Letuce 2015: “Salve-se quem quiser”
Não sei se é só uma questão de ponto de vista ou se o tempo e a experiência aproximaram ainda mais os cinco integrantes do Letuce como banda. A constatação não vem só do fato do casal central do grupo – e, para muitos, a essência da banda -, a vocalista Letícia Novaes e o multiinstrumentista Lucas Vasconcellos terem se divorciado e optado pela continuação deste trabalho, mas principalmente pelo corpo do disco Estilhaça, um álbum tão envolvente e mágico quanto outra obra-prima carioca deste ano, o disco de estreia de Ava Rocha. Mas ao contrário do disco que deu o tom do primeiro semestre, este novo – que pode dar o tom deste segundo – não gira ao redor de uma musa principal, como era o próprio casal no disco anterior, Manja Perene, de 2009. Estilhaça é um disco de banda e, uma surpresa improvável, um disco de banda de rock. Um senhor disco de rock – e um dos melhores discos do ano. O disco vai ser lançado nesta terça, dia 1°, em São Paulo, na Serralheria.
O instrumental que acompanha as viagens em forma de canções de Lucas e Letícia deixa de ser apenas cúmplice e se embrenha nas composições com riffs, solos, linhas de ritmo e peso como nunca havia acontecido ao menos nos discos da banda. “Somos amigos fora da banda, Arthur (Braganti), o tecladista, é um dos meus melhores amigos, escrevemos juntos peças, temos outro projeto, Thomas (Harres, baterista) foi aluno do Lucas quando era criança, Fabinho (Fabio Lima, baixo) e Lucas eram do Binário – uma banda maravilhosa dos anos 2000 do Rio, que dali saíram vários músicos fodas”, me explica Letícia. “E Lucas e eu éramos casados, ou seja: é uma banda com muita intimidade. A gente briga, discute, põe os demônios pra fora, mas também rimos muito, gargalhamos, falamos bobagens pra dedéu e ainda temos muito tesão em tocar um com o outro. É incrível nossa química no palco, nós cinco.”
Estilhaça abre soltando raios de sol na ecumênica e expansiva “Quero Trabalhar com Vidro”, que começa o disco numa explosão de psicodelia hippie que vai sendo arrefecida à medida em que o álbum caminha. Dali ele nos leva por uma montanha russa de emoções em que a unidade da banda soa mais coesa, igualmente bruta e refinada, passando por vales iluminados (a funky “Todos os Lugares do Mundo”, suntuosa “Lugar para Dois”, um Raul Seixas crowlleyiano “Love is Magick”, a deliciosa “Animadinha” e a nua e delicada “Mergulhei de Máscara”) e regiões sombrias (o lúgubre reggae “Muita Cara”, o pântano de Screamin’ Jay Hawkins em “Aristoleles Laugh”, o dedo na cara de “Arca de Noé” e o ponto final “Todos Querem Amar”, desesperada e esperançosa ao mesmo tempo). Letícia não é mais a estrela à frente e sim uma band leader de banda de rock clássico, como se o Letuce pudesse existir nos anos 70.
“É porque pararam de dizer o duo Letuce, a dupla”, ela ri”. Claro que na real, a gente sempre foi a cabeça da banda, a gente que fazia as músicas, arranjos, letra, tudo, mas aos poucos fomos abrindo espaço para os meninos que já nos acompanhavam e tal. A gente é da escola rock, não tem como negar, talvez pela vida ter rasgado um pouco, naturalmente as canções vieram mais rasgadas também.”
Ela detalha mais o processo humano que culminou em Estilhaça: “Esse disco foi uma saga, ele já estava sendo formulado desde 2013, aí Lucas e eu nos separamos e inevitavelmente fomos fazer outras coisas, ter outras pirações, mas sempre com a ideia de retomar. Daí fomos pra Portugal, fizemos mais músicas e a vontade foi aumentando, até que apenas em fevereiro de 2015, conseguimos tempo em comum para gravar. E foi lindo, importante demais. O Manja (Perene) foi mais calculado, talvez, o Estilhaça tem três músicas de improviso, tem uma – a última – que até a voz é a voz guia, eu improvisando. E os meninos, idem.”
