E também esqueci de colocar a íntegra da matéria da Bizz do mês passado… Depois eu posto o depoimento do Andy Gill.
***
Guerra de um Homem Só
Uma carta, datada de 30 de setembro de 1974, enviada por um certo “Dr. Winston O’Boogie”, chegou à redação do tablóide musical inglês “Melody Maker” e foi prontamente publicada nas páginas do jornal. Depois de uma breve apresentação, ela listava uma série de itens:
“1) Eu nunca disse que era um revolucionário. Mas eu tenho direito de cantar sobre o que eu quiser! Certo?
2) Eu nunca bati em uma garçonete no Troubador. Eu agi como um cuzão, estava muito bêbado. Tem problema?
3) Acho que todos nós todos queremos atenção Rodd, e você realmente acha que eu não sei como consegui-la, sem uma “revolução”? Eu podia pintar meu cabelo de verde e rosa, pra começar!
4) Eu não represento ninguém além de EU MESMO. Parece que eu represento algo para você, senão você não seria tão violento em relação a mim (seu pai, talvez)?
5) Sim, Dodd, a violência se expressa das maneiras misteriosas que ela quer se manifestar, incluindo verbal.
6) Então o Nazz fazia “tipo heavy metal” e agora DE REPENTE começa a tocar “baladas bem levinhas”. Que original!
7) O que leva aos Beatles, “que não tinham outro estilo além de ser os Beatles”!! Isso cobre muito estilo, cara, incluindo o seu, ATÉ HOJE…
Sim, Godd, o que os Beatles fizeram foi afetar as MENTES DAS PESSOAS. Talvez você queira mais uma dose?”
Cínico, ácido, grosso e arrogante, o ex-beatle John Lennon atravessava seu histórico Finde Perdido (o “Lost Weekend”, dezoito meses longe de Yoko Ono em Los Angeles, título tirado do original de “Farrapo Humano”, de Billy Wilder, o primeiro filme a falar sobre alcoolismo) quando mandou a carta para a Inglaterra. Todd Rundgren, da banda Nazz, havia comentado em uma entrevista para o jornal inglês, comentando o fato de Lennon ter dado em cima de uma garçonete de forma agressiva. Lennon estava destruído, saindo todos os dias e enchendo a cara com profissionais do álcool como Keith Moon, Harry Nilsson e Phil Spector. Quase na metade de seus trinta anos, atravessava sua via crúcis num lento processo de destruição de uma auto-imagem que o acompanhou até seu assassinato em Nova York no dia 8 de dezembro de 1980 e segue até hoje, perene. Ao ler Rundgren comentar sua vida particular em público, deu o troco no tom amargo daqueles dias. E pensar que há menos três anos, Lennon se entregava exatamente a esta imagem e lançava seu hino da paz no mesmo mês em que abandonava seu lar inglês definitivamente – atravessaria o Atlântico como seu pai havia cansado de fazer, mas, de uma vez só. Rumo à América.
***
Lançado no último dia do mês passado durante a 63ª edição do Festival de Cinema Internacional de Veneza, “The U.S. vs. John Lennon” é um documentário que mostra como Lennon se livrou dos Beatles ao criar uma imagem que o transformou no ícone que depois tentaria exorcizar. O Lennon humanista, pacifista, feminista, engajado num projeto de fazer as pessoas pararem para pensar no que acontece ao seu redor através da música. Produzido pela mesma Lions Gate de filmes como “Crash – No Limite” e “Farenheit 11 de Setembro”, o filme é dirigido pelo mesmo David Leaf que acompanhou o processo de reconstituição do Pet Sounds dos Beach Boys no imaginário coletivo (desde a primeira reedição à caixa com quatro CDs) ao lado de seu compadre John Schenfeld. Ambos dirigiram e produziram diferentes documentários para a TV, abordando temas caros mas não centrais na cultura americana, como Nat King Cole, Harry Nilsson, Ricky Nelson, Dean Martin e Jimmy Durante, e agora pulam pala a tela grande com um assunto digno da proporção do salto.
“The U.S. vs. John Lennon” trata da transformação da rebeldia rock’n’roll do fundador dos Beatles em ativismo político, e como suas declarações e manifestações em público passaram a incomodar gente graúda no governo americano – mais especificamente Richard M. Nixon, em sua campanha para reeleição em 1972. Fala de sua mudança de países e como, ao entrar pelos EUA com uma guia escaldada em Nova York (antes de conhecer Lennon, Yoko Ono era uma artista respeitada nos circuitos de vanguarda da cidade), percebeu que poderia se reinventar como ser humano, não como celebridade. Sua relação com a cidade mudou sua forma de ver o mundo e o tornou consciente de seus limites e missões. Estes batiam de frente com a administração Nixon que, além de colocar o FBI em seu encalço, acionou pessoalmente seu departamento de deportação para devolver aquele inglês de volta pra sua ilha. Já havia perdido uma eleição para um Kennedy, não ia perder para um beatle.
Trechos de programas para a TV na época e material inédito e raro, além de entrevistas com personalidades e contemporâneos desta época formam o grosso do filme, que ainda rendeu uma trilha sonora com duas músicas nunca lançadas – uma versão ao vivo para “Attica State”, durante o show pela libertação de John Sinclair em 1971 e uma versão instrumental para “How Do You Sleep?”, do disco Imagine, do mesmo ano. “The U.S. vs. John Lennon” estréia nos EUA no dia 15 de setembro e ainda não tem previsão de quando chega ao Brasil.
Mas não dá para furtar-se do fato das conotações políticas envolvidas no lançamento: desde os cartazes que iniciaram a divulgação do filme (reproduzindo a campanha de 1969, quando John e Yoko compraram outdoors em 11 cidades do mundo, com os dizeres: “War is Over/ If You Want It”, “A Guerra Termina/ Se Você Quiser”), até trechos de entrevistas no próprio documentário que aludem ao fato que o personagem Lennon, o político, o ativista, o agitador, fazer falta do cenário atual. “É triste o fato de o mundo estar em guerra”, disse Leaf à agência de notícias Reuters, “acho que um filme sobre Lennon, destemido em sua campanha pela paz, é particularmente relevante numa época em que o medo parece mandar”.
***
Há exatos trinta e cinco anos, quando acabou de gravar o álbum Imagine, em que apresentaria o maior hit de sua carreira – dentro ou fora dos Beatles – ao mundo, Lennon decidiu mudar-se para os Estados Unidos. Frasista de efeito, repetia aos quatro ventos a frase que funciona como epígrafe do segundo disco de sua Anthology pessoal: “Se eu vivesse na época dos romanos, teria que viver em Roma. Onde mais? Hoje os Estados Unidos são o Império Romano e Nova York é a própria Roma”.
“Foi uma época tumultuada pra ele”, lembra a biógrafa Elizabeth Patridge, autora do livro “All I Want is the Truth”, “E Nova York era o lugar certo para ele, pois havia tanta coisa acontecendo e, paradoxalmente, a cidade lhe oferecia privacidade”.
Dito assim, os contornos que levaram Lennon a pisar pela última vez como turista no Aeroporto Internacional John Fitzgerald Kennedy foram primordialmente políticos, mas haviam outros motivos: os altos impostos cobrados pela Coroa Britânica, assunto nunca comentado em voz alta, e mais uma tentativa de resgatar a filha de Yoko, Kyoko, que estava nos EUA com seu pai, Tony Cox.
Mas Lennon queria, mais que o palco, o palanque. É fácil dizer que John havia adotado o rock’n’roll nos anos 50 devido à sua natureza de bad boy, mas esta só realmente surgiu quando lhe foi confrontado com diferentes patamares de autoridade – a ausência dos pais e os mimos da Tia Mimi, que lhe criou, ajudaram a criar confusão com quem queria lhe dizer o que fazer.
Rebelde sem causa, Lennon era o menos proletário dos quatro Beatles e, entre eles, era quem tinha a consciência artística mais aguçada. Ao chocar estes três universos – o arruaceiro que sentava no fundo da classe, o menino estragado pelos confortos da tia e o existencialista crítico da própria produção artística – criava uma personalidade distinta, doce e ácida o suficiente para até hoje ser considerado uma espécie de santo moderno. Mas se nos primeiros dias da montanha-russa dos Beatles John era tido como o espertinho, sempre com uma resposta pronta para qualquer provocação, à medida em que as coisas começaram a fugir do controle, o que parecia apenas sarcasmo juvenil aos poucos foi dando lugar a outro tipo de manifestação.
Começou antes da Beatlemania atravessar o Atlântico, quando, ao agradecer ao público da principal apresentação dos Beatles até aquele 4 de novembro de 1963, que incluía ninguém menos que a Rainha Elizabeth, a Rainha Mãe e a Princesa Margaret, durante a Royal Variety Performance, na capital inglesa, Lennon soltou uma de suas muitas tiradas históricas: “As pessoas nos lugares mais baratos podem bater palmas”, dizia enquanto fazia Paul McCartney e Brian Epstein congelar de aflição com o possível uso do adjetivo “fuckin’”, como tinha prometido, “o resto de vocês, podem chacoalhar as jóias”.
Começava a se incomodar com as injustiças do mundo e a falar sobre elas, mesmo que Brian, o empresário que transformou o grupo de Liverpool em pop, pedisse para que ele por favor não mencionasse nada sobre a Guerra do Vietnã, que crescia no imaginário mundial com a mesma velocidade e agressividade dos Beatles. Ele e George logo dariam entrevistas condenando o conflito, mas não chegou sequer a arranhar a reputação do grupo. Foi outro assunto que deu pano para a manga e transformou Lennon em algo maior do que um mero popstar.
