Live 1966: The “Royal Albert Hall” Concert – Bob Dylan

, por Alexandre Matias

Outro texto ressuscitado… Acho que é de 1999.

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Clássico

O duplo Live 1966: The “Royal Albert Hall” Concert resgata um momento crucial na carreira de Bob Dylan e, conseqüentemente, na história do rock

O público aplaude, mas ele não quer aplausos e canta: “Ela tem tudo que precisa/ Ela é uma artista/ Não olha para trás/ Ela tira o escuro da noite/ E pinta o dia de preto”. A voz sai da garganta, passa pelo nariz e forma palavras nos lábios, enquanto os dedos passeiam pelo corpo do violão e a boca procura, vez ou outra, a gaita pendurada no pescoço.

Lá está Bob Dylan, confrontando mais uma vez uma platéia. Violão e gaita, voz e poesia – os olhos e ouvidos da audiência ouvindo o artista que escolheram como símbolo. Filho primogênito da geração beat, ele abraçou a música popular como expressão máxima da cultura humana. Queria explicar o povo através de sua própria arte, provar que o que há de melhor na humanidade é traduzido nas palavras de gente comum. Cantava os Estados Unidos que trabalhava em minas de carvão, em bares de beira de estrada, que sabia que o erro era tão provável quanto o acerto.

Repudiava o que o capitalismo que automatizava as pessoas à medida em que deixava a vida mais prática e fácil. Assim fazia porque sabia que a vida não poderia ser fácil. As pessoas crescem através de seus erros, o ser humano não poderia ser uma criança mimada com tudo à sua disposição. Por isso, pegou seu violão e cantou a versão da história que passeava escondida por trás das ondas de rádio e TV. Convergendo o artista visceral que canta músicas que o tempo lhe ensinou e o poeta pós-moderno que criava metáforas usando o imaginário de seu tempo, mostrando que a poesia das ruas era a verdadeira arte, não aquela que freqüentava museus e bibliotecas. Buscava a história oral, não a escrita.

E assim foi acolhido pela comunidade folk. Um jovem talento que cantava a realidade como alternativa à tola fantasia que pintavam como vida real. Artista é aquele que ergue uma casa e cantarola o que sua cabeça pensa no momento em que o cimento e o barro crescem na vertical. Arte é feita sem pensar, sai do coração para perder-se no vento, não precisa ser registrada e sim sentida.

Crescia a cada canção, passando de prodígio a gênio, de novidade a guru. Logo, Bob Dylan era o centro do movimento folk, um grupo de artistas que pregava a volta às raízes como contestação política. E à medida que crescia, percebia que algo estava errado – e não gostava daquilo. Sentia que aos poucos se tornava exatamente aquilo que não queria ser: um ícone, algo a ser apreciado, um líder a ser seguido. Seu rosto estampava cartazes como o símbolo de uma mudança, uma mudança que mudava cada vez menos. Queriam tê-lo, seu autógrafo, sua presença, sua voz, sua mente e mesmo mudando suas canções à medida que cantava, se tornava algo estabelecido, conformado e – de seu ponto de vista – previsível.

Como sempre, quis mudar. Entrou no estúdio em 1965 e em três dias gravou Bringing it All Back Home. Um lado do disco, acústico, trazia um poeta cada vez mais difícil de ser entendido. Suas palavras não queriam clareza, criando imagens estranhas a seu público fiel. Não falava mais de gente comum, cantava motocicletas transformadas em madonas, anjos caubóis cavalgando nuvens de quatro patas, colocava contos de fada, Hollywood, lendas, Shakespeare, a Bíblia, música clássica, poetas, mitologia grega, personagens da história e outros nomes que formavam o imaginário moderno numa nova poesia, colando imagens para criar novas sensações.

Do outro lado, uma banda elétrica ajudava-o a criar um novo som. O melhor exemplo era “Subterranean Homesick Blues”, em que cuspia sobre uma base barulhenta palavras de ordem diversas, constrangendo seu público original à medida em que seduzia a platéia rock. Pois havia percebido que o rock era a cultura popular daquele tempo, jovens criando sua própria história como alternativa àquela que queriam lhes impor.