A coesão instrumental dos cinco foi um processo natural: “Eu amo ter banda, amo coletivo, amo a troca. Pra gente, a gente sempre foi uma banda, mas entendo que só agora talvez as pessoas estejam atentas a isso, normal. Lucas lançou dois discos solos, e cada vez mais se confirma como um grande produtor, além de excelente músico. Eu adentrei mais ainda o universo da literatura, que sempre me permeou. A audácia em cantar só surgiu porque eu sempre escrevi muito e um dia inventei melodias para os meus escritos. Lancei um livro, Zaralha, e escrevo uma vez por mês para o Segundo Caderno, do Globo. Talvez um dia faça um disco solo, mas por enquanto tô animada em lançar o Estilhaça.”
Mas ela realça o casal da frente como ponto de partida da banda: “As músicas eram sempre feitas por Lucas e eu, eu chegava com o espermatozóide e Lucas fecundava, sempre foi assim. Aí no Manja Perene, já entraram músicas de outras pessoas, como do Thomas Harres, nosso batera, Fabio Lima, nosso baixista e até uma canção do André Dahmer, ‘Ninguém muda Ninguém’. Esse disco ainda tem claro muito da minha poesia, minhas letras, minhas melodias, mas a participação de todos foi bem maior. E uma alegria!”
Comento que achei o disco catártico e Letícia concorda. “Sim, chega uma hora na vida que você vai se comprometendo com o não comprometimento”, gargalha e pergunta se faz sentido. “Tomara. Eu gravei meu primeiro disco muito nova, uma audácia, tadinha. Mas agora, com 33, eu poderia até estar mais sisuda e séria, mas não. Continuo compenetrada no tesão e no amor em cantar. Me profissionalizei mais, claro, ok. Mas na hora de gravar ou do show, é pura entrega. Lembrei de um poema da Ana Cristina César até:
‘Mocidade independente
Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as conseqüências. Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para a pequena audiência de serão? Voei pra cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão.'”
E tento provocar uma relação entre essa catarse emocional e o clima de tensão que paira sobre o Brasil hoje. “Que curioso, não tinha pensado nisso, mas agora acho que sim”, divaga. “Na última música do disco, que foi feita totalmente de improviso, eu falo sobre estar no ônibus de madrugada, uns indo e outros voltando, mas que todos querem amar. E o quanto isso dá vergonha, até peço pra alguém me assaltar, coisa e tal. Sinto uma vergonha das pessoas quererem assumir que amam. Óbvio que não generalizo e também há cada mais gente fora do armário, do amor e das drogas, gente escancarando de vez. Mas também vejo uma galera denunciando foto de amiga com peito de fora no instagram, sabe? Que vergonha. Coisa de louco. E no fundo é amor, na real é amor. Ficou confusa minha resposta, sei, perdão. Mas queria que as pessoas chutassem mais o balde. Eu chutei nesse disco. ‘Muita cara’, é uma música que chutei muitos baldes.”
Peço pra ela comentar a atual cena carioca, que vem sendo renovada nos últimos anos, e ela concorda. “Acabei de ouvir uma banda Biltre, que Arthur me indicou, curti, me fez rir. Gosto de rir ouvindo música, acho raro e bom. O próprio Arthur toca no Séculos Apaixonados, que também é demais, adoro o Guerrinha. O Rio é solar mas tem uma tristeza, né? A tristeza dos solares, é outro tipo, mas rola. Eu sou um pouco assim até. Fico feliz com toda a movimentação, não consigo acompanhar tudo, mas volta e meia algum amigo me faz um filtro e me aponta uma ou outra voz, ou eu mesma percebo um movimento. Mas de lugar pra tocar, o Rio é trash. Ou é algo gigante ou é um buraco, falta casa de médio porte.”
Estilhaça pode ser baixado de graça no site da OneRPM.
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