Impressão digital #102: Tecnologia e cultura

Aproveitei o gancho do holograma do Tupac Shakur e da volta do Arrested Development para falar do impacto da tecnologia na produção cultural humana na minha coluna no Link desta segunda.

Como a tecnologia molda nossa concepção de cultura
Show com holograma ainda é uma novidade

Em 1991, a cantora norte-americana Natalie Cole relançou a música “Unforgettable”, consagrada por seu pai, o crooner Nat King Cole, na década de 1960. Em sua versão, uma novidade: graças à tecnologia da época, foi possível colocá-la num dueto com seu próprio pai, falecido em 1965. A canção foi um sucesso e abriu caminho para outras colaborações da mesma natureza. Primeiro com os dois discos Duets, lançados em 1993 e 1994, em que Frank Sinatra cantava ao lado de nomes conhecidos da música pop – Stevie Wonder, Neil Diamond, Julio Iglesias, Bono Vox e o filho do cantor Frank Sinatra Jr. – sem que ele estivesse presente no estúdio (Sinatra, que morreria em 1998, já estava mal de saúde na época do lançamento desses discos). O projeto Anthology, dos Beatles, foi além e ressuscitou a voz de John Lennon, em 1996, para finalmente reunir o maior grupo da história da música pop.

Corta para 2012, mais especificamente para a semana passada, no domingo 15, quando, no festival de Coachella, que é realizado anualmente na cidade de Indio, na Califórnia, nos Estados Unidos, o rapper Snoop Dogg resolveu chamar um velho conhecido para o palco – o também rapper Tupac Shakur. O detalhe é que Tupac foi assassinado em 1996, mas isso não impediu que a tecnologia 3D o colocasse no palco ao lado de seu velho amigo, numa aparição digital que assombrou o público tanto pelo apuro tecnológico quanto pela morbidez da “ressurreição” holográfica.

Dois dias depois, o criador da série Arrested Development, Mitchell Hurwitz, apresentou as novidades da nova temporada. Cancelado em 2006, o seriado norte-americano tinha um público cativo e fiel, mas não grande o suficiente para permitir que ele continuasse na grade de programação da sua emissora, a Fox. Não adiantou os fãs se mobilizarem online para permitir que a série continuasse. Ela foi mesmo para as cucuias e, volta e meia, havia rumores sobre a possibilidade de o elenco e seus roteiristas se reunirem em um filme.

Mas no final do ano passado, seus fãs puderam comemorar. A locadora online Netflix, disposta a investir em produções próprias, convenceu os envolvidos na série a retomá-la, para que ela fosse veiculada em formato digital. E, na semana passada, Hurwitz contou algumas novidades da nova temporada, que começa a ser gravada agora no meio do ano e deve estrear em 2013, com um pequeno detalhe: todos os episódios estrearão no mesmo dia!

Mas o que “Unforgettable”, os duetos de Sinatra e a Anthology dos Beatles têm a ver com um holograma num show de rap ou uma série que estreará todos os episódios de uma vez só?

É simples. Quando o dueto de Natalie e Nat King Cole apareceu nas rádios e TVs da época, aquilo foi tratado com espanto e euforia, pois era algo nunca visto. Em menos de meia década, já havia sido assimilado por nomes estabelecidos no mercado de música.

Da mesma forma, uma série que apresenta seus episódios em uma só tacada pode se tornar um padrão em poucos anos – talvez em menos tempo que demorou para o dueto póstumo virar uma realidade. (Cabe até um parêntese: se uma série tem todos seus episódios exibidos de uma vez só, ela deixa de ser uma série para se tornar um longo filme?) E logo depois que Tupac Shakur apareceu digitalmente num show de Snoop Dogg, os fãs já brincaram com o cartaz do festival Coachella cogitando uma “hologram edition”, com shows de bandas e artistas que há muito não estão entre nós (uma piada ainda mais mórbida colocava até mesmo Jesus Cristo entre as atrações do evento). Não duvide se cogitarem algo parecido (talvez sem Jesus, por motivos óbvios) em eventos de um futuro próximo.

A tecnologia, bem ou mal, molda a cultura. Foi por conta do limite de tempo de gravação no início do século 20 (entre três e quatro minutos) que foi inventada a canção, um formato que não existia naquela época. O próprio livro, nem sequer paramos para pensar nisso, é uma invenção tecnológica que ainda não foi superada. Tais inovações determinam a forma como lidamos com a nossa própria cultura.

Link – 23 de abril de 2012

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Link – 16 de abril de 2012

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Impressão digital #0101: Um salão de jogos de papelão

Minha coluna na edição do Link dessa semana foi sobre o arcade de Caine.