No mesmo ano, subia no palco do festival de música folk de Newport. Um festival que contava com velhos bluesmen, novos talentos folk, caipiras tornados modernos pelo simples fato de serem caipiras. Dylan fecharia o festival e sua apresentação vinha junto da expectativa de uma apresentação memorável. E realmente foi. Mas não a coroação dos valores aclamados naquela noite. Ao lado da Butterfield Blues Band, subiu com instrumentos elétricos e tocou no último volume, para horror da platéia. Jesus Cristo se tornava o demônio e ria na cara de todos que conseguira enganar. Por três canções, foi vaiado com vontade até sair do palco inconformado. Mas satisfeito: sabia o que queria fazer. Dar o público o que ele queria não era arte, era comércio. E o público se tornou algo a ser provocado e os shows confrontos históricos.

Ao final daquele ano, lançou Highway 61 Revisited, que só confirmava o que o segundo lado de Bringing… e a apresentação no festival de Newport pareciam supor. Um disco elétrico, pesado e antifolk. Tudo o que seu público tradicional odiava, lançando-o às paradas de sucesso. A turnê deste disco se tornaria um campo de batalha entre duas forças primordiais. De um lado, o artista, sendo ele mesmo, mesmo que caindo em contradição. Do outro, o público querendo que o artista fosse aquilo que ele afirmava que era em seus discos.

Nos Estados Unidos e Canadá, onde a primeira parte da turnê aconteceu, Dylan encontrava seu novo público, adolescentes saindo da adolescência, querendo experiências mais “sérias” do que o simples primitivismo dançante do rock, procurando expandir suas mentes e traçando os primeiros esboços do que se tornaria, mais tarde, a contracultura. O público folk tradicional permaneceu nos botecos à meia-luz, maldizendo o novo rumo do ex-líder como quem pragueja contra um traidor e não foi assistir seu sonho se vender aos vilões da história.

Mas na Inglaterra, as coisas foram bem diferentes. Quem gostava de rock naquele ano estava ocupado demais com os novos discos dos Beatles e dos Stones, descobrindo bandas novas como Who e Kinks – não tinha tempo para um velho poeta de 26 anos que descia de seu pedestal para atrair novos públicos. Quem lotou teatros e casas de show atrás de Dylan eram seus antigos fãs, querendo ouvir clássicos que o estabeleceram como mito e ver, com os próprios, olhos a nova fase do compositor. Só que grande parte da platéia não estava receptiva em relação a esta nova fase – queria apenas assistir à traição de perto e mostrar o quanto estava insatisfeita com tudo aquilo.

O problema maior era a segunda parte do show, quando, recolhidos o violão e o banquinho, amplificadores e uma bateria surgiam frente ao palco para desconforto da audiência. Era um palco de rock e saber que Dylan pisaria e cantaria naquele lugar causava náusea para os mais ortodoxos. A reação natural era a vaia. Quando ele tinha sorte.

Até que chegamos ao dia 17 de fevereiro de 1966. No palco do Free Trade Hall, em Manchester, o jovem judeu – parecendo velho de tanto que parece conhecer – entra, senta no banco, apóia o violão no joelho, ajeita a gaita no pescoço, destorce a roupa torcida pelo instrumento e, sob uma salva de palmas, após rastejar alguns acordes tímidos ao violão, começa a cantar “She Belongs to Me”.

Comporta-se passivamente, dando as canções do jeito que o público quer. As letras são as mesmas do encarte, os arranjos seguem os originais, os solos de gaita são velhos conhecidos. “4th Time Around”, “Visions of Johanna”, “It’s All Over Now Baby Blue”, “Desolation Row”, “Just Like a Woman”, “Mr. Tamborine Man”, – canções que passam longe dos panfletos líricos que entregava na esquina do quarteirão da década. Mas mesmo assim, mesmo cantando sobre trágicas separações ou parábolas que não parecem ser sentido, engana aos poucos o público por quase uma hora. Como se, na última hora, desistisse da eletricidade e voltasse, subitamente, a ser quem havia sido.

Claro que não iria fazer isso. Como canta na primeira música do show, num verso batizou o lendário documentário feito por D.A. Pennebaker sobre esta turnê à Inglaterra (Don’t Look Back), o artista não olha pra trás. Não se arrepende ou se conforma, simplesmente esquece tudo que foi feito no passado porque, como a própria palavra diz, aquilo foi passado, ultrapassado. Recorrer à nostalgia ou tentar consertar erros que a imaturidade cunhou não é tarefa do artista, cuja única função é expressar-se como ele se sente no exato momento em que tem vontade, sem pensar em causas ou conseqüências.

