Lost: 316
“Nós não vamos para Guam, vamos?”
Paragrafinho básico pra quem não chegou a essa altura da temporada se ligar que o papo aqui não é com ele e zarpar o olhar pra outras bandas do saite se não quiser ser devidamente spoilerado. Se você ainda não viu o sexto episódio da quinta temporada de Lost, chamado 316, pode dar no pé para não correr o risco de ler sobre o que não quer.
316 foi, sem dúvida, o episódio desta temporada que mais fez referência à própria série. Desde a abertura enigmática, que recriava a primeira cena da primeira temporada, à expectativa antes do novo avião levantar vôo, várias cenas e detalhes amarravam o episódio à narrativa de Lost mais do que à sua mitologia. Desta forma, vimos Jack acordar mais uma vez na ilha, sem saber onde estava, ao mesmo tempo em que a cena do aeroporto passava uma enorme sensação de deja vu – Sayid chegando algemado como Kate no primeiro vôo, Hurley levando um estojo de violão para nos lembrar de Charlie e todo o jogo de reconhecimento dos novos/velhos passageiros. O sexto episódio da temporada sublinhou um ponto específico: além da mitologia que existe por trás dos segredos de Lost, há outra mitologia em curso – a do próprio seriado e de seus personagens, que, como lembram seus produtores, contam uma história mais importante do que todo o mistério envolto na ilha.
Já a mitologia clássica não foi esquecida e surgiu ameaçadora, grandiosa e encantadora ao mesmo tempo, quando descemos a escada espiral da igreja em que Ms. Hawking conversava com Ben para sermos apresentados à mítica estação Dharma fora da ilha, a Estação Farol. O porão da igreja é um verdadeiro altar para a mitologia da série: computadores dos anos 70 por todos os lados, um quadro negro cheio de fórmulas e equações, no chão uma imagem do planeta Terra visto do pólo norte e, por toda a sala, um enorme pêndulo balançava entre os personagens. Didaticamente, Hawking explica que a ilha foi descoberta quase por acaso – ou matematicamente? -, embora sua localização fosse difícil de ser precisada, até que “um cara muito esperto” criou aquela estação e conseguiu encontrá-la. Junto com a explicação vem uma foto do exército datada de 1954, o que nos explica que os uniformes militares vestidos pelos Outros em Jughead podem ter sido desses primeiros exploradores da ilha.
Passada essa cena, o episódio caiu na pseudocorreria que vem dando a tônica da série esse ano – e todo o blablablá sobre os Ocean Six terem que voltar para a ilha, porque Locke disse que eles tinham que voltar, nhenhenhem e coisa e tal. É incrível como essa parte de Lost tem sido pior que previsível, mas enfadonha. Como já havia dito, os problemas parecem apontar complexidades que podem comprometer a pressa dos personagens na história mas sempre são solucionados em duas cenas, às vezes nem isso, basta uma simples citação. Dessa vez, o lenga-lenga envolveu Jack e o cadáver de Locke, primeiro com um bilhete-suicida que John deixou ao doutor Sheppard (transtornando-o com a informação que o careca havia se matado – mas isso não tava na notícia do recorte de jornal?) e depois com o papo do corpo de Locke ter de viajar usando os sapatos do pai de Jack (tirados da cartola, ou melhor, da mala de um personagem tirado da cartola, o avô de Jack). Tudo mal costurado.
Mas cabe uma ressalva sobre os sapatos. Sapatos fazem parte da mitologia de Lost, embora de uma forma quase subliminar. Vamos rebobinar para a primeira cena da primeira temporada (a mesma reencenada em 316) e veja em quem a câmera foca logo depois que Jack sai correndo pela selva:
Perceba também a importância que o sapato de Charlie tem para a câmera logo depois que ele mergulha em busca da estação Espelho, no final da terceira temporada (depois dos 3:30):
Quando Locke e Sawyer entram no Black Rock, John pergunta se James não vai se calçar; quando o personagem de Rodrigo Santoro, Paulo, aparece morto, Sawyer vê seu tênis pendurado em uma árvore; Locke tirou os sapatos antes de descer a escotilha e Kate tentava tirar os sapatos de alguém no primeiro episódio da série – fora os onipresentes calçados brancos das aparições fantasmagóricas do pai de Jack, Christian. Os Outros não usam sapatos. Fora a estátua, que é só um pé com quatro dedos. Pode ser uma gracinha feita para encucar os outros, pode ser uma espécie de assinatura visual de um dos diretores, mas em se tratando de Lost, pode ter a ver com todo o sentido da história (lembre-se que Dorothy, a protagonista de uma das obras mais sampleadas em Lost, O Mágico de Oz, herdou os sapatos da bruxa que ela matou sem querer).