“O Cristianismo irá acabar. Irá diminuir e encolher. Não dá pra fazer nada, estou certo e provarei que estou certo”, disse numa entrevista à jornalista-tiete Maureen Cleave, numa entrevista publicada na edição de 4 de março de 1966 do jornal londrinho “Evening Standard”. E continuou: “Hoje, somos mais populares do que Jesus. Eu não sei o que irá embora antes, o rock’n’roll ou o o Cristianismo”.
Em menos de um semestre – tempos pré-satélite e internet – a frase atravessou o oceano e chegou nos rincões cristãos dos EUA como se Lennon tivesse dito que os Beatles eram maiores que Jesus Cristo. Discos queimados, rituais realizados pela Ku Klux Klan contra o grupo, planos em adiar mais a turnê, ameaças de morte. John realmente temia por sua vida e qualquer flash na platéia lhe lembrava que podia ter sido um tiro. Com aquela frase, ele atenuou as tensões das turnês e antecipou o fim da primeira fase dos Beatles, que os tirou dos palcos e os transformou em artistas de estúdio. Mas a mudança para Lennon havia sido maior: ele havia percebido o poder da sua voz.
E até o fim dos Beatles, passou a amplificá-la para diferentes lados, cada vez mais ciente do poder de comunicação das canções, mais do que o de entretenimento. Cada música de Lennon entre 1967 e 1970 tem conotações que vão além do mero pop. Queria mostrar para as pessoas o que pensava, o que sentia.
Chorou a perda da mãe, lembrou da infância, criticou os cínicos, festejou Yoko, clamou por revolução. Terminou seu ciclo no grupo com uma música criada para a campanha de Timothy Leary para governador da Califórnia (“Come Together”) e com a música composta em seus protestos pela paz ao lado de Yoko Ono em quartos de hotéis pelo mundo, em que convidava jornalistas e personalidades para discutir o estado das coisas e pedir paz, nos famosos bed-ins (“Give Peace a Chance”).
***
Quando mudou-se para os Estados Unidos, veio pilhado de política, gastando o verbo em entrevistas memoráveis e compondo canções qualquer cada vez mais apertavam o dedo nas feridas que o incomodavam. Assim, foi natural que, ao chegarem em Nova York, no dia 3 de setembro de 1971, John e Yoko tenham sido recebido por duas das principais figuras do ativismo político americano: Jerry Rubin e Abbie Hoffman.
Os dois eram parte do grupo que ficou conhecido como “os sete de Chicago”, que, ao lado da banda MC5, tomaram de assalto a Convenção Nacional do Partido Democrata Americano em 1968, lançando a candidatura do porco Pigasus para concorrer com Eugene McCarthy e Hubert Humphrey, os nomes que surgiram após o candidato natural, Robert Kennedy, morrer assassinado no dia 6 de junho daquele ano. Mas a farra custou caro e o grupo foi indiciado por incitar protestos e atiçar conspirações. O julgamento os inocentou, no final das contas, e, com a fama, Rubin e Hoffman fundaram o partido de mentira Partido da Juventude Internacional, cuja sigla, “YIP”, dava origem ao nome de seus simpatizantes, os Yippies.
Com Hoffman e Rubin emocionados com o fato de um músico da grandeza de Lennon ter, mais do que simpatizado, abraçado sua causa, eles logo entraram no coração da contracultura política nova-iorquina e logo estavam organizando e participando de passeatas, protestos e shows com motivações políticas. O principal deles foi o concerto para a libertação de John Sinclair, ativista político, antigo empresário do MC5 e criador dos Panteras Brancas (outro partido de gozação), que havia sido condenado a dez anos de cadeia por ter sido apanhado com dois cigarros de maconha. O concerto aconteceu no dia 10 de dezembro de 1971 e dois dias depois Sinclair estava livre.
Mais do que prometer, Lennon cumpria.
***
Quase dez anos mais tarde, o estagiário de direto Jon Wiener foi ao escritório do FBI e pediu os arquivos da polícia federal americana sobre John Lennon. O ex-beatle havia sido morto há menos de três meses e o estudante tinha um pressentimento sobre o que poderia haver nas fichas do Bureau. “O FBI me disse que eles tinham mais de 400 páginas sobre Lennon dos anos de 71 e 72, quando ele mudou-se para Nova York e se juntou ao movimento pacifista”, conta hoje Wiener, autor do livro “Gimme Some Truth – The John Lennon FBI Files”, “destes papéis, eles diziam que dois terços eram arquivos de segurança nacional e não poderiam ser liberados”.
No livro de Wiener, provas que a paranóia que começa a baixar sobre Lennon a partir de 72 era real: telefones grampeados, movimentos rastreados, transcrições de reuniões com amigos, tentativas de batidas para apreensão de drogas e até uma foto transmitida para todo o país para que os agentes federais pudessem identificá-lo (detalhe surreal: mesmo sendo um dos rostos mais conhecidos do mundo, o FBI anexou uma foto do cantor David Peel, cuja carreira fora lançada por John). “Só no final do ano passado que todos os arquivos foram liberados”, conta o autor, “mas há serviços secretos de outros países, como o MI5 inglês, que também têm documentos sobre vigilância de Lennon”.
O motivo da perseguição do governo americano era simples: Lennon era contra a guerra do Vietnã, o presidente Nixon era a favor e os dois estavam em rota de colisão. Ainda mais quando Lennon, Rubin e Hoffman resolveram fazer de tudo para atrapalhar a campanha para a reeleição de Nixon – de canções a protestos sistemáticos. O governo americano, além de lançar o FBI, ainda dispôs de dois recursos para desbaratinar o ex-beatle: “Ao serviço de imigrição foi passado a missão de deportá-lo, enquanto coube à CIA monitorar seu dia-a-dia doméstico”, continua Wiener, “é possível que outras agências tenham o mantido sob escuta – inteligência do exército, polícia de Nova York – mas não sabemos ao certo”.
***
Perseguido pelo FBI e pelo serviço de imigração americano e completamente obcecado por causas políticas que ia descobrindo diariamente, Lennon deixou a música em segundo plano. Ele foi co-apresentador do talk show de Mike Douglas durante uma semana inteira de fevereiro, trazendo Hoffman e Rubin para os lares americanos, na mesma época em que, ao lado de Yoko e da banda Elephant’s Memory (rebatizada de Plastic Ono Elephant’s Memory Band) fez um de seus discos mais fracos, “Some Time in New York City”, lançado em junho. As faixas são todas panfletárias e quase todas estáveis, secas e com pouca emoção – salvo a brilhante exceção que é “Woman is the Nigger of the World”. Criou o conceito de “música jornal” que era levado até a capa do disco, que imitava o “New York Times” e que trazia canções como se estas fossem matérias – denunciando condições carcerárias, a guerra santa no Reino Unido, o sistema educacional, sexismo, racismo.
O disco foi recebido pela crítica com frieza e com desânimo pelo público, embora tenha dado origem a dois shows beneficentes no Madison Square Garden em agosto daquele ano, à frente da mesma banda com a qual gravou o disco, que seriam as últimas apresentações oficiais da vida de Lennon. Anos mais tarde, ele participaria de duas músicas em show de Elton John, mas foi o Lennon político – com a farda da força aérea britânica, longas e volumosas costeletas, sem barba e de óculos de lentes azuis – quem encerrou oficialmente a carreira de John nos palcos.
Alie isso a brigas judiciais sobre os direitos autorais de “Come Together” (que Chuck Berry dizia ser sua) e a tentativa de obter o visto definitivo para ficar nos EUA e aos poucos Lennon foi cansando. A pá de cal no Lennon político aconteceu no dia da vitória de Richard Nixon na eleição de 1972, quando, numa festa na casa de uns amigos, John, bêbado, pegou uma garota pela mão e levou-a para um quarto. Bateu a porta e alguém lembrou que aquele era o quarto onde estavam os casacos, mas era tarde: Lennon partiu pra cima da menina ruidosamente, constrangendo todos os presentes e principalmente Yoko Ono, que teve de, calada, ouvir os gemidos do outro cômodo. Começariam então os jogos mentais que desestabeleceriam de vez a relação do casal, que, em menos de um ano, estaria separado – inclusive em cidades diferentes.
Mas isso é outra história.
***
Publicada no dia 21 de janeiro de 1971 no jornal inglês “Red Mole” (isso mesmo, a “Toupeira Vermelha”, uma publicação trotskista), a entrevista a seguir foi realizada pelo escritor, diretor e jornalista paquistanês Tariq Ali, ao lado de seu colega de ativismo Robin Blackburn, que hoje dá aula New School University em Nova York e é editor da New Left Review.
Ali, um dos principais críticos do capitalismo ocidental desde os anos 70 – quando protagonizou debates históricos com o homem que mandava nos EUA na época, Henry Kissinger – até hoje – foi vaiado na Feira de Livros Internacional de Parati deste ano, onde foi um dos convidados internacionais em terras brasileiras, por defender seus velhos princípios de que a política de Israel é nociva para o Oriente Médio. Ele é autor de vários livros sobre a contracultura e movimentos políticos da década de 60 e de diversos temas em voga nesta era de peso político nos ombros do inconsciente coletivo depois do 11 de setembro. Terrorismo, geopolítica, economia internacional, imperialismo e resistência são alguns dos temas recorrentes no imaginário relacionado ao autor, cujo livro mais recente chama-se “Pirates of the Caribbean: Axis of Hope” (“Piratas do Caribe: Eixo da Esperança”, publicado pela Verso), em que examina a revolução bolivariana de Hugo Chávez na Venezuela e traça paralelos com os governos de Evo Moralez na Bolívia e Fidel Castro em Cuba.