E o som de guitarras afinando e microfones sendo testados, entregam a banda de cinco caras (com Dylan em primeiro plano) em cima do palco. Depois que o guitarrista Robbie Robertson encontra o riff que segura “Tell Me Momma”, a banda espera o vocalista (agora de pé, com uma guitarra pendurada no pescoço) cantar o 1-2-3-4 antes de desmoronar sobre o público. O barulho é ensurdecedor, violento e claro – é uma banda de rock botando as entranhas pra fora, à medida que a voz anasalada de Dylan se desprende da garganta, um berro cru que arranca todo o papel de parede das canções, revelando a crueza que a acústica fingia não existir.

O público reage com entusiasmo, mas é possível ouvir os cochichos na platéia, cochichos que viram risos depois que Bob apresenta a próxima música. “Esta música chama-se “I Don’t Believe You”, ela era de outro jeito, agora ela é assim” e tasca “I Don’t Believe (She Acts Like We Never Have Met)” com força, rugindo as palavras enquanto não as completa, deixando o grito tomar conta do som e transformá-las num som solto no espaço. Guitarra, teclado (um teclado cavernoso, um Hammond do inferno, conduzido por Garth Hudson), piano (de responsabilidade de Richard Manuel) e gaita entram nos espaços deixados pelos berros da voz.

Ao fim de “I Don’t Believe”, os instrumentos voltam a ser afinados e o público já não aplaude do mesmo jeito. Os comentários entre a audiência já não sussurros, algumas vozes se extendem. E, ao ensaiar a introdução da gaita para “Baby Let Me Follow You Down”, Dylan é interrompido por uma salva de palmas mecânica, contando tempos, feita para irritar o cantor. Ele volta à mesma frase musical, olha por cima até achar os olhos de Robbie Robertson que entende a mensagem e passa para o resto da banda, que cala o público com uma ferocidade ainda maior que a platéia tentava passar. Aos poucos, assistimos a um showzaço de rock, com Dylan, Robbie, Richard e Garth domando o cavalgar pesado da cozinha do baixista Rick Danko e do baterista Tony Glover.

Robbie inicia o riff de “Just Like Tom Thumb’s Blues”, premeditando a reação negativa da platéia e Dylan acerta o calcanhar três vezes no chão do palco para avisar à banda que a música começou. Novamente, Hammond e guitarra dominam o segundo plano, deixando a voz de Dylan cada vez mais livre para berrar as letras que o público queria ouvir cantadas ao violão. “Mas logo cheguei à fase pesada/ Todo mundo disse que estava comigo/ Quando o jogo ficou difícil/ Mas a piada era comigo/ E ninguém estava lá para dizer que era sequer um blefe/ Vou voltar pra Nova Iorque/ Acho que já vi demais”. Ele canta sobre o que está acontecendo ali e sabe disso.

Até que anuncia “Leonard-Skin Pill-Box Hat” e o público está enfurecido, fazendo piadas entre si, aplaudindo os xingamentos dos outros, até voltar a bater palmas em uníssono, em protesto. Instrumentos afinados, calcanhar na madeira do palco e o bluesão arrastado até então inédito (só veria a luz do dia no básico Blonde on Blonde, que seria lançado no fim daquele ano). O barulho que vem do palco é tão sólido e alto que qualquer som que poderia vir do público some na gravação. E como o público xingava um som tão perfeito, tão preciso e feito com tanta vontade como aquele? Queriam uma estátua pro artista e não o próprio.

Até que ele revida, balbuciando algo ininteligível, colando palavras, umas nas outras, até o público ficar quieto e tentar entender o que ele quer dizer. E ele continua falando e falando, como se estivesse falando algo, até que a platéia se aquieta e ele fala a única coisa que dá pra entender: “…Se pelo menos vocês não aplaudissem com tanta força”.

Entra “One Too Many Mornings” e o clima do show vai ficando mais tenso, à medida em que as canções ficam lentas. “É um sentimento incansável e faminto/ Que não quer bem a ninguém/ Mesmo com tudo que estou dizendo/ Você poderia dizer melhor/ Você tem razão do seu lado/ E eu tenho do meu”. E logo caímos em “Ballad of a Thin Man”, lenta, assustadora e sóbria, em que o vocal some por trás da quantidade de som. O refrão acerta o público como um murro na cara – “Algo está acontecendo/ Mas você não sabe o quê/ Sabe, Mr. Jones?”.

