Reverência ao mestre

“Edu, você é um craque!”, disse o próprio Edu Lobo, citando seu mestre e compadre Tom Jobim ao lembrar de quando gravou sua deslumbrante “Pra Dizer Adeus” ao lado de no início dos anos 80. Edu lembrou do causo logo depois de mais uma versão cortante para um de seus maiores clássicos no show em que comemorou seus 80 anos nessa sexta no teatro B32. O maestro está em ótima forma e conduziu as quase duas horas de autorreverência com uma banda à sua altura: regida pelo pianista Cristóvão Bastos, reunia nada menos que Mauro Senise e Carlos Malta (sopros), Jorge Helder (contrabaixo), Jurim Moreira (bateria), Paulo Aragão (violão), Kiko Horta (acordeon) e Marcelo Costa (percussão). Edu começou a viagem ao seu passado pelas imbatíveis como “Vento Bravo”, “Bancarrota Blues” e “A História de Lily Braun” para depois começar a receber seus convidados cantores. Começou com a novata e maravilhosa Vanessa Moreno, com quem dividiu a “Dança do Corrupião” com a letra que Paulo César Pinheiro anos depois e a emocionante “Choro Bandido” para depois deixá-la sozinha nos vocais de “Tango de Nancy” e “Ave Rara” . Depois veio Ayrton Montarroyos, que dividiu com Vanessa a maravilhosa “Primeira Cantiga” para depois fazer sozinho “Circo Mistico” e “A Moça do Sonho”. Zé Renato entrou em seguida e, sozinho, segurou “Nego Maluco” e uma versão linda de “Salmo”. Edu voltou com “Pra Dizer Adeus” e depois convidou mais uma vez Vanessa, em “Ciranda da Bailarina”. Zé Renato juntou-se aos dois numa rara versão para “Lero-Lero”, que Edu disse, rindo nervoso, ter feito sob ameaça de uma fã. Então Monica Salmaso entrou para fazer, sozinha, “Canto Triste” e “Ode Aos Ratos” e depois dividir “Cantiga de Acordar” com Edu e e Vanessa. Quase no fim do show, lembrou de quatro de suas obras-primas com os quatro convidados: “Upa Neguinho”, “Ponteio”, “Canudos” e “Na Carreira”, que parecia ter encerrado a noite. Mas um dos grandes momentos foi quando a banda voltou no bis e Edu e Monica derramaram-se no hino “Beatriz” para depois chamar todos e finalmente encerrar com “Corrida de Jangada”. Uma noite mágica.

Assista aqui:  

Tudo Tanto #003: João Donato no Beco das Garrafas

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Na minha terceira coluna para a Caros Amigos, escrevi sobre o show que vi de João Donato no Beco das Garrafas – e falei sobre sua influência na música deste século. Também fiz uns vídeos desse show, numa playlist que segue lá embaixo.

Ave Donato!
João Donato se apresenta no renascido Beco das Garrafas e mostra que sua influência na música brasileira é cada vez maior

Fui para o Rio de Janeiro meio no susto no mês passado e da mesma forma fiquei sabendo que o mítico Beco das Garrafas estava voltando a funcionar como casa de shows. Uma viela sem saída que corta a Rua Duvivier, em Copacabana, logo no início, o Beco atingiu o status legendário ao funcionar como casa das máquinas da cena musical carioca que viu nascer a bossa nova.

Influenciados pelo jazz norte-americano, instrumentistas, compositores e intérpretes se revezavam nos minúsculos palcos de bares chamados Bottle’s, Baccará, Ma Griffe e Little Club para a ira dos vizinhos, que não suportavam as jam sessions que varavam as madrugadas e saudavam os músicos com garrafas jogadas do alto. Foi Sergio Mendes quem batizou a viela de “Beco das Garrafadas”, que na versão que pegou ficou apenas com as garrafas.