Mas há pouco mais de 35 anos, ele era apenas um ativista ferrenho que se encontrava com o maior rockstar de seu tempo. Lennon, recém-saído dos Beatles, começava a abraçar o ativismo político e usava sua influência pop para divagar sobre inúmeros assuntos relacionados à Guerra do Vietnã, o papel dos EUA e da Inglaterra no cenário internacional e sua função como intelectual orgânico, que prega e age ao mesmo tempo. Essas divagações começaram nos bed-ins como Yoko Ono e continuaram em séries de longas entrevistas que John daria para diversos veículos, como o representado por Ali e Blackburn, que você lê pela primeira vez em português a seguir.
Tariq Ali: Seu último disco e declarações sugerem que seu ponto de vista se tornou mais radical e político. Quando isso começou?
John Lennon: Eu sempre tive inclinações políticas, contra o status quo. É bem básico enquanto você cresce, como eu cresci, odiar e temer a polícia como um inimigo natural e desprezar o exército como algo que leva as pessoas embora para morrer em algum lugar.
É uma coisa básica da classe operária, que começa a desgastar quando você fica velho, arruma uma família e é engolido pelo sistema.
No meu caso, eu nunca não fui político, apesar de a religião ter obscurecido isto em meus dias mais ácidos, por volta de 65 ou 66. E que a religião era diretamente o resultado daquela merda de superestrela – a religião foi um canal de escape para a minha repressão. Eu pensei, “Bem, deve ter algo a mais na vida, não é? Não é só isso, com certeza?”.
Mas eu sempre fui político de uma certa forma, sabe. Nos dois livros que escrevi, mesmo que eles estejam escritos num nonsense joyceano, há muitos cutucões na religião e há uma peça sobre um trabalhador e um capitalista. Eu satirizava o sistema desde a minha infância. Eu fazia revistas na escola e as distribuía de mão em mão.
Eu sempre tive consciência de classe e sempre agi de forma agressiva, porque eu sabia o que acontecia comigo e sabia sobre a repressão de classe sobre nós – era a porra de um fato, mas no furacão do mundo dos Beatles isso acabou de fora, eu saí da realidade por um tempo.
Ali: Ao que você atribui a razão do sucesso do seu tipo de música?
Lennon: Na época eu imaginava que os operários haviam conseguido, mas eu percebi em retrospecto que é o mesmo acordo que eles fizeram com os negros, era exatamente como eles permitiam que os negros pudessem ser corredores, boxeadores ou artistas. Essa é a escolha que eles te dão – agora o veículo é ser um astro pop, o que é exatamente o que vou dizer no disco na música “Working Class Hero”. São as mesmas pessoas que ainda têm o poder, o sistema de classes não mudou nada.
Claro que agora há muito mais gente por aí com os cabelos compridos e uns garotos classe média descolados com roupas legais. Mas nada mudou, fora o fato que estamos melhores vestidos, deixamos os mesmos filhosdaputa mandar em tudo.
Ali: Quando você começou a romper com o papel lhe imposto por ser um Beatle?
Lennon: Mesmo no auge dos Beatles eu tentei ir contra aquilo, como George. Fomos aos EUA algumas vezes e Epstein sempre tentava nos desconversar para que não falássemos nada sobre o Vietnã. Até que chegou uma hora quando George e eu dissemos: “Escute, a próxima vez que eles perguntarem, vamos dizer que não gostamos daquela guerra e que eles devia sair dali agora!”. E foi isso que fizemos. Na época, foi uma coisa muito radical, principalmente para os “Fab Four”. Foi a primeira oportunidade que eu tive de agitar um pouco a bandeira.
Mas você tem de lembrar que eu sempre me senti reprimido. Estávamos tão pressurizados na época que mal tínhamos chance de nos expressar, ainda mais naquela correria, sempre em turnês e sempre mantido num casulo de mitos e sonhos. É bem difícil quando se é o César e todo mundo te diz como você é maravilhoso e te dão tudo de bom e as meninas, é bem difícil sair disso e dizer ‘Eu não quero ser um rei, eu quero ser real’. Então, desta forma, a segunda coisa política que fiz foi dizer que “os Beatles são maiores que Jesus”. Isso realmente arruinou tudo, eu quase fui morto nos Estados Unidos por causa disso. Foi um grande trauma para os moleques que nos seguia. Até então havia uma política velada sobre não responder questões delicadas, apesar de eu sempre ter lido jornal, a parte de política.
A consciência contínua do que acontecia me fazia sentir vergonha por não dizer nada. Eu explodi porque eu não conseguia mais jogar aquele jogo, era demais para mim. Claro que ir para os Estados Unidos fez crescer essa cobrança sobre mim, particularmente pela guerra acontecer com eles. De certa forma, nos tornamos um Cavalo de Tróia. Os “Fab Four” foram exatamente para o topo e então cantaram sobre drogas e sexo e se meteram em coisas cada vez mais pesadas e então eles resolveram nos deixar de lado.
Era uma opressão total. Quer dizer, tivemos que atravessar humilhação atrás de humilhação com a classe média e o mundo do entretenimento e os Lord Mayors e coisas assim. Eles eram tão condescendentes e idiotas. Todo mundo queria nos usar. Era uma humilhação em especial para mim, porque eu não conseguia ficar calado e sempre tinha que estar bêbado ou dopado para contrabalançar essa pressão. Era um inferno…
Yoko Ono: E acabava o privando de qualquer experiência real, sabe…
Lennon: Era muita mesquinharia. Quero dizer, além do primeiro rubor de conseguir – a emoção do primeiro disco no topo da parada, a primeira viagem aos EUA. Primeiro, tínhamos o objetivo de sermos tão grandes quanto Elvis – continuar em frente era o grande barato, mas na verdade ele veio junto com uma grande frustração. Eu percebi que tinha que agradar continuamente o tipo de pessoa que eu sempre havia odiado quando era criança. Isso começou a me trazer de volta à realidade.
Comecei a perceber que todos somos oprimidos por isso resolvi que eu devia fazer algo sobre isso, apesar de eu não saber qual é o meu lugar.
Robin Blackburn: Em todo caso, política e cultura estão interligadas, não? Quero dizer, os operários atualmente são reprimidos pela cultura e não por armas…
Lennon: Estão dopados…
Blackburn: E a cultura que está os dopando é aquela em que o artista precisa dar certo ou errado…
Lennon: É isso que eu quero com estes álbuns e entrevistas. Quero influenciar as pessoas que eu posso influenciar. Todas aquelas que ainda estão naquele sonho e deixar uma grande interrogação em suas mentes. O sonho de ácido terminou, é isso que estou querendo dizer.
Quando eu comecei, o próprio rock’n’roll era a revolução básica para as pessoas da minha idade e na minha situação. Precisávamos de algo alto e claro para atravessar toda a apatia e a repressão que caía sobre nós moleques. Éramos um tanto conscientes para começar como uma imitação dos americanos. Mas lidávamos com a música e descobrimos que era meio country branco e meio rhythm’n’blues negro. A maior parte das músicas vieram da Europa e da África e então estavam voltando pra gente. Muitas das melhores canções de Dylan vieram da Escócia, Irlanda ou Inglaterra. Era uma espécie de intercâmbio cultural.
Mas no geral música folk são pessoas com vozinhas doces tentando viver algo antigo e morto. É tudo meio chato, como balé: uma coisa de uma minoria que ainda sobrevive graças a um grupo que também é uma minoria. A música folk, popular, dos dias de hoje é o rock’n’roll. Apesar de ele ter acontecido de emanar dos EUA, no fim, isso não é importante, porque nós escrevemos nossa própria música e isso mudou tudo.
Ono: Existem basicamente dois tipos de pessoas no mundo, as pessoas que têm confiança porque sabem que têm a habilidade para criar e as pessoas que têm sido desmoralizadas, que não têm confiança em si mesmo porque lhes disseram que eles não tinham habilidade criativa, que eles deviam obedecer ordens. O sistema gosta de pessoas que não assumam a responsabilidade e que não se respeitem. As pessoas precisam acreditar em si mesmas.
Ali: Este é um ponto vital. A classe operária precisa ser incutida de um sentimento de confiança em si mesma. Isso não pode ser feito apenas com campanhas – os trabalhadores devem mover-se, assumir suas próprias fábricas e mandar os capitalistas pastarem. Foi isso que começou a acontecer em maio de 1968, na França. Os trabalhadores passaram a sentir sua própria força.
Lennon: Mas o partido comunista estava envolvido, não estava?