A internet ajuda até quem não está conectado a ela
A história do menino Caine Monroy e seu salão de jogos

Caine Monroy tem nove anos de idade, mora na zona leste de Los Angeles, nos Estados Unidos e tem uma paixão desde cedo: máquinas de jogos. Não de videogames – Caine é fascinado por um gênero de jogos que não é tão popular no Brasil, e que em seu país é rotulado como “arcade”. Embora por aqui o termo esteja vinculado a fliperamas e máquinas de pinball, nos EUA os arcades reúnem máquinas acionadas por fichas que não necessariamente são eletrônicas e que lembram as brincadeiras em quermesses por aqui, como tiro ao alvo, argola, aquela garra que pega bichos de pelúcia numa gaiola de vidro.

Fissurado por desmontar aparelhos para ver como funcionavam, Caine começou a fazer suas próprias máquinas de jogo na garagem de seu pai. Detalhe: as máquinas eram de papelão. E, à medida que criava as máquinas, transformava a garagem de casa em seu próprio arcade. O Caine’s Arcade. Ali, não apenas exibia suas invenções como criou até um programa de fidelidade. Por um dólar, o jogador poderia ter quatro chances de jogar em qualquer máquina. Pelo dobro disso, ganhava o que ele chamava de “Fun Pass”, que garantia a possibilidade de jogar 500 vezes.

Por mais feliz que estivesse com seu pequeno empreendimento, Caine tinha apenas um cliente, Nirvan Mullick. Empolgado com o entusiasmo do menino, Mullick não só comprou um “Fun Pass” como também passou a usá-lo com frequência, visitando-o quase todos os dias sempre com uma câmera, que usava para registrar as explicações de Caine em relação ao funcionamento de suas máquinas.

O fato de ter um único cliente não incomodava o pequeno empreendedor, mas frustrava Mullick, que resolveu fazer uma surpresa para Caine. Reuniu um grupo de amigos e, com a ajuda do pai de Caine, tirou o garoto da garagem enquanto armava um flash mob para recebê-lo. Usou a internet para contar a história que havia descoberto e para reunir interessados em conhecer o autor e sua obra de papelão.

O resultado da visita abriu um sorriso gigantesco no rosto do menino e é o auge do vídeo que Mullick publicou na segunda-feira passada e que virou um sucesso online, atingindo um milhão de views em menos de uma semana.

O sucesso do vídeo não apenas garantiu o status de celebridade instantânea para o garoto, mas também funcionou como uma forma de arrecadar dinheiro para sua formação escolar – e em três dias, já havia quase US$ 100 mil em sua poupança para a universidade.

A lição dessa história é que ela provavelmente não será a única. Há muita gente – crianças, adultos, idosos – fazendo coisas apenas porque gostam, sem sequer esperar que alguém possa gostar do que fazem. A internet pode – e deve – ser o canal para difundir o trabalho de gente assim. Vamos ver isso acontecer cada vez mais, repare.

Impressão digital #0100: A “Orkutização” do Instagram

E na minha coluna na edição de segunda do Link, falo sobre a “maldita inclusão digital” de que tantos gostam de reclamar.

A ‘orkutização’ do Instagram e a natureza gregária da internet
O Instagram criou uma bolha de falso glamour

Iphoneiros em polvorosa: “Vão poluir minha timeline!”, reclamavam usuários do celular da Apple tanto no Brasil quanto no exterior. Eles haviam recebido a notícia de que o aplicativo Instagram havia ganhado, na semana passada, uma versão para Android, o sistema operacional rival do iOS, do iPhone. Por aqui, a indignação veio no inevitável tom de piada característico da nossa vida digital tropical, com a criação de tumblrs como o androidnoinstagram.tumblr.com ou orkutgram.tumblr.com, entre outros. O teor dos tumblrs – e das piadas – era sempre o mesmo: agora o Instagram perderia o seu status, pois uma tal “horda de pobres” começaria a usar o aplicativo.

Para quem não conhece, o Instagram é mais do que um software para celular que permite tirar fotos com filtros vintage. Criado pelo brasileiro Mike Krieger, o aplicativo também funciona como uma rede social – em que é possível assinalar contatos e personalizar perfis como em qualquer site deste tipo, com duas diferenças cruciais. A primeira: é uma rede social feita para o celular. Ela se replica, ao gosto do freguês, pelo Twitter e Facebook, mas seu ambiente nativo é a internet móvel. A segunda é o fato de não existir perfil público. Quem quiser ver a página de alguém no Instagram, ao contrário da maioria das redes sociais, precisa criar uma conta lá.

