…e o Letters of Note virou um livro

charlotte-brown

Fonte interminável de inspiração, o blog Letters of Note (sempre comentado aqui no Trabalho Sujo) virou livro e foi lançado no Brasil. Escrevi sobre o belíssimo Cartas Extraordinárias – A Correspondência Inesquecível de Pessoas Notáveis do inglês Shaun Usher para a Ilustrada deste sábado. E a imagem que ilustra esse post é uma carta que Charles Schulz mandou para uma fã irritada com uma nova personagem chamava Charlotte Brown, que era o oposto do protagonista da tira Peanuts, Charlie Brown. Schulz concordou com a morte, não antes sem responsabilizar sua leitora pelo feito, ilustrado pelo pai do Snoopy como um machado da cabeça da ex-personagem.

Livro reúne pérolas emocionantes do universo das cartas
Versão em papel do blog Letters of Note, compilação traz correspondência enviada por pessoas notáveis

Um jovem chamado Leonardo oferece seus préstimos para o governador de Milão. Para isso, cita suas aptidões numa lista, sendo que só o décimo item comenta suas inclinações artísticas.

O líder de um movimento pela independência de um país asiático escreve para o líder de um país europeu, pedindo para que não vá além com suas intenções imperialistas.

O mundo digital ilude com a ideia da hiperconexão. Não é que não estejamos cada vez mais interligados graças à troca compulsiva de mensagens eletrônicas de toda espécie.

Mas nos esquecemos que, antes da internet, as pessoas também viviam conectadas.

E não deixa de ser irônico que um site tenha que virar livro para reforçar a importância das cartas. “Cartas Extraordinárias – A Correspondência Inesquecível de Pessoas Notáveis” é a versão impressa do blog “Letters of Note”, criado pelo inglês Shaun Usher.

Desde 2009, ele reúne pérolas emocionantes do universo da correspondência. A maioria delas é escrita por personalidades históricas de toda a sorte –políticos, artistas, cientistas, escritores, atores– em diferentes períodos de suas vidas, além de relatos anônimos de cortar o coração.

Dez dólares
Não faltam momentos históricos. Lemos um jovem Fidel Castro, aos 12 anos, em 1940, pedindo, em inglês, uma nota de dez dólares ao recém-reeleito presidente norte-americano Franklin Roosevelt.

Duas cartas são endereçadas a Marlon Brando: numa delas, de 1957, o escritor Jack Kerouac suplica para que o ator faça parte da adaptação de seu recém-lançado livro “Pé na Estrada”. Noutra, de 1970, Mario Puzo faz pedido semelhante para a versão cinematográfica de “O Poderoso Chefão”.

Há relatos tocantes, como uma carta de um ex-escravo para seu antigo dono. Outros hilários, como o do gerente de produto da Sopa Campbell a Andy Warhol, comentando o uso das latas da empresa em suas obras. Ele lhe oferece caixas com o enlatado.

Alguns outros são repugnantes, como a carta em que Jack, o Estripador, se apresenta à polícia londrina enviando um pedaço de uma de suas vítimas. Outros curiosos, como o de uma criança que sugere ao presidente norte-americano Abraham Lincoln que deixe a barba crescer.

Algumas cartas não são manuscritas. Um telegrama avisa aos militares na base de Pearl Harbor que as sirenes que estavam ouvindo não eram um teste –e sim o ataque que motivou a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial.

“Cartas Extraordinárias”, que traz fac-símile da maioria das 125 epístolas reunidas, é prazer tanto para ser folheado e lido casualmente quanto para ser devorado.

E entre as inúmeras surpresas pelo caminho, descobrimos que foi graças à uma carta que o governador de Milão contratou Leonardo da Vinci em 1483 e, dez anos depois, lhe encomendou a “Última Ceia”.

E que Gandhi tentou, por meio de uma carta, fazer com que Hitler desistisse de dominar a Europa e não provocasse a Segunda Guerra Mundial. “Pelo bem da humanidade.”

CARTAS EXTRAORDINÁRIAS
Organização Shaun Usher
Tradução Hildegard Feist
Editora Companhia das Letras
Quanto R$ 99,90

puzo-brando

O autor Mario Puzo escreve ao ator Marlon Brando, 1970.

Caro sr. Brando, Escrevi um livro chamado “O Poderoso Chefão” que teve algum sucesso e acho que o senhor é o único que pode fazer o papel Chefão com a força e a ironia (o livro é um comentário irônico sobre a sociedade americana) que o papel exige. Espero que o senhor leia o livro e goste dele o suficiente para usar todo o seu prestígio para conseguir o papel. Com essa finalidade estou escrevendo para a Paramount; pode ser que ajude. Sei que é muita presunção de minha parte, mas o mínimo que eu posso fazer pelo livro é tentar. Acho que o senhor seria fantástico. Não preciso dizer que admiro sua arte. Mario Puzo Um amigo comum, Jeff Brown, me deu seu endereço.

campbell-warhol

Carta enviada pelo gerente de produto das sopa Campbell ao artista Andy Warhol, em 1964.