Blackburn: Não, não estava. Com 10 milhões de operários em greve eles poderiam ter transformado uma das maiores passeatas que aconteceram no centro de Paris em uma ocupação massiva de todos os prédios e instituições governamentais, substituindo DeGaulle com uma nova forma de poder popular como a Comuna ou os Sovietes originais – eles teriam começado uma revolução de verdade, mas o partido comunista francês teve medo. Eles preferiram lidar com o topo, em vez de encorajar os trabalhadores e a terem a iniciativa…
Lennon: Ótimo, mas há um problema aí, você sabe. Todas as revoluções aconteceram quando um Fidel, um Marx, um Lênin ou quem for, que eram intelectuais, conseguiram comunicar-se com os trabalhadores. Eles juntaram um punhado de pessoas e os trabalhadores pareciam entender que estavam em um estado repressor. Eles ainda não acordaram, eles ainda acham que carros e aparelhos de TV são a resposta. Você deveria fazer estes estudantes de esquerda saírem e conversarem com os trabalhadores, fazer com que os estudantes se envolvam com o Red Mole.
Devemos atingir jovens operários porque é quando eles são mais idealistas e têm menos medo.
Os revolucionários de alguma forma tem de atingir os trabalhadores, porque os trabalhadores não vão chegar neles. Mas é difícil saber onde começar, nós temos um dedo num buraco na represa. O problema para mim é que à medida em que eu me tornei mais real, eu deixei a classe trabalhadora para trás – você sabe, eles gostam de Engelbert Humperdinck. São os estudantes que nos compram hoje e isso não é problema. Agora os Beatles são quatro pessoas separadas, não temos mais o impacto que tínhamos quando estávamos juntos…
Blackburn: Você está nadando contra a corrente da sociedade burguesa, que é bem mais difícil.
Lennon: Sim, eles controlam todos os jornais, toda a distribuição e promoção. Quando aparecemos havia apenas a Decca, a Philips e a EMI através das quais você podia conseguir ter um disco produzido. Você tinha de atravessar toda uma burocracia para chegar ao estúdio de gravação. Você fica numa posição tão miserável, que você não tem nem dozes horas para gravar um disco, que era o que tínhamos no começo.
Mesmo agora é o mesma coisa. Se você é um artista desconhecido, você tem sorte se conseguir uma hora num estúdio – é uma hierarquia e se você não fizer sucesso, você não volta a gravar. E eles controlam a distribuição. Tentamos mudar isso com a Apple, mas no final fomos derrotados. Eles ainda controlam tudo. A EMI matou nosso disco Two Virgins porque eles não gostaram. No último disco, eles censuraram as letras das músicas que estavam na contracapa do disco. Merda ridícula e hipócrita – eles me deixam cantar, mas não deixam que você leia. Loucura.
Blackburn: Apesar de você atingir menos pessoas hoje, talvez o efeito seja mais concentrado.
Lennon: Sim, acho que isso é verdade. Para começar, as pessoas de classe média reagiram contra nossa abertura em relação ao sexo. Eles têm medo da nudez, eles estão tão reprimidos quanto os outros. Talvez eles pensaram, “Paul é um cara legal, ele não faz esse tipo de coisa”.
Mas os trabalhadores são mais amigáveis conosco, por isso acho que há uma mudança. Parece que os estudantes estão meio acordados o suficiente para tentar acordar seus irmãos operários. Se você não passar seu conhecimento, então ele se fecha novamente. Por isso acho que a necessidade básica é que os estudantes se dêem com os operários e os convençam de que não falamos bobagem. E claro que é difícil saber o que os trabalhadores pensam de verdade, porque a imprensa capitalista só usa aspas de falastrões como Vic Feather mesmo.
Por isso, resta apenas falar com eles diretamente, especialmente com os jovens. Temos que começar com eles porque eles sabem contra quem eles estão. É por isso que eu falo da escola no disco. Eu quero incitar as pessoas para quebrar a moldura, serem desobedientes na escola, mostrar a língua, insultar a autoridade.
O quanto mais nós encaramos a realidade, mais percebemos que a irrealidade é o prato principal do dia. O quanto mais reais nos tornamos, o quanto mais forçamos a barra, isto também nos radicaliza de uma forma, como se fôssemos colocados num canto. Mas seria melhor que existissem mais de nós.
Ono: Nós não devemos ser tradicionais na forma que nos comunicamos com as pessoas – especialmente com o sistema. Devemos surpreender as pessoas ao dizer coisas novas de formas inteiramente novas. Comunicação tem uma força fantástica desde que você não aja da forma que esperam que você aja.
Blackburn: A comunicação é vital para construer um movimento, mas no fim das contas ela é inofensiva se você não desenvolver uma força popular.
Ono: Eu fico muito triste quando penso no Vietnã, onde parece não haver escolha a não ser a violência. Esta violência tem atravessado séculos apenas se perpetuando. Nesta época em que vivemos, quando a comunicação é tão rápida, nós devíamos criar tradições diferentes, tradições são criadas todos os dias. Cinco anos hoje é como cem anos antes. Vivemos em uma sociedade sem história. Não há precedentes de um tipo de sociedade destes, por isso podemos romper velhos padrões.
Ali: Nenhuma classe dominante em toda a história desistiu de seu poder voluntariamente e eu não acho que isso tem mudado.
Blackburn: E vivemos em um país imperialista que explora o Terceiro Mundo e até nossa cultura está envolvida nisso. Houve um tempo em que a música dos Beatles tocava na “Voz da América”…
Lennon: Os russos diziam que éramos robôs capitalistas, o que acho que seja verdade…
Blackburn: Eles eram bem burros para não ver que era outra coisa.
Ono: Essa é a verdade, os Beatles eram a música popular do século vinte numa moldura capitalista, eles não podiam fazer nada diferente se eles quisessem se comunicar dentro desta moldura.
Blackburn: Eu estava em Cuba quando Sgt. Pepper’s saiu e foi quando eles começaram a tocar rock no rádio.
Lennon: Tomara que eles não vejam o rock’n’roll como a mesma coisa que a Coca-Cola. À medida que avançamos para além do sonho isso parece ser mais fácil: é por isso que estou dizendo declarações mais fortes e tentar tirar essa imagem de ídolo adolescente. Eu quero atingir as pessoas certas e eu quero que o que eu diga seja simples e direto.
Capa desta edição da Bizz é minha, falando sobre a fase ativista político de Lennon, logo que ele chega aos EUA, em setembro de 71: textinho sobre o The U.S. vs John Lennon, entrevista com o Jon Wienner, tradução da entrevista feita pelo Tariq Ali na época e papo sobre rock e política com o Andy Gill do Gang of Four. Tudo no meu nome.
Sei que tou devendo o entrevistão drogas e o memorial de Syd Barrett que eu fiz pra revista. Conserto isso dia desses…
Taí o trechinho que eles liberaram no site:
Há exatos 35 anos, quando gravou Imagine, em que apresentaria o maior hit de sua carreira, Lennon decidiu mudar-se para Nova York. Curiosamente, ele era o menos proletário dos quatro Beatles e, entre eles, quem tinha a consciência artística mais aguçada. Quando mudou-se para os EUA, veio pilhado de política, gastando o verbo em entrevistas memoráveis e compondo canções que cada vez mais apertavam o dedo nas feridas que o incomodavam. Assim, foi natural que, ao chegar em Nova York, no dia 3 de setembro de 1971, John e Yoko tenham sido recebidos por duas das principais figuras do ativismo político americano: Jerry Rubin e Abbie Hoffman, os dois eram parte dos “sete de Chicago”, grupo que, ao lado do MC5, tomou de assalto a Convenção Nacional do Partido Democrata Americano em 1968, lançando a candidatura do porco Pigasus.
Assim, Lennon e Yoko entraram no coração da contracultura política nova-iorquina e logo estavam organizando e participando de passeatas e shows com motivações políticas. O principal deles foi o concerto pela libertação de John Sinclair, ativista político, antigo empresário do MC5 e criador dos Panteras Brancas (um partido de gozação), condenado a dez anos de cadeia por porte de dois cigarros de maconha. Quase dez anos mais tarde, o estagiário de direito Jon Wiener foi ao escritório do FBI e pediu os arquivos da polícia federal americana sobre John Lennon. “O FBI me disse que eles tinham mais de 400 páginas sobre Lennon dos anos de 71 e 72”, conta hoje Wiener, autor do livro Gimme Some Truth – The John Lennon FBI Files. “Destes papéis, eles diziam que dois terços eram arquivos de segurança nacional e não poderiam ser liberados.”
Perseguido e obcecado por causas políticas que descobria diariamente, Lennon deixou a música em segundo plano. A pá de cal no Lennon político aconteceu no dia da vitória de Richard Nixon na eleição de 1972. Numa festa, completamente bêbado, John pegou uma garota pela mãoe levou-a para um quarto, constrangendo todos os presentes e principalmente Yoko, que teve de, calada, ouvir os gemidos do outro cômodo. Começariam então os jogos mentais que abalariam de vez a relação do casal… Mas essa é outra história.
