é um disco que não passou batido! (…) Quando nós conhecemos o Chico Science, não existia Nação Zumbi. Conheci o Chico quando ele tinha o Loustal ainda (embrião da Nação Zumbi, formada em 1989 por ele, Lúcio Maia e Dengue). Ele trabalhava, inclusive, num balcão da Vasp, ainda! Eu já trabalhava com rap e ele veio falar, certa vez: ‘Sou fã de rap, gosto do Thaíde, que você produziu…’.”
Leia a entrevista inteira lá no site deles.
Mundo Livre S/A e Nação Zumbi subiram juntos durante essa semana para apresentar o disco em que tocam músicas uns dos outros no palco do Sesc Pompéia. Foi a oportunidade que o Radiola Urbana encontrou para inaugurar seu canal no YouTube, fazendo os dois vídeos abaixo no show de terça-feira (a foto acima, da Piky, é do show de quarta). Sugiro que você se inscreva no canal porque semana que vem tem o 73 Rotações e é inevitável que eles subam vídeos relacionados aos shows…
Mundo Livre S/A – “A Praieira”
Nação Zumbi – “Pastilhas Coloridas”
E vocês viram esse disco que tá pra sair, em que a Nação Zumbi toca músicas do Mundo Livre S/A e vice-versa? Olha duas amostras aí embaixo…
Nação Zumbi – “O Velho James Browse Já Dizia”
Mundo Livre S/A – “Samba Makossa”
Seria foda mesmo se as duas bandas fizessem uma turnê desse disco fazendo shows juntos, como já fizeram.
E o João Marcelo aproveita a discussão entre a banda Volver e o mangue beat para resgatar essa pérola que os Playboys tocavam pela virada do milênio…
Com a faixa “Mangue Beatle”, a banda pernambucana Volver traçou uma linha que os separa da cena que recolocou Recife no mapa no pop brasileiro nos anos 90 e está causando confusão no estado, como conta o Helal do Megazine:
“Em Pernambuco, o movimento manguebeat é considerado uma instituição acima de qualquer crítica. Sou fã de Mundo Livre S/A, mas acho que o meu estado é grande demais para comportar só carangueijos. Eu adoro a cultura indígena, mas isso não quer dizer que eu quero morar numa oca”, comenta o vocalista do Volver, Bruno Souto. Próxima estação é o terceiro CD da banda. O primeiro desde que o quinteto se mudou para São Paulo.
“O fanatismo é tão grande que as pessoas acham que criticar qualquer aspecto do mangue é o mesmo que xingar o estado de Pernambuco. Gravamos o clipe com a bandeira para mostrar que somos pernambucanos até a alma. Mesmo assim, muita gente achou que fizemos isso para provocar. Tudo bem. Artista não tem só que agradar. Precisa cutucar um pouco também.”
Tá certo. E o disco novo do Volver já saiu pra download. Não que eu recomende, mas há quem goste. Olhaê o clipe:
E o Carneiro pautou o Clemente para dar uma sacada na Ocupação Chico Science que está acontecendo no Itaú Cultural até o dia 4 de abril e trombou com a quadrilha que armou o mangue beat: Fred Zero Quatro, Jorge Du Peixe, DJ Dolores, Rogê, Paulo André… Só gente fina.