Prezado sr. Warhol: // Venho acompanhando sua carreira há algum tempo. Sua obra tem despertado grande interesse aqui na Campbell Soup Company por motivos óbvios. Já tive a esperança de adquirir um de seus trabalhos com o rótulo de Campbell Soup, porém receio que seja caro demais para mim. Quero dizer-lhe, no entanto, que admiramos sua obra e que eu soube que o senhor gosta de sopa de tomate. Tomo a liberdade de enviar-lhe algumas caixas de nossa sopa de tomate, que serão entregues nesse endereço. Desejamos-lhe constante sucesso e boa sorte. Cordialmente, William P. MacFarland // Gerente de produto

Kurt Vonnegut: “Faça sua alma crescer”

kurt-vonnegut

Em 2006, um ano antes de morrer, o escritor Kurt Vonnegut recebeu envelopes contendo convites de cinco alunos da Xavier High School de Nova York que eram dever de casa: os estudantes deveriam escrever para seu autor favorito e convencê-lo a fazer uma apresentação na escola apenas com uma carta. Kurt não pode ir devido à idade, mas deixou seu recado na carta que enviou de volta à escola (que vi no Letters of Note e traduzi abaixo):

soul-grow

“Cara Escola Xavier de Segundo Grau, senhorita Lockwood e senhoras Perin, McFeely, Batten, Maurer e Congiusta:

Obrigado por suas cartas amigáveis. Vocês realmente sabem como animar um velho sujeito (84) em seus anos de crepúsculo. Eu não faço mais aparições públicas porque hoje pareço uma iguana.

O que devo dizer a vocês, aliás, não levaria muito tempo. A saber: pratique qualquer tipo de arte, música, canto, dança, teatro, desenho, escultura, poesia, ficção, ensaios, reportagens, não importa se forem boas ou ruins, não para ganhar dinheiro ou fama, mas pela experiência transformadora, para saber o que há dentro de você e fazer sua alma crescer.

Sério! Estou falando para começarem agora, façam arte e façam pelo resto de suas vidas. Faça um desenho bonito ou engraçado da senhorita Lockwood e entregue a ela. Dance em casa depois da escola e cante no chuveiro e siga por aí. Faça uma cara no purê de batatas. Finja que é o Conde Drácula.

Eis uma tarefa para hoje à noite e espero que a senhorita Lockwood os reprove se não a fizerem: escreva um poema de seis linhas, sobre qualquer coisa, mas rimado. Nenhum tênis é justo sem rede. Torne-o tão bom quanto você possivelmente pode. Mas não conte a ninguém o que está fazendo. Não mostre nem o recite para ninguém, nem para sua namorada, para seus pais, para ninguém, nem para a senhorita Lockwood. Ok?

Rasgue-o em pedacinhos minúsculos e os separe em lixeiras que estejam amplamente separadas umas das outras. Você encontrará que você já foi gloriosamente recompensado por seu poema. Você experimentou a transformação, aprendeu muito sobre o que há dentro de você e fez sua alma crescer.

Deus abençoe a todos!

Kurt Vonnegut”

No Open Culture eu vi um vídeo com a carta narrada, e abaixo segue o texto original em inglês):

 

Kubrick + Clarke

E o já clássico blog Letters of Note, que reúne trocas de correspondências históricas, resgatou a carta em que Stanley Kubrick convida Arthur C. Clarke para fazer “o proverbial ‘bom’ filme de ficção científica”, que calhou de ser 2001 – Uma Odisséia no Espaço quatro anos depois. Veja só:

SOLARIS PRODUCTIONS, INC

March 31, 1964

Mr. Arthur C. Clarke

Dear Mr Clarke:

It’s a very interesting coincidence that our mutual friend Caras mentioned you in a conversation we were having about a Questar telescope. I had been a great admirer of your books for quite a time and had always wanted to discuss with you the possibility of doing the proverbial “really good” science-fiction movie.

My main interest lies along these broad areas, naturally assuming great plot and character:
The reasons for believing in the existence of intelligent extra-terrestrial life.
The impact (and perhaps even lack of impact in some quarters) such discovery would have on Earth in the near future.
A space probe with a landing and exploration of the Moon and Mars.
Roger tells me you are planning to come to New York this summer. Do you have an inflexible schedule? If not, would you consider coming sooner with a view to a meeting, the purpose of which would be to determine whether an idea might exist or arise which could sufficiently interest both of us enough to want to collaborate on a screenplay?

Incidentally, “Sky & Telescope” advertise a number of scopes. If one has the room for a medium size scope on a pedestal, say the size of a camera tripod, is there any particular model in a class by itself, as the Questar is for small portable scopes?

Best regards,

Stanley Kubrick

Se alguém quiser traduzir, publico aqui. O Meks sugeriu a tradução abaixo. Valeu!