Foi a gota d’água. Depois de provocar o público por mais de 40 minutos e olhar nos olhos de cada “Mr. Jones” na platéia, ela recebe a próxima música muda. Até que algum maluco levanta-se e grita, com toda força: “JUDAS!”. A platéia ri, Dylan olha pra baixo, e cospe no microfone: “Eu não acredito em você, você mente”, enquanto vira para a banda e sentencia “play fucking loud” (“toquem alto pracaralho”), antes de entrar na versão mais matadora que a história já ouviu para “Like a Rolling Stone”.

Tudo isso fazia parte de um dos discos piratas mais conhecidos da história, Live at Royal Albert Hall (mesmo sendo do show em Manchester) lançado como Live 1966: The “Royal Albert Hall” Concert. Um disco duplo que talvez seja o documento mais importante da história de Dylan, ao lado das infames Basement Tapes. Portanto, um dos discos mais importantes da história do rock. Vale cada centavo investido. Aliás, vale bem mais. Um clássico.

Quem é Bob Dylan?

Marcelo Nova, especial para o Trabalho Sujo (*)

Fazendo o check out às 4h30 da manhã, caído num sofá de napa num lobby de hotel vagabundo, numa cidade no meio do nada, vejo Natalie, um pequeno anjo magro, aproximadamente 14 anos, rosto talhado e olhos incisivos, que ao invés de dormir na presumível segurança e conforto do seu lar, mente para os pais a fim de estar na companhia de integrantes de uma banda de rock’n’roll.

Ao ver o CD Infidels nas minhas mãos, ela dispara: “Marceleza, quem é Bob Dylan?”. Imediatamente alguém grita: “Todos pro ônibus!”. E eu tenho tempo apenas dizer: “É o melhor, o melhor de todos”. Já esparramado na poltrona, ligo o walkman e coloco meus óculos escuros para pode ver melhor o nascer do sol. E quando ele surge terrível, cego, indiferente como somente deuses sabem ser, a pergunta reverbera e se multiplica nos meus ouvidos. Quem é Bob Dylan? O que ele fez? O que está fazendo agora?

Penso na enorme dimensão do seu trabalho, assim como na inequívoca qualidade (a quantidade não seria tão significativa, se não fosse impregnada de tanto talento). Duvido que existam muitos ouvintes, ou fãs, ou críticos, que além do contato tenham tido intimidade com a totalidade do trabalho de Dylan. Dedicar o tempo necessário para cada fase, para cada rima, para cada solo de cada canção dos seus hoje 37 discos “oficiais” seria uma tarefa para uma vida inteira. E, mesmo após o lançamento de Biograph e Bootlegs Series Vol. 1-3, caixas contendo centenas de outras não lançadas, extraídas das sessões de Bob Dylan de 1961 até hoje e que circulam (disputadas a tapa por colecionadores) no mercado negro.

Milhares de livros já foram escritos sobre ele, que também escreveu o seu, Tarantula, aos 23 anos. Fez filmes, desenhos e pinturas, alguns exibidos em público, outros ainda não. Mas acima de tudo estão as apresentações ao vivo. Dylan e seu “torrencial fluxo de trabalho” (a expressão é de Roland Penrose, referindo-se a Picasso) têm através dos anos deixado o público impactado e atônito.

Lembro-me de duas apresentações realizadas em agosto de 91, no Palace, em São Paulo, quando ele foi massacrado por críticos que não conseguiam identificar exatamente quais canções ele desfiava, alterando melodias e cuspindo palavras. Agindo assim, Dylan tirou-lhes o ponto de referência e expôs-lhes verdadeiras, porém incomuns, facetas da arte.

A música, o ritmo e o drama que envolvem uma performance se desenvolvem num momento específico no tempo. É apresentada do ponto de vista do artista, para ser compartilhada no mesmo instante em que é criada. Mas os críticos, acostumados com artistas menores cuja única preocupação é agradar a qualquer preço – mesmo que isso signifique padronizar e banalizar seus próprios trabalhos -, não souberam como classificar Bob Dylan. Imersos há muito tempo no oceano da mediocridade, esqueceram que a arte que não destrói o convencional, que não contesta o que a maioria acredita, e não sugere outras hipóteses da vida, é apenas melodrama ou mero exercício de boas intenções.