Eis o motivo da chiadeira. Enquanto era uma rede fechada para usuários de iPhone, o Instagram criou uma bolha de falso glamour que fazia qualquer fotinha vagabunda parecer cool só porque vinha com um tom sépia, com um amareladinho com cara de foto tirada nos anos 70. A reclamação dos antigos usuários levantou a velha falácia repercutida sempre que qualquer serviço online deixava de ser exclusivo de uns poucos early-adopters – a tal “orkutização”.

O termo surgiu, claro, depois que o Orkut começou a se popularizar no País. Antes restrita a quem trabalhava com comunicação ou tecnologia, a rede social aos poucos foi compreendida por pessoas que não passam o dia inteiro na frente do computador. Mais do que isso: à medida em que os anos 2000 foram passando, mais gente pôde comprar um computador e, com isso, a rede social perdeu o ar de ser exclusividade de grupos pequenos. E aos poucos começariam a aparecer perfis de pessoas que não eram descoladas e modernas, mas apenas… normais.

E riam “kkkkkk” ou tiravam fotos em quaisquer situações (parte delas indo parar em sites como perolas.com ou tolicesdoorkut.com) ou não se preocupavam com o português correto ou com “about me” espertinhos. A orkutização vinha acompanhada de uma reclamação obtusa, que resmungava sobre a “maldita inclusão digital” num tempo em que nem todo mundo tinha acesso à internet.

Em menos de dez anos, este quadro mudou – radicalmente. Não só ficou mais fácil comprar computador como a internet móvel trouxe uma imensa leva de pessoas para o dia a dia eletrônico das redes sociais. E cada novidade descoberta pelos primeirões era, em pouco tempo, “orkutizada”. Foi assim com o Twitter, com o Facebook e agora aconteceu com o Instagram.

“Em vez de crème brûlée vamos ver fotos do Habib’s”, alguém twittou, como se os usuários do Instagram não tirassem foto de qualquer PF com um filtro para parecer que não estavam comendo em um restaurante self-service. Ou como se os celulares que rodam o sistema operacional Android não custassem, em alguns casos, até mais do que o preço de um iPhone 4S.

A “orkutização” ou a “maldita inclusão digital” fazem parte da natureza da internet. A rede não é um clubinho exclusivo para uns poucos e bons. Até o fim desta década, todos estaremos conectados a ponto de nem percebermos a separação entre o online e o offline.

Reclamar que mais gente está desfrutando de serviços e produtos que, até determinada época, eram exclusivos de um número pequeno não é apenas reacionarismo barato – é não entender que a natureza digital agrega em vez de separar. Se você tem vergonha de estar na mesma rede social que pessoas que considera “menores”, não tenha dúvida: o problema é seu.

Link – 9 de abril de 2012

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Link – 2 de abril de 2012

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Impressão Digital #0099: Ficção científica e otimismo

Aproveitei a conversa com Nicolelis para falar sobre ficção científica na minha coluna desta semana:

Por uma ficção científica menos pessimista e apocalíptica
Nicolelis e Stephenson concordam num ponto

Ao entrevistar o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis para a capa desta edição do Link, perguntei sobre aplicações de suas pesquisas fora da medicina e ele falou que a neurociência já está no dia a dia das pessoas. Citou que a indústria do videogame está de olho em formas de interface que não necessitem de interferência táctil e falou que já existe até um aplicativo para iPhone que permite movimentar os ícones da tela do telefone apenas com o cérebro. E disse, mais de uma vez, que vivemos em uma realidade que parece ficção científica.

Foi quando o provoquei sobre o pessimismo da ficção científica atual. Os principais títulos do gênero no século 21 lidam com um futuro assustador. Séries como Terra Nova e Battlestar Galactica cogitam um futuro em que a civilização acabou. Filmes como O Preço do Amanhã e Contra o Tempo falam de governos que controlam a população usando alta tecnologia.

A lista inclui ficções em que invasões alienígenas ao planeta Terra são bem sucedidas, supercomputadores fogem do controle e ameaçam seres humanos. Até a Pixar anteviu o fim do mundo em Wall-E – isso sem contar todas as previsões apocalípticas que se aproveitam do mítico 2012 para cantar aos sete ventos que o fim está próximo.

