Lourenço Mutarelli: “Eu era outra pessoa”

, por Alexandre Matias

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Muito foda essa matéria do UOL sobre a nova fase de Lourenço Mutarelli, cujo personagem Diomedes figura a estatueta do prêmio HQ Mix deste ano (veja abaixo) que aconteceu no fim de semana. Ele renega não só seu trabalho na época dos quadrinhos quanto sua personalidade ao redor dele:

Ninguém consegue ler os seus quadrinhos confortavelmente, nem ele próprio. “O desenho me incomoda, o que eu fazia antes me incomoda”, disse. “Eu acho que esse traço é bom no sentido que ele é muito íntegro com o universo que ele relatava. Ele dava muito a atmosfera daquele ambiente. Por isso não é ruim. É ruim porque desgasta. De verdade, eu era outra pessoa. Quando eu me lembro do que eu fazia, parece que não era eu, era um cara que eu conhecia. E que eu conhecia vagamente.”

E o próprio Mutarelli é difícil de ser entendido confortavelmente. Apesar de ser um dos mais aclamados quadrinistas brasileiros, diz que odeia fazer e até ler quadrinhos depois que passou a se dedicar à literatura nos anos 2000. Não se vê no apartamento da Vila Mariana (zona sul de SP), onde ele mora com a mulher, o filho e quatro gatas, as dezenas de estatuetas que recebeu, como o Prêmio Ângelo Agostini, o Troféu HQ Mix e o da Bienal Internacional dos Quadrinhos. “Isso não me diz nada. Eu dei todos para as pessoas, não tenho mais nem os prêmios literários que eu ganhei. Não gosto dessa coisa de prêmio e troféu. Gosto quando é em dinheiro, mas esses eu nunca ganho”, conta, rindo e fumando no sofá enquanto acaricia sua gata Mentira, deitada em seu colo. “Eu preciso é de dinheiro. Sou um cara totalmente falido.” (…)

Parte da aversão que Mutarelli sente hoje pelos quadrinhos ele atribui justamente à quantidade de esforço e desgaste para se criar algo no formato. “No quadrinho, você precisa trabalhar no mínimo dez horas por dia desenhando. Escrevendo [romances], eu trabalho menos horas por dia, trabalho com muito mais prazer. E vivo também. Antes, eu não vivia, só trabalhava. A morte do meu pai [em 2001] também tirou um pouco do sentido sobre o que eu fazia. Era muito sobre a relação com ele. Quando ele morreu, perdi muito da vontade de fazer quadrinhos, mas era o meu trabalho ainda. E também não ganhava nada, a minha mulher que me bancava. Eu ganhava uma merreca.”

Mutarelli também não se sente confortável no mundo das HQs. “O meio dos quadrinhos sempre me incomodou bastante. Os próprios quadrinistas mesmo. É um meio muito bitolado. Nos quadrinhos, eu me sentia muito deslocado e já não me sinto mais assim agora na literatura. Eu tenho tentado não participar de nenhum evento de quadrinhos. Se eu sou referência, acho que não vou continuar sendo por muito tempo, porque eu falo muito mal de tudo isso. Vou ser amaldiçoado. Eu não tenho mais relação com esse mundo.”

Conversei duas vezes com Mutarelli: uma vez no ano 2000, num longo papo por telefone numa entrevista para o Correio Popular em Campinas (que rendeu meu nome nos agradecimentos de sua tour-de-force O Dobro de Cinco, apareci como o nome de uma das “grifes” que “vestia” o protagonista Diomedes) e outra dez anos depois, num passeio por São Paulo, quando descobri os pontos favoritos dele na cidade (inclusive seu apartamento na Vila Mariana) em uma matéria para o Divirta-se do Estadão. Nas duas oportunidades, percebi algo específico: como Mutarelli exagera seu mau humor, sua secura, sua rispidez. Lendo a reportagem feita pelo UOL tem-se a impressão de que ele demoniza o próprio passado e abandonou tudo para a literatura, numa conversão amalucada. Mas dá para ler nas entrelinhas que ele não quer mais aquela carga pesada dos anos 90, mas continua rindo de tudo com a cara mais séria que consegue fazer.

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