Voltando a Los Angeles, a história dos Oceanic Six se mostra uma grande falácia – aí cabe a leitura marxista do 18 Brumário de Luís Bonaparte (que diz que “a história acontece a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”) – ao permitir que eles consigam voltar à ilha sem o grupo estar definido. Tudo bem, Lapidus e Ben podem estar envolvidos, mas por que Aaron não voltou? E Desmond? E a Penny?
Sobre esta, é bem capaz que ela tenha sido a tal “ponta solta” que Ben disse que iria “atar” após o encontro revelador com Eloise Hawking. Após a morte de sua filha – que, já descobrimos, é filha adotiva -, Ben jurou acertar as contas com Widmore a la Código de Hamurabi, matando a filha do inglês, justamente Penny. Mas ao ligar para Jack de uma marina – após já termos visto a família de Desmond a bordo de um barco várias vezes – e completamente surrado, Ben nos induz a acreditar que ele tenha apanhado na tentativa frustrada de matar Penny – mas quem desossou o frango? Mais uma pergunta solta no ar.
Junto com a própria não-aparição de Aaron, vem outra: por que Kate pede para Jack não lhe perguntar sobre o moleque? Quem o levou? Ou será que Kate o deixou com alguém? A cena ainda funcionou como deixa para um convincente beijo entre o casal protagonista, que até hoje só tinham soltado algumas faíscas, sem ir fundo (como a própria Kate já tinha ido com Sawyer). E, opa-peraê-caceta, siga meu raciocínio:
Mais tarde, no vôo 316 da Ajira Airways, os Oceanic Five (quedê o Aaron?) dão as caras e cada um deles recria um personagem na versão anterior do vôo, o 815 da Oceanic. E do mesmo modo que Sayid é o preso escoltado e Hurley leva um violão, alguém poderia fazer as vezes de Claire – a grávida do vôo original. E se um imita o outro, não duvide se Kate tiver engravidado de Jack naquela cena.
No avião, nos encontramos com Frank Lapidus, barbeado e fazendo uma observação para Jack que foi a melhor frase do episódio – “Não estamos indo para Guam, estamos?”, pergunta após reconhecer os passageiros. Além dele, temos duas aeromoças, Jack, Hurley, Saiyd e uma agente federal, Kate, Sun, Ben (lendo Ulysses, de James Joyce, cujo último capítulo chama-se Penelope) e um novato chamado Caesar – todos os outros assentos foram comprados por Hurley.
O fato após mais trivialidades e frases ditas ao léu, Jack leu o bilhetinho de Locke, o avião balançou e – bum – tá lá o corpo estendido no chão logo após o olho abrir em extremo closeup. E a primeira cena é recriada quase na íntegra, sendo que Jack encontra Hurley e Kate num rio, e não em uma praia. O avião? Vai saber. Os outros que estavam no avião? Ninguém sabe. E os outros Outros? Esses, menos ainda.
A única resposta que surge vem na forma de uma velha conhecida em plena forma: a kombosa azul da Dharma. Lustrada, novinha, ela parece ter acabado de sair da concessionária, mesmo tendo todo jeitão de anos 70. E de dentro dela surge outro velho conhecido, mas vestindo algo improvável: num macacão cáqui também da Dharma, o coreano Jin aponta a arma para os três e começa a esboçar um sorriso quando os reconhece – e o episódio acaba.
Fato 1: a história dos Oceanic Six terminou e graças a deus não temos mais que ouvir aquele papo furado todo de “ter que voltar pra iha” – o próximo episódio, cujo personagem principal é John Locke, deve encerrar essa conversa de uma vez por todas. Fato 2: vamos começar a ver e entender a história da Iniciativa Dharma, o que pode ajudar e muito essa temporada a melhorar. Até aqui, a impressão é que essa primeira leva de episódios serviu para ajudar o público a se acostumar com a noção de viagem no tempo que dá o tom esse ano e para dar uma colher de sopa em que quisesse começar a assistir a série agora, sem ter que assistir tudo que já saiu até hoje. São engrenagens que passam a rodar mais devagar, para uma rápida manutenção. O problema é que ela tem que retomar o ritmo incial, senão para.
E eu tou na torcida pra não parar.
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