Por ali passaram mestres do samba, da bossa nova e do samba-jazz, como Luís Carlos Vinhas, Chico Batera, Dom Um Romão, Airto Moreira, Bebeto Castilho, Baden Powell, Wilson das Neves, Johnny Alf, Jorge Ben e intérpretes históricas como Elis Regina, Alaíde Costa, Dolores Duran, Nara Leão, Sylvinha Telles, Leni Andrade, Claudette Soares e Wilson Simonal.

Depois dos anos 60, o beco foi esquecido, suas casas viraram ruínas de um passado histórico até que Amanda Bravo, filha de um dos músicos frequentadores daqueles palcos, Durval Ferreira, resolveu resgatar o Beco do passado. Conseguiu uma empresa (a cervejaria Heineken) que bancasse a revitalização, que transformou as quatro pequenas casas. O Bottle’s e o Baccará foram transformados em um só ambiente (para 80 pessoas) e o Little Club (para 50 pessoas) virou uma pista de dança com apresentações de DJs. Para tomar conta da programação musical Amanda chamou o produtor Kassin, um dos principais nomes da nova música brasileira deste século, que organizou um mês de apresentações reunindo destaques de uma geração mais nova que a dele, incluindo nomes como as bandas Letuce e Ultraleve, o músico Lucas Arruda, as cantoras Tiê e Alice Caymmi além de encontros entre titãs da velha guarda como João Donato e Marcos Valle e divas da nova safra como Emanuelle Araújo e Camila Pitanga, além do grupo francês Nouvelle Vague. Para o Little Club, Kassin chamou os DJs Marcelinho da Lua, o coletivo Vinil é Arte e Maurício Valladares para discotecar sets inspirados na bossa nova e no jazz brasileiro do início dos anos 60.

Tive o privilégio de assistir à apresentação de João Donato, que pouco a pouco tem sua importância resgatada, principalmente por conta desta nova leva de músicos brasileiros. Donato é precursor da bossa nova e já cantava baixinho antes de João Gilberto ser apresentado a Tom Jobim. A influência de Donato no pai da bossa nova e em seus primeiros filhotes é evidente, bem como seus discos suaves e ousados que gravou nas décadas seguintes. O próprio Kassin, que ensinou o grupo Los Hermanos a tirar o pé do rock, é uma espécie de neto musical de Donato, que é reverenciado por todos os nomes que se apresentaram na curta nova temporada do Beco das Garrafas quanto por novos músicos de todas as cepas, seus 80 (!) anos foram celebraos no Circo Voador em agosto com a presença de nomes tão distintos quanto Caetano Veloso, Luiz Melodia, BNegão e Paula Morelenbaum; em fevereiro deste ano comemorou o aniversário de 40 anos de seu Quem é Quem num show com músicos da banda Bixiga 70, Tulipa Ruiz, Mariana Aydar e Marcos Valle. Assisti o show na microplatéia do novo Bottle’s Bar entre Jards Macalé e o guitarrista Gabriel Muzak, que toca com os Seletores de Frequência de BNegão, além de ter seu próprio trabalho solo.

Todos reverenciando um monstro da suavidade, um senhor de oito décadas de música que se comporta como um menino travesso ao piano, aumentando o tom de voz apenas para falar “água!”, seu código para encerrar as músicas. No palco do Bottle’s Bar, tocando um teclado elétrico, o acreano vinha acompanhado por uma das melhores cozinhas de jazz brasileiro em atividade, o contrabaixo elegante do cearense Jorge Helder e a bateria atrevida do carioca Robertinho da Silva, além de um naipe de metais de respeito – o sax de Roberto Pontes e o trompete de Jessé Sadoc. Juntos, enveredavam por temas clássicos de Donato como “Capricorn”, “Emoriô”, “Bananeira”, “Gaiolas Abertas”, “Vento no Canavial” e “Café com Pão”, além de três números com a participação da cantora baiana Emanuelle Araújo (“A Paz”, “A Rã” e “Sambou, Sambou”), em pouco mais de uma hora de viagem no tempo que, mesmo bebendo no passado, apontava para um futuro exemplar para a música brasileira. Ave Donato!