“Uma das razões que me fez escrever o livro que eu lancei no ano passado (Muito Além do Nosso Eu, Companhia das Letras) foi mostrar um cenário otimista da ciência”, continuou Nicolelis, quando o questionei. “Hoje em dia você pega um filme de Hollywood ou um livro best-seller, é tudo assim: ‘Vamos destruir a raça humana… Vai acabar o mundo… Vamos criar um híbrido de não sei o quê… Os computadores vão nos deixar obsoletos…’”

A última afirmação é suficiente para que ele comece a desancar um dos principais nomes desta realidade de ficção científica que vivemos hoje, Raymond Kurzweil, que prega a inevitabilidade da fusão entre homem e máquina, que chama de singularidade.

“A singularidade é um absurdo, o Kurzweil ganhou muito dinheiro vendendo uma balela!”, enfatiza. “A singularidade nunca vai ocorrer, porque o cérebro humano é ‘copyright protected’, não pode ser reduzido a um algoritmo, portanto não pode ser copiado por um computador. Toda máquina de Turing – todos os computadores que a gente conhece – precisa de uma sequência de códigos para funcionar. Jogar xadrez é um algoritmo. Você tem regras muito definidas. Já apreciar Bach ou ser corintiano ou palmeirense… Isso não tem como definir, não tem como você por num algoritmo. Então, por definição, você não pode repetir o cérebro. Não há como você recapitular, num computador, a história coletiva da espécie e a história individual de cada um de nós. É uma impossibilidade matemática. As grandes empresas adoram a noção de que o ser humano vai se tornar obsoleto. É a terceira onda do capitalismo, em que o valor do trabalho humano é zero. Isso é um sonho e eles vão morrer sem ver isso ser realizado.”

Ele continua, lembrando quando falou em um encontro de escritores de ficção científica há dois anos: “Eu disse: ‘Pessoal, a coisa tá preta… para vocês! Nós, os cientistas, estamos chegando na realidade que vocês inventaram… Eu não faço ficção científica, vocês fazem. Mas estamos chegando perto!’”

A provocação de Nicolelis faz coro com a de outro grande nome do século 21, este escritor de ficção científica, o norte-americano Neal Stephenson. Autor de títulos como Nevasca (o único lançado no Brasil, pela Editora Aleph) e pela intricada série de livros reunidos sob o título de The Baroque Cycle, ele propôs no fim do ano passado um projeto chamado Hieroglyph que visa instigar autores a pensar em um futuro menos sombrio que aquele cogitado hoje em dia.

“Temos uma regra”, escreveu, “nada de hackers, nada de apocalipse, nada de hiperespaço”. O projeto é um manifesto para fazer novos autores cogitarem um futuro mais otimista para todos. Pois, uma vez cogitado por escritores, ele pode ser posto em prática pelos cientistas. E a ciência, como frisou Nicolelis, está chegando perto do que a ficção científica do passado propôs…

Miguel Nicolelis e eu

Conversei com o cientista mais importante do Brasil hoje pra capa da edição do Link dessa segunda:

‘Ninguém associa ciência com soberania nacional’
O neurocientista Miguel Nicolelis fala com exclusividade ao Link sobre a próxima etapa de seu projeto para transformar a criação de um exoesqueleto robótico em um programa de educação e saúde para estimular o desenvolvimento tecnológico e científico do País

“A renúncia a um investimento maciço de formação de um corpo de cientistas e de atuação em diferentes áreas – tecnologia de informação, microengenharia, biomedicina, nanotecnologia, engenharia biomédica… – é uma renúncia à soberania do País.”

Miguel Nicolelis, um dos cientistas mais importantes do Brasil, é enfático sem se exaltar. Mesmo quando fala do Palmeiras – uma de suas paixões, que havia perdido de virada para o arquirrival Corinthians no dia anterior à entrevista, realizada no bairro de Higienópolis há uma semana –, ele mantém a calma e a clareza características de quando expõe suas ideias. Até quando reclama de como seu time achou que o jogo estivesse ganho no intervalo do clássico.

Futebol à parte, a conversa foi sobre outras duas paixões: ciência e educação. E ele conta, com exclusividade ao Link, mais um passo de seu projeto Câmpus do Cérebro – o início de uma parceria entre o Hospital Sabará, de São Paulo. “Com a abertura da Escola do Câmpus do Cérebro, no ano que vem, vamos poder fechar o ciclo completo, unindo o Centro de Saúde Anita Garibaldi à escola”, explica.

Ele se refere ao trabalho que iniciou há seis anos no Rio Grande do Norte, que começa pelo tratamento de mulheres grávidas no Centro de Saúde (e que reduziu a mortalidade materna da região de Natal e Macaíba a zero) para garantir que os futuros alunos de sua escola possam ser acompanhados desde antes do nascimento. “As crianças que nascem lá já são alunas da escola no pré-natal. Depois elas entram no berçário e seguem estudando em período integral até o ensino médio”, diz.

