Que tal uma hora de João Donato ao vivo no auge, tocando seus clássicos e conversando sobre o que gosta daquele jeito que a gente gosta de ouvir? Então toma o MPB Especial de 1975 com o mestre – no período em que o programa de Fernando Faro tinha deixado de se chamar Ensaio pois tinha passado da Tupi para a Cultura – e delicie-se com histórias como essas que ele conta sobre o encontro com João Gilberto, pouco antes de tocar a única composição que fizeram, “Minha Saudade”.
Procurei mas não achei foto minha com o João Donato – puxei pela memória e realmente não lembrei de nenhuma vez das poucas que nos encontramos de termos tirado o clássico selfie que sempre tiro com ídolos e chapas (talvez estivéssemos entretidos com algo no papo, se é que você me entende). Mas cansei de filmá-lo em tudo quanto é lugar: só esse ano pude registrá-lo duas vezes, uma lançando tocando seu último disco Serotonina e outra tocando seu Síntese do Lance com o compadre Jards na Casa Natura, última vez que o vi. O filmei em várias unidades do Sesc, em festivais pelo Brasil, dividindo o palco com vários bambas (Bixiga 70, Tulipa, Marcos Valle, Mariana Aydar) e até no Rock in Rio, mas um show que guardo no coração é uma apresentação que vi dele no mitológico Beco das Garrafas, em Copacabana, tocando seus clássicos ao lado de dois outros monstros, o contrabaixista cearense Jorge Helder e o baterista carioca Robertinho da Silva (que dividiram o palco com os sopros de Roberto Pontes e Jessé Sadoc e vocais de Emanuelle Araújo). Uma noite especial.
Que tristeza, essa notícia da partida de um dos maiores nomes da música brasileira… Mas João Donato segue entre nós, sempre.
Apesar de ambos serem octagenários, Jards Macalé e João Donato, que apresentaram-se nessa quinta-feira na Casa Natura Musical, são de gerações diferentes. Gravaram juntos há quase dois anos o sensacional Síntese do Lance completamente entrosados, mas os oito anos que os separam eram uma era geológica quando começaram na música – Jards ainda estava aprendendo a tocar seu violão quando Donato já se esbaldava na vida noturna carioca com seu piano. O ponto em comum, relembrado pelos dois, era João Gilberto: um dos primeiros ídolos de Jards tocava nos mesmos palcos que também se apresentava o tecladista acreano quando nem bossa nova existia e a aura do velho baiano pairava sobre a apresentação que fizeram juntos – num momento central do show, literalmente, quando Jards invocou o fantasma de João quando telefonou para seu velho número e recebeu uma canção postumamente (“Um Abraço do João”) seguido de uma canção de Donato que teve sua letra escrita por João (“Minha Saudade”). O entrosamento dos dois músicos era patente, mas a idade faz com que os dois não atravessem toda a apresentação juntos, fazendo sets solo ao lado dos músicos que os acompanhavam (o baixista Guto Wirtii, o baterista Renato Massa Calmon, o trumpetista José Arimatéia e o trombonista Marco Aurélio Tiquinho). Mas o bom mesmo era quando Jards e Donato estavam no palco ao mesmo tempo, celebrando uma música brasileira que ajudaram a transformar. Foi foda.
Em dois anos, o mestre João Donato comemora suas nove décadas de vida, quase oito delas dedicadas à música. O buda acreano é um dos mitos da criação da música contemporânea brasileira e já apresentava-se ao vivo no início da adolescência, antes de toda a geração que veio a influenciar – e criar a bossa nova – começasse a se envolver profissionalmente com música. E mesmo prestes a cruzar a barreira nonagenária, exibe a desenvoltura mágica que o consagrou décadas atrás, tão à vontade quanto em seus discos mais clássicos. Defendendo o ótimo Serotonina, que lançou no ano passado, numa apresentação que fez no teatro do Sesc Pinheiros neste domingo, ele fez piada com o nome do disco e celebrou todas as parcerias que fez neste trabalho ao apresentar cada uma delas (mencionando nominalmente seus novos parceiros – Maurício Pereira, Felipe Cordeiro, Rodrigo Amarante, Céu – no primeiro disco de faixas inéditas em 20 anos), mas quando começava a tocar, tornava-se pleno. Acompanhado de uma banda luxuosa e mínima – Fábio Sá no baixo elétrico, Sergio Machado na bateria, Anaïs Sylla nos vocais de apoio e Marcelo Monteiro, entre a flauta e o sax -, ele foi além do repertório do disco novo e visitou clássicos de outros tempos, como “Emoriô”, “Bananeira” e “Nasci para Bailar”, sempre à vontade com seu instrumento, sua voz e seus parceiros. Que sorte podermos conviver com um mestre destes.