Jards Macalé: “Vale a pena ser poeta?’

Jards conseguiu ultrapassar o moderno e ser eterno como queria. Escanteado do panteão da MPB para se unir ao bloco dos malditos, passou por apertos e maus bocados para seguir vivendo fazendo música. Mas felizmente a nova geração o descobriu na década passada e eles aos poucos foi recuperando a estatura que sempre teve e morre depois de ter sido muito festejado em vida, como vários de seus contemporâneos não foram. Escrevi sobre sua importância e sua renascença pro Toca UOL.
Festejado em vida, Jards Macalé sempre será um grande nome da nossa música
Apesar da dor que sentimos ao receber a péssima notícia da morte de Jards Macalé nesta segunda (17), fica ao menos a felicidade de saber que o velho Macau pode deliciar-se da importância de sua biografia ao final de sua carreira. Depois de anos à margem e à sombra do cânone oficial da música brasileira (ele mesmo autor de algumas de suas músicas mais simbólicas), ele pode viver sua última década como o mestre que sempre foi, reverenciado pelas novas gerações de fãs, que ajudaram a erguer sua majestade artística ao trono em que sempre pertenceu.
Mais uma personalidade única e uma voz inconfundível, Jards é um dos melhores violões da música brasileira (ele mesmo discípulo direto de João Gilberto, à altura de outros pupilos mais conhecidos, como Gilberto Gil e Jorge Ben) e um dos maiores artesãos do texto em nossa música, misturando linguagem das ruas e poesia escolástica. “Vale à pena ser poeta?” perguntava à abertura da eterna “Rua Real Grandeza”, respondendo afirmativamente à medida em que descortinava a canção.
Sua liberdade criativa acabou sendo seu fardo, que o tornava distante do público ouvinte à medida em que explorava fronteiras artísticas que lhe davam a fama de difícil. Como outros seus contemporâneos que faleceram antes da década atual, Jards pertence a uma safra de artistas que, infelizmente, ficou relegada primeiro a uma obscuridade e depois a um segundo plano na história da música brasileira.
Classificados preguiçosamente de pós-tropicalistas e, infelizmente, praguejados pelo panteão da MPB com o rótulo de “maldito”, nomes como Walter Franco, Itamar Assumpção, Sérgio Sampaio e Luiz Melodia infelizmente não puderam desfrutar à altura sua própria relevância musical, sendo celebrados mais após sua morte do que em vida.
Outros sobreviventes desta leva de novos nomes (como o próprio Jards, Jorge Mautner, Arnaldo Baptista e Tom Zé, os dois últimos sendo tropicalistas originais) seguiram brigando por seu espaço com a mesma dedicação desde que surgiram, após a era dos festivais, no início dos anos 70, e alguns deles caíram nas graças da nova geração — tanto de ouvintes como de artistas.
Jards foi um dos pioneiros deste movimento, quando foi abraçado pela geração carioca dos anos 2010, de nomes como Ava Rocha, Negro Leo e Ana Frango Elétrico, que passaram a dividir palcos com o mestre na noite do Rio de Janeiro. Dois músicos desta geração (o baixista Pedro Dantas e o baterista Thomas Harres) transformaram seu trabalho num power trio em que visitavam os clássicos de sua lavra ao mesmo tempo em que se exercitavam musicalmente em shows memoráveis, há pouco mais de uma década.
Sua renascença logo foi abraçada pela cena contemporânea em São Paulo, quando parte do chamado Clube da Encruza (que reúne integrantes do grupo Metá Metá e Passo Torto) o abraçou após erguer outra gigantesca biografia que vivia esquecida, quando Elza Soares foi revivida no implacável Mulher do Fim do Mundo. Kiko Dinucci, Rômulo Fróes e Thomas Harres cercaram-no para transformá-lo numa “Besta Fera”, título do disco lançado em 2019 que popularizou ainda mais a carreira do bardo carioca.
Revisitou seu primeiro disco em shows magníficos ao lado do amigo Tutty Moreno (e dos pupilos Guilherme Held e Fábio Sá), fez as pazes com Caetano Veloso e ganhou finalmente o crédito de diretor musical de um dos discos mais importantes do baiano, fazendo inclusive shows ao seu lado celebrando o Transa, de 1972. Fez shows com o Metá Metá, compôs com Tim Bernardes, gravou um disco (e fez turnê) com Donato e outro com Sérgio Krakowski, foi assunto de documentários, livros e entrevistas. Viveu o final de sua carreira sendo festejado como um dos maiores nomes da música brasileira que sempre foi.
Jards também foi um dos artistas que pôde pegar carona em uma tendência bizarra nascida a partir da pandemia. O estranho revés com a entrada do covid-19 em nossas vidas, em 2020, fez o público brasileiro valorizar a música ao vivo como algo além do mero entretenimento. Com isso, uma bolha de shows fez gente que nem saía de casa para ver música ao vivo começar a prestigiar artistas em seu habitat natural e, mais do que isso, celebrar a importância dos nomes que ainda estão entre nós.
O período sem shows fez o público voltar a valorizar a presença nos palcos dos grandes nomes da música brasileira e, ao mesmo tempo iniciado sua renascença antes do período pandêmico, Jards pode comemorar que um novo público lhe saudava enquanto o velho público o erguia ao seu canônico pedestal.
Mesmo que Gal (eterna musa de Jards) e Rita tenham passado deste plano por motivos além do vírus que assolou o início da década, suas mortes também foram cruciais para que víssemos eventos como as redescobertas ao vivo de nomes que, em outras épocas, morreriam como notas de rodapé. E o mesmo movimento que motivou as turnês de despedida de Milton Nascimento, de Caetano com Bethânia e de Gilberto Gil também abriu oportunidades de shows e contato com novos públicos para nomes como João Donato e Hermeto Pascoal — só pra citar dois que perdemos este ano —, além de outros septuagenários e octogenários que seguem felizmente fazendo shows no Brasil.
Mas ainda é pouco para entendermos sua importância. Embora tenha podido desfrutar de sua importância em vida, sua obra ainda há de ser dissecada e discos ainda vistos como alternativos ou obscuros virão a ser celebrados como as obras-primas que são. Seu primeiro disco solo, o Banquete dos Mendigos, Aprender a Nadar, Contrastes, Quatro Ases e um Batuta, O Que Faço é Música e Amor, Ordem e Progresso (além de ótimos discos ao vivo, muitos em parceria) são joias esperando serem descobertas por novos ouvintes.
Célebre maconheiro, contava em seus últimos shows uma história acontecida no período pandêmico quando, depois de fumar um, decidiu ligar para o telefone secreto de João Gilberto, com medo que o mestre, já morto, pudesse atendê-lo. Ao cair na secretária eletrônica, Jards passou a gravar para o pai da bossa nova as novidades desde sua partida para, no dia seguinte, acordar com uma música instrumental que, ao tocar no violão, sentiu ser um abraço do próprio João, música instrumental que ganhou letra ao ser eternizada no disco mais recente de Joyce, O Mar é Mulher.
A conexão canábica com o outro mundo também veio através de outro comparsa que Jards perdeu recentemente, quando João Donato (com quem gravou o ótimo Síntese do Lance, em 2001) faleceu há dois anos. Jards repetia que tinha certeza de que, quando atravessasse para o outro lado da vida, seria recebido pelo próprio Donato com uma pergunta simples sobre o baseado que gostavam de dividir: “Trouxe?”, ria Jards quando contava essa história nos shows. Esse Jards não esqueceria.
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