José Luiz Setúbal, presidente da Fundação Hospital Sabará e responsável pela aproximação do hospital a Nicolelis, explica que a parceria começa com a troca de experiências em saúde materna e de recém-nascidos, mas Nicolelis frisa que não deve parar por aí. “Estamos discutindo a possibilidade de evoluirmos a relação para uma parceria clínica.” O que, na prática, significaria que o hospital paulistano é candidato a ser o primeiro lugar em que o projeto dos sonhos de Nicolelis, o Walk Again, possa ser testado em humanos.

Andar de novo. Walk Again é o projeto de criar um exoesqueleto robótico controlado pelo cérebro. O grande sonho de Nicolelis é fazer um tetraplégico dar o pontapé inicial no primeiro jogo da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, como disse em entrevista ao Link no ano passado. “Testamos um protótipo nesta semana que são pernas mecânicas. Vestimos um macaco e elas se mexeram, não com o pensamento, mas com um programa de computador”, explica. “O próximo passo é anestesiar a medula espinhal do macaco, para, finalmente, testarmos se a veste consegue fazer movimentos. Faremos isso até o meio do ano. E, mais ou menos no ano que vem, nesta época, já estaremos trabalhando com pacientes em potencial. Mas isso ainda está em fase de discussão.”

Mas o Walk Again não é um fim em si mesmo. Nicolelis o compara ao programa espacial norte-americano, que estabeleceu a meta de levar o homem à Lua, mas que, no processo, alavancou outras tecnologias que surgiram durante a pesquisa. “Há várias aplicações que surgem desta meta, que chamamos de ‘spinoffs’. Até mesmo para entretenimento, como o videogame. Quando os executivos da indústria de games veem um macaquinho imerso num mundo virtual jogando videogame com a mente, eles veem o futuro.”

E antecipa, sem entregar: “Eu não posso contar agora, mas estamos perto de divulgar três novas ideias que ninguém nunca tinha tido – e que não tínhamos a menor ideia que iriam acontecer. As grandes descobertas são acidentes. Na hora em que a gente estava fazendo um experimento com macacos, vimos isso e pensamos ‘não é possível’… Essas novas ideias são tão fora do esquadro que quando a gente publicar as pessoas vão achar que estão num filme de ficção científica.”

Mas Nicolelis quer menos ficção e mais ciência. E reforça a importância do Walk Again em seu projeto científico-educacional. “O Walk Again é a semente de uma nova indústria no Brasil, a da tecnologia de reabilitação. Gostaríamos de usar o Walk Again como projeto-âncora para lançá-la aqui no Brasil com a construção da infraestrutura do parque neurotecnológico do Câmpus do Cérebro”, diz.

O projeto visa criar uma geração de cientistas no Brasil para tratar futuros alunos no pré-natal e ensinar ciência, na prática, numa escola de período integral. “Nossa abordagem de ensino de ciência é prática. As crianças aprendem a lei de Ohm descobrindo como funciona um chuveiro. E contratamos nossos ex-alunos para trabalhar conosco. Na prática, estamos pegando crianças que nunca tiveram contato com ciência, colocando-as em um programa de educação e em cinco anos elas estão trabalhando em um laboratório de ponta. E são crianças que, até os 10 anos, não tiveram oportunidades. Imagina quando pegarmos as crianças que tiveram um pré-natal ótimo…”

Isso tudo é para reverter o quadro científico brasileiro. “Nossa situação é dramática. O déficit de engenheiros que o Brasil tem é gigantesco. E esse é um assunto estratégico. A indústria deste século, sem dúvida, é a do conhecimento e estamos em grande desvantagem. Se não acordarmos agora, não precisamos mais acordar. A janela de oportunidade está se fechando – e rápido.”

Contudo, o neurocientista é otimista. “As coisas estão mudando. Esta nossa conversa seria impossível há dez anos. O governo federal está ouvindo. Presido uma comissão – a Comissão do Futuro – que está preparando um relatório para mostrar todos os indicadores internacionais sobre a verdadeira situação do ensino de ciência e da produção científica brasileira. O relatório deve ficar pronto em junho.”

E conclui: “Meu intuito diz respeito à criação de uma nova geração de brasileiros. Produzindo não apenas cidadãos – muito mais felizes, engajados, competentes – mas também engenheiros, médicos, cientistas, professores… Pessoas que têm outra visão de mundo. E de Brasil.”

Link – 23 de março de 2012

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