[A]Instant Karma’s gonna get [F#m]you, [A]gonna knock you right on the [F#m]head
[A]You better get yourself to[F#m]gether, [F]pretty soon you’re [G]gonna be [A]dead
[D]What in the world you thinking [Bm]of, [D]laughing in the face of [Bm]love
[C]What on earth you tryin’ to [Am7]do, it’s [D]up to you, yeah [E9]you
[A]Instant Karma’s gonna get [F#m]you, [A]gonna look you right in the [F#m]face
[A]You better get yourself to[F#m]gether darling, [F]join the [G]human [A]race
[D]How in the world you gonna [Bm]see, [D]laughing at fools like [Bm]me
[C]Who on earth d’you think you [Am7]are? A [D]superstar? Well al[E7]right you are
Refrão
Well we [G]all [Bm]shine [Em]on like the [G]moon and the [Bm]stars and the [Em]sun
Well we [G]all [Bm]shine [Em]on [D]every one, [E9]come on
[A]Instant Karma’s gonna get [F#m]you, [A]gonna knock you of your [F#m]feet
[A]Better recognize your [F#m]brothers, [F]every [G]one you [A]meet
[D]Why in the world are we [Bm]here? [D]Surely not to live in pain and [Bm]fear[Bm7]
[C]Why on earth are you [Am]there? When you’re [D]everywhere, come and [Em7]get your share
Refrão
Well we [G]all [Bm]shine [Em]on like the [G]moon and the [Bm]stars and the [Em]sun
Well we [G]all [Bm]shine [Em]on [D]every one, [E9]come on
[A]Yeah yeah[F#m] al[A]righ[F#m]t [A]Ah [F#m]haa [C]Aaa[G]ah[A]h
Refrão
Well we [G]all [Bm]shine [Em]on like the [G]moon and the [Bm]stars and the [Em]sun
Well we [G]all [Bm]shine [Em]on [D]every one, [E9]come on
Em clima “Imejinóudepipôl!”, desenterrei uma semicapa (a outra metade era o Iron Maiden) sobre os 20 anos da morte do John, que também conta com um “e se…” na linha do que o Joca fez pra Folha terça. Como o texto é pr[e-edição, tem muita coisa que não saiu na revista em papel, aí embaixo.
Bem-vindo ao novo Trabalho Sujo muito louco de verão.
***
Karma imediato
Como ir em frente quando não se sabe que caminho se está seguindo? Como amar quando nunca se teve amor? As dúvidas existenciais que motivaram a inconseqüentemente intensa e bela carreira de John Lennon pareciam resolver-se quando, há vinte anos, cinco tiros o separaram deste futuro que vivemos hoje
“Você não sabe o que tem até perder” (What You Got)
“Você sabe o que acabou de fazer?” – o porteiro Jay Hastings não conseguia traduzir em palavras o sentimento que passava por sua cabeça. O sujeito estava em frente ao prédio, calmo e paciente, com o livro O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, às mãos, como se sequer soubesse o que havia acontecido há menos de um minuto, logo em frente. Eram 11 da noite quando Mark David Chapman, 25 anos naquele 8 de dezembro de 1980, virou-se para o atordoado Hastings e, entre um sorriso de alívio e um suspiro de desespero, tranqüilamente confessou: “Eu atirei em John Lennon”.
Lá estava o ex-Beatle atirado no chão, cinco buracos de bala em seu corpo, drenando sangue e outros fluidos orgânicos enquanto gemia seus últimos suspiros. “Fui baleado”, disse pouco antes de perder a consciência, entre as fitas de sua última gravação. Hastings não conseguia acreditar na cena que assistia, Lennon vomitando sangue em sua frente, dissipando todo o glamour popstar à medida que a morte chegava da forma mais rasteira e fugaz possível. Lembrava do Beatle mais esperto da invasão britânica, do pacifista polêmico do começo da década anterior, do Lennon caseiro que cuidava do filho e há dois anos o cumprimentava pelo nome: “Bon soir, Jay”. Tirou o casaco e cobriu o artista baleado. “Ok, John, vai dar tudo certo”, balbuciava nervoso ao ver o foco de seus olhos sumindo entre lentas piscadas de pálpebras. Tirou a gravata, para usar como um torniquete, mas não sabia o que fazer com ela, saindo logo em seguida à caça do agressor que apenas esperava parado na mesma rua 22 Oeste em que o crime havia acontecido. Dois carros da polícia freiaram em frente ao Dakota, onde Lennon e Yoko moravam desde o nascimento de seu único filho, Sean, e dois policiais saíram encurralando Hastings. “Ele não”, gritou um porteiro. “Foi ele!”, Jay apontou para o autor dos tiros.
Chapman havia conversado com Lennon antes de decidir assassiná-lo naquele mesmo dia. Cinco horas antes, havia cumprimentado o ex-Beatle, lhe apresentando uma cópia do recém-lançado Double Fantasy para ser autografada. “John Lennon, 1980”, escreveu o músico inglês antes de entrar na limusine branca que o levaria para o estúdio, onde gravava Walking on Thin Ice, seu próximo single. Mark esperou John voltar para casa, quando, ao sair da limusine, o abordou: “Mr. Lennon?”. John virou-se para atendê-lo e foi seguido por uma seqüência de cinco tiros disparados pelo 38 de Chapman. Mark virou-se e tomou distância, com a sensação do dever cumprido. Poucas horas mais tarde, John Lennon era declarado morto, aos 40 anos de idade.
“Na verdade eu não queria o autógrafo, eu queria a vida dele. E eu acabei ficando com os dois”, diz hoje Chapman, 45 anos, 20 deles de cadeia. O assassino de John Lennon tentou pedir a redução de sua pena por bom comportamento, no mês de outubro (quando o ex-Beatle completaria 60 anos), mas o pedido foi negado por Yoko Ono – embora muitos, Chapman inclusive, apostassem na boa vontade da japonesa mais famosa do mundo. “Eu acho que ele provavelmente gostaria de me ver livre”, disse o assassino. O advogado de Yoko, Robert Gangi, respondeu na lata: “John adoraria estar aqui para falar por si mesmo”.
Certamente, afinal Lennon sempre foi conhecido por sua língua afiada. Desde que apareceu com os Beatles era o responsável pelas frases mais sarcásticas, pelas letras mais ácidas, pelas farpas disfarçadas de elogios, pelos trocadilhos surrealistas, pelas canções mais diretas dos quatro de Liverpool. Em pouco tempo, era um dos roqueiros mais respeitados de sua geração por um motivo simples: não engolia desaforo e cuspia contra quem quer que pudesse vir em sua direção. O ataque verbal era a marca registrada de John, mas, no fundo ele sabia, era só uma forma de defesa.
Porque o mundo, apesar de suas sempre dúbias voltas, não conspirava a favor de John Wiston Lennon, que nasceu sob um bombardeio alemão sobre Liverpool no dia 9 de outubro de 1940. Filho de pais boêmios e arruaceiros (Julia vivia na noite e Alfred – ou Fred – era um marinheiro que tinha famílias de portos em portos), o pequeno John cresceu sob a conduta da irmã de sua mãe, Mary Elizabeth Smith – a tia Mimi – e seu marido George, na pequena e escura casa no número 251 da Menlove Avenue. Suas primeiras lembranças da infância recordam do pai voltando para Liverpool e querendo-o levar para morar na Nova Zelândia, quando tinha apenas 8 anos. A princípio, John aceitara, mas logo ele sentiu saudades e antes de embarcar no navio voltou para os braços da mãe, ainda horrorizada com a decisão do filho, chorando.
A ausência de Julia na vida do jovem Lennon causou-lhe estragos cujas marcas o perseguiram pelo resto da vida. Por mais que seus tios se dedicassem, ele não tinha o conforto dos pais e isso lhe rendeu conflitos sociais que o tornaram amargo e isolado. A morte da mãe (atropelada por um policial bêbado quando John tinha 18 anos, na época em que os dois voltavam a se falar com freqüência) e a volta do pai (querendo aproveitar-se da fama do filho no auge da Beatlemania) contribuíram para sua degradação individual, sendo cada vez mais corroído por sentimentos egoístas e antissociais. Dois gêneros modernos o viriam salvar do pesadelo/prisão que sua vida aos poucos se desenhava: a literatura (representada por Lewis Carroll) e o rock’n’roll (encarnado em Elvis Presley).
O primeiro surgiu na biblioteca da Dovedale Primary School, quando Lennon descobriu em um de seus livros de inglês o poema Jabberwocky, do livro Alice no País do Espelho. Tinha menos de dez anos e ficou fascinado com a forma que Lewis Carroll contorcia as palavras, dando-lhes duplos ou triplos sentidos apenas ao trocar letras e combinar conjunções. Um mundo mágico descortinava-se em sua frente e bastava apenas brincar com o idioma para distorcer a realidade ao seu prazer.
O segundo veio com a gradual descoberta da música para dançar: primeiro com a febre do skiffle que tomou conta do norte da Inglaterra em 1956; depois com o filme Blackboard Jungle, que lançou a canção Rock Around the Clock, e, finalmente, a rendição definitiva de Heartbreak Hotel, daquele caminhoneiro que tornara-se sensação nos Estados Unidos. Como nos EUA, Elvis Presley atacou a Grã-Bretanha como um furacão, convertendo milhares de moleques sem rumo na vida na nova religião do rock’n’roll.
John comprou um violão (por 17 libras) e começou a deixar o topete no cabelo. Comprou uma jaqueta de couro e quase todo dia à noite, sintonizava a Rádio Luxemburgo, para ver se conseguia aprender – sem professor – aquelas músicas geniais que não paravam de vir da América. De lá vinham navios cargueiros cheios de revendedores de discos, que contrabandeavam os sucessos das rádios americanas para os disc-jóqueis ingleses, criando um verdadeiro mercado negro de discos americanos. Montou um conjunto com seus amigos Pete Shotton, Nigel Whalley e Ivan Vaughan, chamado The Quarrymen (em homenagem à escola que estudavam, a Quarry Bank School. Foi Vaughan quem, em um dos primeiros shows do conjunto (uma quermesse na igreja de St. Paul, no subúrbio de Woolton, entre a apresentação dos cachorros da força policial da cidade e um concurso de tortas), apresentou o jovem Lennon a um garoto mais novo chamado James Paul McCartney. Ivan convenceu Lennon, que estava bêbado, a ir conversar com Paul quando soube que este sabia tocar 20 Flight Rock, de Eddie Cochran. John gostou do que viu (embora esnobou-o para Ivan), mas dias após aquele lendário 6 de junho de 1957 pediu para Pete perguntar se Paul queria entrar no grupo. Ele aceitou.