Sem tentar estabelecer contato com o público que não fosse através de sua própria obra, Dylan não dirigiu sua palavra nos intervalos das canções, nem esboçou estímulos físicos, tais como gestos ou mesmo palmas para conseguir a tão almejada interação artista-platéia. No final da apresentação, disse apenas “merci, merci…” e as luzes se apagaram enquanto ele voltava para o escuro dos bastidores. Quem é esse man in a long black coat, o garoto que fugiu de casa like a rolling stone? O primeiro punk, aquele que inseriu não apenas o vigor poético, mas a densidade emocional e guitarras elétricas no folk dos anos 60.

O pacifista inquisidor, cujas respostas ainda são hoje sopradas pelo vento. O soldado que desejou a morte dos masters of war. O cristão que bateu na porta do céu e foi perdoado por Jesus num slow train coming. O errante handy dandy ainda hoje em busca de dignidade sob o sol vermelho. O mesmo sol que queimava o meu rosto através da janela do ônibus e que me trazia a lembrança da pergunta da pequena Natalie. Quem é Bob Dylan? Como posso lhe dar a resposta exata, se ele nem mesmo se chama Bob Dylan? Nesse momento, uma canção chamada “I and I” vem até os meus ouvidos, via walkman: “Eu já fiz sapatos para todos, inclusive para você e no entanto continuo descalço”.

* Marcelo Nova, do Camisa de Vênus, é Dylanmaníaco de carteirinha

Entrevista: Bob Dylan

Não, não entrevistei Bob Dylan. Muito menos em 1966. A vítima do cantor é o radialista Klaus Burling, que tentou entrevistá-lo no dia 28 de abril daquele ano, quando Dylan pousou na Suécia. Digo “vítima” porque do mesmo jeito que gostava de confundir seu público, o cantor brincava de atazanar qualquer tentativa de entrevista na época. Sem querer explicar-se, confundia ainda mais o interlocutor. E, mesmo assim, se explicava. Veja se você entende, nesta entrevista cedida pela gravadora Sony.

É muito bom vê-lo em Estocolmo, Bob Dylan, e eu queria saber que agora que você está aqui se você poderia explicar suas canções e você mesmo. O que você pensa da canção de protesto?
Bob Dylan –
Um…Er…Deus… Não, eu não vou ficar sentado aqui e fazer isso. Estive acordado à noite toda, tomei algumas pílulas, comi uma comida horrível, li todos os tipos de coisas erradas; estou pra correr num carro a 150 por hora e não vamos sentar aqui e falar sobre mim como um compositor de protesto ou qualquer coisa do tipo.

As primeiras coisas que te deram fama, como The Times They Are A-Changin’ na Inglaterra, são músicas de protesto, não?
Dylan –
Oh, meu Deus. Há quanto tempo foi isso?

Há um ano.
Dylan –
Certo, bem, quero dizer… Um ano atrás. Eu não quero ser mau ou qualquer coisa do tipo, mas eu gostaria de ser um mentiroso ou um tolo pra continuar nesse negócio. Quero dizer, eu não vou ajudar se você pensa há um ano atrás, sabe?

Não, mas agora você mudou para “Subterranean Homesick Blues” com guitarra elétrica e outras coisas. Alguma razão especial?
Dylan –
Não.

Não?
Dylan –
Não.

Como você se chama? Um poeta? Um cantor? Ou você escreve poemas e depois os musica?
Dylan –
Não sei. É tão besta. Quero dizer, você perguntaria essas perguntas a um carpinteiro? A um encanador?

Não seria tão interessante.
Dylan –
Eu acho que poderia ser, quero dizer, é interessante pra mim, como deveria ser interessante pra você.

Enquanto um apresentador de programa de rádio, não.
Dylan –
O que você acha que Mozart diria se você viesse perguntasse esse tipo de perguntas. Que tipos de perguntas você perguntaria a Mozart? Diga-me, Mr. Mozart, er…

Bem, pra começo de conversa eu não o entrevistaria.
Dylan –
Bem, então por que você veio a mim?

Porque estou interessado nos seus discos e o público sueco também.
Dylan –
Eu também estou interessado na audiência sueca e nas pessoas suecas e todas essas coisas, mas eu tenho certeza que eles não querem saber essas coisas idiotas, você sabe.

Não, bem, eles lêm um monte de coisas idiotas sobre você nos jornais e eu acho que você poderia ser mais direto aqui.
Dylan –
Não posso, eu acho que eles não precisam disso. Eu acredito que eles já saibam. Você não conhece os suecos? Eles têm de ser ditos, não explicados. Você deveria saber de tudo isso. Você não pode explicar pros suecos algo que já se explica. Os suecos são mais espertos que isso.

Você acha?
Dylan –
Claro.