 

Mark Twain: “O núcleo, a alma… Vamos além, a substância, a carga, o material real e valioso de toda a expressão humana é o plágio”

Mark Twain descobriu que sua amiga Hellen Keller havia sido vítima de acusações de plágio através de sua autobiografia. Inconformado por não poder defendê-la à época, escreveu a carta abaixo para oferecer-lhe apoio, em que, à sua genial maneira, faz um ardoroso elogio ao plágio:

Riverdale-on-the-Hudson
St. Patrick’s Day, ’03

Dear Helen,—

I must steal half a moment from my work to say how glad I am to have your book, and how highly I value it, both for its own sake and as a remembrance of an affectionate friendship which has subsisted between us for nine years without a break, and without a single act of violence that I can call to mind. I suppose there is nothing like it in heaven; and not likely to be, until we get there and show off. I often think of it with longing, and how they’ll say, “There they come—sit down in front!” I am practicing with a tin halo. You do the same. I was at Henry Roger’s last night, and of course we talked of you. He is not at all well;—you will not like to hear that; but like you and me, he is just as lovely as ever.

I am charmed with your book—enchanted. You are a wonderful creature, the most wonderful in the world—you and your other half together—Miss Sullivan, I mean, for it took the pair of you to make a complete and perfect whole. How she stands out in her letters! her brilliancy, penetration, originality, wisdom, character, and the fine literary competencies of her pen—they are all there.

Oh, dear me, how unspeakably funny and owlishly idiotic and grotesque was that “plagiarism” farce! As if there was much of anything in any human utterance, oral or written, except plagiarism! The kernel, the soul—let us go further and say the substance, the bulk, the actual and valuable material of all human utterances—is plagiarism. For substantially all ideas are second-hand, consciously and unconsciously drawn from a million outside sources, and daily use by the garnerer with a pride and satisfaction born of the superstition that he originated them; whereas there is not a rag of originality about them anywhere except the little discoloration they get from his mental and moral calibre and his temperament, and which is revealed in characteristics of phrasing. When a great orator makes a great speech you are listening to ten centuries and ten thousand men—but we call it his speech, and really some exceedingly small portion of it is his. But not enough to signify. It is merely a Waterloo. It is Wellington’s battle, in some degree, and we call it his; but there are others that contributed. It takes a thousand men to invent a telegraph, or a steam engine, or a phonograph, or a telephone or any other important thing—and the last man gets the credit and we forget the others. He added his little mite—that is all he did. These object lessons should teach us that ninety-nine parts of all things that proceed from the intellect are plagiarisms, pure and simple; and the lesson ought to make us modest. But nothing can do that.

Then why don’t we unwittingly reproduce the phrasing of a story, as well as the story itself? It can hardly happen—to the extent of fifty words except in the case of a child; its memory-tablet is not lumbered with impressions, and the actual language can have graving-room there, and preserve the language a year or two, but a grown person’s memory-tablet is a palimpsest, with hardly a bare space upon which to engrave a phrase. It must be a very rare thing that a whole page gets so sharply printed on a man’s mind, by a single reading, that it will stay long enough to turn up some time or other to be mistaken by him for his own. No doubt we are constantly littering our literature with disconnected sentences borrowed from books at some unremembered time and now imagined to be our own, but that is about the most we can do. In 1866 I read Dr. Holmes’s poems, in the Sandwich Islands. A year and a half later I stole his dedication, without knowing it, and used it to dedicate my “Innocents Abroad” with. Then years afterward I was talking with Dr. Holmes about it. He was not an ignorant ass—no, not he; he was not a collection of decayed human turnips, like your “Plagiarism Court;” and so when I said, “I know now where I stole it, but whom did you steal it from,” he said, “I don’t remember; I only know I stole it from somebody, because I have never originated anything altogether myself, nor met anyone who had.”

To think of those solemn donkeys breaking a little child’s heart with their ignorant rubbish about plagiarism! I couldn’t sleep for blaspheming about it last night. Why, their whole lives, their whole histories, all their learning, all their thoughts, all their opinions were one solid rock of plagiarism, and they didn’t know it and never suspected it. A gang of dull and hoary pirates piously setting themselves the task of disciplining and purifying a kitten that they think they’ve caught filching a chop! Oh, dam—

But you finish it, dear, I am running short of vocabulary today.

Every lovingly your friend

Mark

Mais uma jóia pinçada pelo imprescindível Letters of Note, tirada do livro Mark Twain’s Letters, Vol. 2 of 2.

Stephen Hawking sobre viagens no tempo

Curto e simples, via Letters of Note.

Mas não é de se estranhar que um dos grandes mistérios do universo para ele seja bem comum a nós todos.

"O pior sentimento do mundo é achar que ninguém mais se sente do mesmo jeito que você, mas você ficaria surpresa ao descobrir quantas pessoas são assim"

Thom Yorke, escrevendo para uma fã, em 1996. Via Lettes of Note.

Conselhos de Bill Watterson

No ótimo Letters of Note.

O Homem do Amanhã

Um dos slogans mais emblemáticos do Super-Homem, o que batiza este post, nunca foi tão adequado quanto na versão original do personagem. Nesta jóia desenterrada pelo Letters of Note, Jerry Siegel, ainda em busca de um desenhista para dar vida à sua criação, cogita uma outra origem para o primeiro super-herói da cronologia oficial.

A transcrição inteira você lê no site dos caras. E, sim, se você pensou naquela história daquele certo autor que eu sou fãzaço, não comente, pois muita gente pode ainda não ter lido essa história.