Com o rock’n’roll, Lennon parecia conseguir canalizar toda sua angústia adolescente em algo que, ao menos para ele, parecia produtivo. Passou a dedicar-se ao grupo que, com a adição do guitarrista George Harrison, o baixista Stuart Sutcliffe e o baterista Pete Best, passou de Quarrymen a Long John & the Silver Beatles a simplesmente Silver Beatles. Originalmente o grupo iria se chamar Beetles (besouros), como os grilos (os Crickets) de Buddy Holly ou os próprios Beetles que eram a gangue inimiga de Marlon Brandon, no filme O Selvagem. Mas Lennon propôs a troca da segunda vogal repetida por um “a”, dando diversos duplos sentidos, que iam da geração literária Beat à palavra inglesa que designa batida, ritmo. Assim viajaram para Hamburgo, na Alemanha, onde passaram a tocar shows de 10 horas seguidas em que precisavam tocar qualquer tipo de música que lhes fosse pedido. Ao mesmo tempo em que entrosavam-se como músicos, aprendiam várias canções novas por dia e pegavam pique de palco. Era inevitável que se tornassem uma boa banda.
Ao mesmo tempo, curtiam como que às escondidas aquele parque temático para maiores de 18 anos chamado Hamburgo. Entre shows de strip-tease, casas noturnas de quinta categoria, punhados cheios de toda sorte de bolinhas goelas abaixo, brigas de gangue e intelectualismo de cais de porto, os Beatles estavam prestando vestibular para o baixo calão da sociedade alemã que, arrasada no pós-guerra, transformava-se num imenso submundo para sustentar sua auto-estima. Às vésperas dos 20 anos, os Beatles viviam o paraíso de sexo, drogas e rock’n’roll que qualquer adolescente do planeta espera da vida. Lennon encontrava a fantasia perfeita para encarar a insegurança que a vida havia lhe passado.
Quando voltaram a Liverpool (Stuart ficou na Alemanha, com sua namorada, a fotógrafa Astrid Kirchner, e Paul assumiu o baixo da banda), os Beatles eram uma banda em ponto de bala, azeitada para o sucesso. E foi este quem fez o garoto Raymond Jones entrar na loja de discos Northern England Music Store naquele 28 de outubro de 1961. Jones procurava um disco chamado My Bonnie que um grupo da cidade havia gravado na Alemanha com um cantor chamado Tony Sheridan. O dono da loja ficou intrigado e tratou de querer saber um pouco mais sobre o tal grupo. Foi esta curiosidade que levou o jovem Brian Epstein a ir à casa noturna Cavern Club no dia 8 de novembro daquele mesmo ano. Quando assistiu à explosão de energia que os Beatles proporcionavam aos 200 adolescentes que se espremiam no local, não teve dúvidas e começou a gerenciá-los. O primeiro passo foi livra-los das jaquetas de couro e dos topetes (a contragosto de Lennon) e trocar o baterista do grupo (saía o galã juvenil Pete Best – sob protesto das fãs – e entrava o preciso e pacato Ringo Starr). Depois, era só vendê-los do jeito certo e o tino comercial dos Epstein finalmente aflorava em Brian, que transformou o grupo em seu maior bem empresarial. O resto, como dizem, é história.
Com os Beatles, Lennon atravessou os anos 60 galvanizando uma estranha e carismática personalidade. Ao mesmo tempo em que parecia objetivo, franco e direto em suas entrevistas cheias de sarcasmo juvenil, suas músicas pediam socorro e mostravam um artista inseguro e tímido. “Ajude-me se puder, estou me sentindo mal”, cantava com entusiasmo em Help!, “ajude-me a por os pés de volta no chão”. Viver no furacão da Beatlemania já te deixava completamente alheio às noções de realidade, morando em quartos de hotel pelo mundo, entre entrevistas e sessões de fotos. Mas ser um Beatle era mais insuportável. Toda aquela euforia girava em torno de John, Paul, George e Ringo onde quer que eles fossem, não havia descanso para aquilo. E se no começo era uma felicidade púbere de um sonho impossível realizado, dando motivos de sobra para que os quatro se especializassem em ser os Beatles (isto é: gostar de ficar juntos, brincando o tempo todo e cantando canções apaixonantes), aos poucos foi se tornando a única forma de expressar o desespero de estar na locomotiva de um trem desgovernado.
“Eu sou um perdedor e eu não sou o que pareço”, cantava Lennon, que mais sofria, no disco Beatles for Sale, de 1964. “Viver é fácil com os olhos fechados, interpretando mal tudo que se vê”, filosofava Strawberry Fields Forever, em 1967. “Eu não consigo dormir, nem parar meu cérebro, já são duas semanas e eu estou ficando louco”, desesperava-se em I’m So Tired, de 1968. A cada oportunidade Lennon demonstrava o quanto aquela vida lhe desgraçava, queria sair. “Era preciso se humilhar para ser o que os Beatles eram. E é isso o que eu me arrependo, porque eu fiz aquilo”, disse logo após sair do grupo em sua histórica entrevista ao editor da revista Rolling Stone, Jann S. Wenner, em 1971 (que está sendo lançada na íntegra no livro Lennon Remembers), “Eu não percebi aquilo, aconteceu pouco a pouco até que esta completa loucura estava à nossa volta. E você estava fazendo exatamente o que não queria fazer com pessoas que não suportava – as pessoas que você odiava quando tinha dez anos. E é isso que eu estou dizendo neste disco (Plastic Ono Band, seu primeiro disco solo propriamente dito). Eu estou dizendo: ‘Fodam-se todos! Vocês não me pegam de novo!’”.
Desde os Beatles, o desespero pessoal era sanado graças a fugas de cunho espiritual, embora sempre embaladas em formatos diferentes como drogas, religiões, linhas ideológicas, políticas ou individualistas. Foi assim que descobriu acidentalmente a psicodelia Beatle entre recortes de jornal e velhos cartazes. Foi assim que abraçou a meditação transcendental do Maharishi Maheshi Yogi, a arte de vanguarda, o blues primitivo (Lennon estava no Rock’n’Roll Circus, lembram?), o pacifismo ativista, a manipulação da imprensa, a adoração ao rock e ao grande amor de sua vida, Yoko Ono.
Durante toda sua carreira, estava à procura de algo que nunca tivera: amor. Buscava ser amado das formas mais diferentes, cantando sobre o tema com gana e desesperança. Transformou o sentimento numa espécie de verdade absoluta, seguindo a convenção básica do cristianismo e a premissa do profeta João que dizia que “Deus é amor”. Lennon, por sua vez, desacreditava da religião e transformava o amor universal numa filosofia pessoal. “Eu só acredito em mim”, cantava quando começou a se ligar em sua própria ideologia, logo quando os Beatles não existiam mais.
Por sua discografia, cantava o medo de não ser aceito, que o perseguiu por toda vida e só encerrou-se com o nascimento do primeiro filho com Yoko, na mesma semana em que seu visto de permanência nos Estados Unidos era aceito. “Dizem que sou louco por fazer o que faço/ Me aconselham de todo jeito para me salvar da ruína”, cantava ao final de sua vida, quando já sabia o que precisava para ser feliz, “eu fico aqui apenas vendo as coisas acontecerem; gosto de vê-las rodar”. Dedicando-se à vida privada após 1975, Lennon descobriu na própria família tudo que precisava.
Era simples. É simples. O melhor da vida vem em coisas rotineiras, não em milagres ou acontecimentos históricos. Tudo isso é determinado pelo gosto de outras pessoas, por interesses de grupos sociais que querem dizer-se melhor que os outros. Como o melhor rock, Lennon sabia que tudo que é bom não tem frescura. Direto, com franqueza e transparente; sem segundas intenções ou troca de favores. O amor que Lennon passou a viver nos últimos anos de sua vida (deixando os negócios nas mãos de Yoko, que os tocava à base do misticismo e saía-se incrivelmente bem), o tornou completo, fazendo com que descobrisse que tudo que sempre procurara estivesse exatamente dentro de si mesmo.
A forma com que John expunha-se, abrindo sua vida privada e seus conflitos interiores ao olho público fez com que ele revelasse a indecisão e a sensibilidade que habitam a cabeça de qualquer pai de família. A vazão de seus sentimentos em entrevistas e canções criou um novo parâmetro masculino, em oposição ao durão vendido por Hollywood e o machão sensível fechado na tríade Elvis/Brando/Dean. Lennon tornava possível qualquer um extravasar seu lado infantil, senil, púbere e maduro ao mesmo tempo, sem precisar atrelá-los a faixas etárias.