Você conhece muitos suecos?
Dylan –
Conheço vários e eu também sou um sueco.

Claro.
Dylan –
Na verdade, eu venho de um lugar não muito longe daqui, meu amigo.

Vamos tentar ouvir uma canção, então?
Dylan –
Pode tentar.

Certo. Qual você sugeriria?
Dylan –
Escolha a que você quiser, qualquer uma. Você percebe que eu não estou sendo mau. Estou querendo apenas esclarecer as coisas, você percebe?

Sim e é por isso que eu pedi pra você e você teve uma chance pra fazer isso sozinho.
Dylan –
Eu não quero fazer isso.

OK.
Dylan –
Não quero fazer nada sozinho.

Sua música está vendendo bem nos EUA. Como se sente em relação a isso?
Dylan –
É horrível, porque é uma canção de protesto. As pessoas não deveriam ouvir canções de protesto.

Muitas pessoas compram o disco e ouvem-a no rádio. Então muita gente entende a mensagem.
Dylan –
Yeah, eles entendem. Fico feliz que eles entendam. É um bom disco, não?

Como você se sente ao ganhar muito dinheiro se você não está preocupado realmente com isso?
Dylan –
Eu gosto de ganhar muito dinheiro.

No começo da sua carreira você não tinha dinheiro e agora você tem bastante. O que você faz com ele?
Dylan –
Nada.

Não se preocupa?
Dylan –
Não. Outra pessoa cuida disso pra mim. Ainda faço as mesmas coisas.

Quando você escreve uma música, escreve a letra ou põe a música antes?
Dylan –
Escrevo tudo, música e letra.

Ao mesmo tempo?
Dylan –
A melodia não tem importância, na verdade. Sai naturalmente.

No começo, outros artistas gravavam suas músicas e fizeram sucesso. Como você se sente em relação a isso?
Dylan –
Bem, eu não sinto nada. Fico feliz.

Você gosta de ser reconhecido mais como um compositor do que como um cantor?
Dylan –
Er, sim, pois é como se fosse tudo de uma vez. Eu não tenho nenhum outro interesse. Eu tinha interesse, aos 13, 14, 15 anos de ser um astro famoso, essas coisas, mas eu estou no palco e seguindo shows ambulantes desde que eu tenho 10 anos. Fazem 15 anos que eu faço o que faço. Eu sei o que estou fazendo melhor que todo mundo.

E o que você quer fazer hoje?
Dylan –
Nada.

Nada?
Dylan –
Não.

Você gosta de se apresentar? De viajar?
Dylan –
Sim, eu gosto. Eu não ligo de viajar, também.

E de gravar?
Dylan –
Gosto de gravar.

Você tem uma banda agora, coisa que não tinha no começo.
Dylan –
Eu tinha uma banda bem no começo, mas você tem que entender que eu venho dos Estados Unidos. Eu não sei se você sabe como são os Estados Unidos. Não tem nada a ver com a Inglaterra. As pessoas que têm a minha idade, 25, 26 anos, cresceram tocando rock’n’roll.

E você faz isso?
Dylan –
Sim, porque é o único tipo de música que se ouve. Todo mundo já fez isso porque tudo que você ouve é rock’n’roll, country e rhythm’n’blues. Em uma certa época toda esta música foi invadida pelo som inofensivo de Frankie Avalon, Fabian, essas coisas. Não que seja ruim ou coisa do tipo, mas não era o tipo de coisa que as pessoas poderiam se espelhar. Então veio a música folk e foi um subsituto por um tempo. Mas só um substituto. Agora é diferente, devido ao fator inglês e o que os ingleses fizeram foi provar que dava pra fazer dinheiro tocando a mesma velha música que nós tocávamos. Isso é verdade, não é mentira, mas os ingleses não tocam rock’n’roll.

O que você acha dos Beatles?
Dylan –
Os Beatles são ótimos, mas eles não fazem rock’n’roll.

Você os conhece?
Dylan –
Sim, eu conheço os Beatles.

E eles não tocam rock’n’roll?
Dylan –
Não, não tocam. Rock’n’roll são quatro batidas, uma extensão do blues de 12 compassos. E rock’n’roll é música de moleque branco de 17 anos. Você sabe, é uma tentativa de forjar sexo.

Como você chama seu estilo, então?
Dylan –
Bem, como ninguém toca ou canta como eu, eu não sei.

Como você batizaria sua música?
Dylan –
Música matemática.