“Nos próximos dias – sem coragem de dizer adeus a John – eu percebi uma das razões que fizeram-me sentir com medo, sozinho e sem acreditar nas notícias que continuavam a passar foi que eu formei minha vida adulta em torno deste cara de uma forma muito séria”. Dez anos depois da tal entrevista, o editor da Rolling Stone Wenner sintetizava os sentimentos de toda uma geração frente à morte de Lennon. Ela que veio nos lembrar de como é fácil se perder o que se tem, quando não se toma cuidado. Até o amor.
***
Ninguém me disse que ia ser assim
Imagine se John Lennon não tivesse morrido?
Todo dia, a mesma coisa: Lennon acordava, arrastava-se da cama até a porta de casa, enfiava a mão para fora, catava o jornal e ia para a copa, onde tomava um café e fumava o baseado que havia feito escondido no banheiro na noite anterior. Yoko ainda pegava em seu pé quando o assunto era drogas e o argumento “maconha não é droga” teve que ser substituído por “café e maconha não são drogas”. Ela sabia que John fazia aquele ritual adolescente todas as manhãs, mas fingia dormir para dar ao marido o gosto do prazer proibido, que era cada vez mais lhe negado à medida que ia ficando mais rico.
Goles e tragos após a página de esportes, pegava a seção de entretenimento do jornal e teve mais uma vez a nauseante visão dos três outros Beatles remoendo na carcaça de seu antigo grupo. “Esses porras precisam de mais dinheiro ainda?”, resmungava à meia-luz do começo do dia, “será que eles acham que vão ser mais respeitados por isso?”. Odiava a forma que Paul se referia àquela pilhagem do arquivo de seu passado como “projeto Anthology”, como se realmente tivesse alguma coisa a ver com aquilo. Havia dito não ao Live Aid, ao USA for Africa, à Anistia Internacional, ao Rock and Roll Hall of Fame, a Hollywood, à MTV (cinco ou seis vezes, pelo menos), a todo produtor de qualquer tributo que, por melhor que fossem as intenções, apenas queria a fama da reunião dos Beatles em benefício próprio. Não ia concordar em voltar os Beatles justamente para Paul, ainda mais depois de dois ou três cutucões que o ex-melhor amigo havia lhe dado em entrevistas. E daí que George Harrison estava falido? Ele que arrumasse uma Yoko pra tomar conta do dinheiro.
Mas o que mais incomodava Lennon era o fato de, 30 anos depois de seu fim, os Beatles ainda ocuparem as manchetes dos jornais. Se sentia preso a uma ditadura em torno do nome do conjunto que faria com que qualquer gesto seu parecesse ainda preso aos anos 60. Era apenas isso que lhe fazia enclausurar-se cada vez mais no caminho entre sua fazenda no norte da Inglaterra e a casa/escritório do Dakota. Desde que Sean Lennon nasceu, gravou apenas cinco álbuns, cada um deles com quatro anos de diferença entre si, todos saudados como “Lennon volta à velha forma”. Depois de Double Fantasy vieram Heart and Soul (de 1984, produzido por Nile Rodgers), Back Home (de 1988, nova parceria com Phil Spector), Road (de 1992, coletânea de gravações em festas de amigos, seu único vínculo com o palco) e Closer (de 1996, composto e gravado apenas ao piano, produzido por Don Was). Estava cansado de ser tratado como uma relíquia de uma época de ouro, mas não via outra forma de expressar-se em público e não ser envolto em nostalgia. Ainda mais quando observava o pop que tomava as paradas do ano 2000.
Misturaram o conceito da Beatlemania com uma nuance hip hop e nascem o pop jeca dos Backstreet Boys, ‘N Sync e companhia limitada. Diluem a fase de transição (65-66) dos Beatles com rock de arena e criam o britpop de bandas como Blur, Oasis, Stereophonics, Travis, Radiohead… A nova psicodelia do rock independente (Flaming Lips, Mercury Rev, Olivia Tremor Control, Gorky’s Zygotic Mynci, Grandaddy, Badly Drawn Boy, Neutral Milk Hotel) nada mais é que o tratamento épico de Abbey Road levado a discos como Yellow Submarine ou Let it Be. Hits modernos de Beck e Chemical Brothers surrupiam a base de Tomorrow Never Knows. Os anos 90 eram uma chatice para Lennon, que só saiu de casa para assistir a “shows de rock”, como gostava de enfatizar (a saber: Chuck Berry, Teenage Fanclub, James Brown, Happy Mondays, Nirvana e Jimmy Page com os Black Crowes – “pode parecer brega, mas eu adoro Led Zeppelin”). Não gostava de música eletrônica e cada vez mais se aprofundava em música negra, seu grande e confesso amor musical. Ciente de sua celebridade, passava a constranger repórteres e colegas ao simplesmente responder “rock’n’roll” às perguntas que lhes eram feita. Fazendo-se de bobo, dava a todos de forma polida e sarcástica o seu ponto de vista sobre as coisas. Aproveitando-se do mote autopublicitário de Lennon, os roteiristas do programa humorístico Saturday Night Live o eternizaram em sua única aparição pública de 1990, no natal, quando fizeram um programa inteiro em que sua única fala resumia-se a repetir “rock’n’roll”.
Chegava novamente dezembro de um ano com fim zero e Lennon sabia que estava ficando mais velho. Costumava duvidar que seu nascimento fosse realmente em outubro, uma vez que a cada dez anos, em dezembro, dava um passo crucial em sua trajetória de vida. Sua mãe (como ele) era relapsa o suficiente para o ter registrado na data errada. Mas sabia que dezembro era um mês importante em sua vida, o que fazia com que constantemente – e intimamente – se comparasse com Jesus Cristo. Não como um filho de Deus, John sequer acreditava nisso (“Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”, cantou), mas como um comunicador, um doutrinador das massas, uma pessoa cujo nível de identidade com o público o tornasse extremamente popular. E lembrou que o dezembro de 1980 foi marcado por dor e sofrimento, como se Judas tivesse vindo sete anos depois. Não fosse o pobre guarda-noturno que se jogou em sua frente (Fabio, era esse o nome?), talvez estivesse morto 20 anos antes.
E John Lennon pensou o que teria acontecido se tivesse morrido quando aquele fã maluco o tornou alvo. Tirando uma ou outra música com um certo timing temporal e uma série de aspas dadas de bandeja à imprensa abelhuda, sua influência nas últimas duas décadas era mínima. As pessoas ainda queriam o Beatle John, sem pensar que Revolution, Happy Xmas e Imagine eram canções políticas, Mind Games falava de amor, Help! era um grito de desespero e Instant Karma cantava a urgência da vida. Tudo que tinha dito havia se perdido entre refrões grudentos e letras simples e diretas; a racionalidade de sua expressão trocada pelo ímpeto do rock em estado bruto. Ninguém estava prestando atenção no que eles estava dizendo. Nunca estiveram.
Dias estranhos, de fato. Por isso ele pensa se vale voltar a aparecer no dezembro do ano 2000 ou se vai romper as expectativas com o silêncio que acompanha parte de sua carreira? Pessoalmente, é uma época crucial, troca de estação e rito de passagem. Para o público, é apenas o mês de natal em que ele terá sessenta anos. Será que valeria a pena voltar? Sim, vale. Cante John, estamos escutando.
***
O não de Yoko Ono
A íntegra da declaração da viúva de John Lennon à justiça norte-americana, quando da ocasião do pedido de redução da pena de Mark Chapman
“Não é fácil para mim escrever esta carta, uma vez que ainda é muito dolorido pensar no que aconteceu naquela noite e verbalizar meus pensamentos de uma maneira lógica. Com seu único ato de violência, o ‘sujeito’ cuidou de mudar minha vida inteira, devastar os filhos (de Lennon) e trazer profunda tristeza e medo para o mundo. Foi, certamente, o poder de destruição trabalhando. Sua soltura dará um sinal verde para os outros que quiserem seguir as pegadas do ‘sujeito’ para receber a atenção do mundo. Temo que vá trazer de volta o pesadelo, o caos e a confusão. Eu e os dois filhos de John não nos sentiríamos seguros pelo resto de nossas vidas. Pessoas que estão em posição de alta visibilidade como John também se sentirão inseguras”
Yoko Ono
***
Música inacabada
A discografia de John Lennon extende-se à medida que suas gravações não-oficiais continuam sendo lançadas
Unfinished Music No. 1 – Two Virgins
11 de novembro de 1968
A química instantânea entre John e Yoko fez com que o casal se entregasse a uma série de projetos pessoais, entre filmes, exposições e o próprio relacionamento. Two Virgins é o primeiro experimento musical da dupla. Musical é força de expressão, uma vez que o álbum consiste apenas de gravações caseiras superpostas como uma enorme colagem a la Revolution 9. A capa com os dois como vieram ao mundo é a responsável por torna-lo memorável.
Unfinished Music No. 2 – Life with the Lions
26 de maio de 1969
Continuação de Two Virgins, Life… retrata o primeiro de uma série de abortos que interromperam o sonho de Lennon e Ono tornarem-se pais do mesmo filho. O disco protesta quanto ao fato a maternidade do hospital Queen Charlotte não ter arrumado uma cama extra para Lennon ficar ao lado de Yoko durante o processo, tanto na capa (em que Lennon aparece deitado no chão do hospital) quanto na faixa No Bed for Beatle John. O disco ainda passa por momentos delicados da história do casal, com a gravação do coração do filho que mais tarde morreria (em Baby’s Heartbeat) e o luto por ele (em Two Minutos Silence).
Wedding Album
20 de outubro de 1969
O último disco experimental do casal, Wedding Album era o terceiro disco solo e comemora o casamento celebrado no dia 20 de março de 1969, em Gibraltar. O disco consiste de um exercício da terapia primal de Arthur Janov (a faixa John & Yoko, em que um diz o nome do outro de todas as formas possíveis) e a gravação de um de seus primeiros Bed-Ins, em Amsterdam.
Live Peace In Toronto
12 de dezembro de 1969
Um dos muitos dream teams que ex-Beatles entraram, a banda deste show contava com John, Yoko, o baixista Klaus Voorman (irmão de Astrid Kirchnerr e autor da capa de Revolver), Eric Clapton e o baterista Alan White (Yes). Mas o clima aqui ia além da música e queria falar de liberdade de expressão, com Yoko competindo com a guitarra de Clapton para ver quem faz mais barulho.
John Lennon/Plastic Ono Band
11 de dezembro de 1970
O primeiro álbum solo propriamente dito de Lennon (foi gravado simultaneamente com o homônimo de Yoko Ono, outro disco expressivo), Plastic Ono Band mostra o ex-Beatle colocando todas as frustrações para fora e fazendo com que todos conseguissem identificar-se com ele. “O sonho acabou, o que eu posso dizer?”, contentava-se em God. Tornava-se confessional ao extremo ao expor ainda mais a ausência materna em sua vida com Mother e My Mummy’s Dead. Outras faixas resumem seu sentimento individualista nos títulos, como Isolation, I Found Out e Working Class Hero. Com este álbum, Lennon sacode a poeira beatle e nasce um novo artista, disposto a se reescrever.
Imagine
9 de setembro de 1971
Imagine continua a linha aberta em Plastic Ono Band, embora numa vertente mais pop e menos visceral (apesar das presenças de Gimme Some Truth e da anti-McCartney How Do You Sleep?). Baladas como a faixa-título, Jealous Guy, Oh! Yoko, a existencialista How? e a bela Oh My Love trazem um Lennon mais doce e pacífico, digerível e consumível, sem perder a essência de seu trabalho, a insegurança na maturidade, explicitada no boogie rock de It’s So Hard e I Don’t Want to Be a Soldier.
Some Time In New York City
12 de junho de 1972
Outro álbum assinado como um casal, Some Time… é um álbum duplo cujo primeiro disco é carregado de teor político, listando ativistas como John Sinclair e Angela Davis ao mesmo tempo que falava de causas polêmicas como a penitenciária de Attica e o atrito entre irlandeses e ingleses e criticava o sistema de celebridades e educacional fomentados pela sociedade capitalista. A idéia era dar as notícias às pessoas, por isso a capa imitava um jornal. O segundo álbum conta com uma versão ao vivo para Cold Turkey e a participação de John Lennon num show de Frank Zappa. Mais que consistente, Some Time… é um álbum pitoresco e cede ao declínio entre seus dois discos anteriores.
Mind Games
9 de novembro de 1973
O disco de 73 faz com que Lennon volte às políticas individualistas de seus dois primeiros álbuns, embora sem tanta convicção. Mesmo com o arranjo horizontal da faixa-título espalhando uma placidez pôr-do-sol por todo disco, Mind Games não tem a consistência de álbum que todos os discos anteriores de Lennon tiveram.
Walls And Bridges
26 de setembro de 1974
Descrito como “uma carta aberta à ausência de Yoko”, Walls and Bridges foi gravado durante o período de sua vida que Lennon batizou de “fim-de-semana perdido”, quando entregou-se às regalias da vida de celebridade na Califórnia, saindo para farras intermináveis com Ringo, Keith Moon e Elton John., deixando Yoko Ono em Nova York por mais de um ano. O disco reflete bem o estado de espírito de Lennon à época, entre o devaneio (#9 Dream), a confissão (Going Down on Love) e o remorso (What You Got).
Rock ‘N’ Roll
17 de fevereiro de 1975
Lennon desce aos porões da adolescência para, ao lado do parceiro Phil Spector, resgatar seus vínculos seculares com sua arte essencial, o rock primitivo. Ele visita Elvis (Just Because), Buddy Holly (Peggy Sue), Gene Vincent (Be Bop-A-Lula), Ben E. King (com a definitiva versão para Stand By Me), Chuck Berry (You Can’t Catch Me e Sweet Little Sixteen), Little Richard (Slippin’ and Slidin’), Sam Cooke (Bring It On Home to Me), entre outros. Num álbum memorável que prevê a aposentadoria do artista ao encerrar com um profético “Goodbye!”.
Shaved Fish
24 de outubro de 1975
Ao nascimento de Sean Ono Lennon, John despediu-se do mercado com a coletânea Shaved Fish, em que reunia seus maiores sucessos em carreira solo antes de recolher-se à sua vida de dono-de-casa (househusband, como brincava). O grande atrativo da compilação era o fato de tornar disponível faixas como Cold Turkey, Instant Karma, Give Peace a Chance, Power to the People e Happy Xmas (War is Over), que antes só haviam aparecido em compactos.
Double Fantasy
17 de novembro de 1980
Último disco de Lennon em vida, Double Fantasy celebra o auge da vida a três com Yoko e Sean com a atmosfera caseira e pé-no-chão daqueles dias. A faixa (Just Like) Starting Over pode ser considerada responsável pelo retorno de centenas de artistas dos anos 60 que sumiram de cena naquele começo dos 80. Mas esta é a única responsabilidade do álbum, em que o autor prefere explicar como enxerga a vida aos 40 anos de idade em canções contemplativas como Watching the Wheels, Woman e Beautiful Boy (Darling Sean). Equilibrando com o bom humor do marido vem algumas das músicas mais pop da discografia bizarra de Yoko Ono.
John Lennon Collection
8 de novembro de 1982
O primeiro lançamento oficial após a morte de Lennon, a coletânea é, na verdade, um upgrade de Shaved Fish, com quatro faixas de Double Fantasy e uma de Rock’n’Roll. A versão em CD conta com quatro faixas a mais.
Milk And Honey
23 de janeiro de 1984
Começa a pilhagem do arquivo póstumo de Lennon, quando Yoko Ono comete o erro de lançar o disco que Lennon estava planejando quando morreu. Milk and Honey é uma pálida continuação de Double Fantasy, com faixas ainda na pré-produção, sem o tratamento genial que somente Lennon (e às vezes, nem ele) poderia dar às próprias canções. Um hit – Nobody Told Me – e o disco foi recolhido de catálogo pela própria viúva, tornando-o uma espécie de “pirata oficial”.
Live In New York City
24 de fevereiro de 1986
Dois anos depois, a viúva volta a lançar mais material inédito de Lennon. A diferença é que Live… é um show inteiro – e que show! A última aparição de Lennon ao lado de Yoko num mesmo palco, o disco flagra a apresentação de Lennon com a Elephant Memory Band no dia 30 de agosto de 1972. Com um som cheio e massudo (há duas guitarras, dois teclados, dois baixos, dois tudo), Lennon desfila seu magnetismo de palco com brilho ímpar, botando toda a platéia no bolso. Memorável.
Menlove Ave.
3 de novembro de 1986
Mais sobras de estúdio voltam a aparecer em forma de coletânea. Aqui o material é tirado das sessões de Walls and Bridges (Steel and Glass, Old Dirt Road, Here We Go Again e Rock and Roll People) e Rock’n’Roll (Angel Baby, To Know Her is to Love Her e Since My Baby Left Me). O disco é batizado após a rua em que Lennon cresceu em Liverpool.
Imagine: John Lennon
10 de outubro de 1988
Nova coletânea, novas raridades. Trilha sonora para o documentário Imagine (feito em resposta à escandalosa biografia The Lives of John Lennon, de Albert Goldman), o disco duplo conta a história de Lennon desde os Beatles até 1980, ressuscitando-o do passado com uma faixa que seria retomada pelos beatles remanescentes em 1996, Real Love.
Lennon
30 de outubro de 1990
Nova coletânea, novas raridades. Esta caixa de quatro vinis está fora de catálogo desde que foi lançada, mas conta com um tratamento visual de primeira e com as últimas apresentações ao vivo de Lennon (sem Yoko), quando o ex-Beatle subiu no palco com Elton John para cantar I Saw Her Standing There e Lucy in the Sky with Diamonds, em 1974.
Lennon Legend
27 de outubro de 1997
Feita sob medida para a geração Oasis, a coletânea Legend volta a enfatizar os hits do autor, uma vez que a John Lennon Collection desapareceu das prateleiras inglesas. Nada a acrescentar na discografia do inglês, a não ser popularidade.
John Lennon Anthology
2 de novembro de 1998
Aguardada caixa com o melhor do arquivo de Yoko Ono, Anthology traz momentos memoráveis e não-oficiais da carreira de Lennon, como paródias (ele transforma Yesterday num filme de horror e imita Bob Dylan diversas vezes), participações especiais em programas de TV, shows antológicos (como a apresentação sem bateria no lendário teatro Apollo), sua versão para Be My Baby (orquestrada pelo próprio Phil Spector), além de versões alternativas, caseiras, diferentes, inesperadas e os conflitos no estúdio envolvendo Lennon. Para quem não é fã, a faixa é como uma biografia não-autorizada, como se pudéssemos olhar a história de Lennon pelo buraco da fechadura. Para o fã, é obrigatória. Para quem não pode pagar a caixa, a gravadora lançou simultaneamente a coletânea Wonsaponatime.