Só o fato do Ira! resolver visitar seu disco mais ousado 35 anos depois de seu lançamento já seria motivo para comemoração. O mitológico Psicoacústica, lançado 12 anos antes do fim do século passado, reúne uma série de qualidades que o tornam único, tanto na discografia da banda quanto na história da safra de bandas que surgiu naquela década: além de ser o primeiro disco produzido por uma banda e praticamente não trazer nenhum refrão (como o vocalista Nasi fez questão de frisar), ainda ampliou o leque artístico e conceitual daquele final de década, antecipando inovações que seus pares de geração só iriam experimentar nos anos seguintes, como fariam os Paralamas em seu Os Grãos, os Titãs com seu Õ Blésq Blom e o Legião com seu V. E neste sábado o grupo colocou esse plano em prática no Teatro Bradesco, em São Paulo.
Seguindo uma trilha aberta pelos Paralamas em seu Selvagem?, o Ira! flertava com a embolada e com o rap (“Advogado do Diabo”, que ecoou no Recife pré-mangue beat) ao mesmo tempo em que questionava sua própria natureza rock, mas chocava-se com o astral do trio formado no Rio ao desbravar um pessimismo que tirava o país do oba-oba do chamado “rock de bermudas” que havia dado as cartas da música pop daquele período. Flertando com o cinema marginal (sampleando O Bandido da Luz Vermelha em “Rubro Zorro”) e a poesia moçambicana (mesmo que sem saber disso, em “Receita para Se Fazer um Herói”), Psicoacústica puxava o tom pessimista que começava a pairar sobre o país à medida em que afundávamos na ressaca da tragédia que foi a ditadura militar iniciada em 1964, enquanto Scandurra cantava sua busca por “outros sons, outras batidas, outras pulsações” em um hard rock chamada “Farto do Rock’n’Roll”. Ao vivo e num país arrasado pela pandemia e pela extrema direita, aquelas canções ganhavam novas dimensões – e como é bom ver o grupo deslizando num delírio anticomercial do passado que consolidou sua aura depois de emplacar vários hits no rádio com os discos anteriores.
Claro que as oito faixas deste terceiro disco não corresponderiam ao total do show e o grupo foi esperto ao passear por clássicos inevitáveis (“Dias de Luta”, “Envelheço na Cidade”, “Flores em Você”, uma bem-vinda “Tarde Vazia” e “Núcleo-Base”, que encerrou a noite) quanto por músicas de outro período além dos anos 80 (tocando “Flerte Fatal”, “Vida Passageira”, “O Amor Também Faz Errar”, “O Girassol” e “Eu Quero Sempre Mais”), além de visitar clássicos do rock como se fizesse questão de mostrar suas patentes – uma inesperada versão para a faixa que batiza o grupo Black Sabbath, a versão que o grupo fez para “Train in Vain” do Clash (que virou “Pra Ficar Comigo”) e “Purple Haze” de Jimi Hendrix seguida de “Surfin’ Bird” dos Trashmen.
Nasi, de bom humor, apontava para o público, cumprimentava quem estava na primeira fila, deu autógrafo e jogou uma camiseta para o público, enquanto Scandurra esmerilha cada vez mais seu instrumento, provando-se um dos maiores guitarristas de rock do Brasil. A dupla icônica, únicos remanescentes da formação clássica da banda, era acompanhava pelo fiel escudeiro Johnny Boy (no baixo) e Evaristo Pádua (na bateria), ambos cientes que estão tocando num grupo clássico – e fazendo jus a essa reputação. E ao abrir mão de sucessos como “Tolices”, “Vitrine Viva”, “Pobre Paulista”, “Gritos na Multidão” e “Longe de Tudo” para sair dos anos 80, seja tocando sua obra mais recente quanto celebrando ícones do passado, o Ira! mostrou que ainda faz sentido em 2023, principalmente à luz da semente que plantaram 35 anos atrás.
A comissão de música da Associação Paulista dos Críticos de Arte, da qual faço parte, revelou nesta semana, os indicados às principais categorias da premiação neste ano. Devido ao ano estranho que atravessamos, reduzimos a quantidade de premiados, focando nas categorias Artista do Ano, Revelação, Melhor Live e Disco do Ano. Além de mim, também fazem parte da comissão Adriana de Barros (editora do site da TV Cultura e colunista do Terra), José Norberto Flesch (do canal JoseNorbertoFlesch), Marcelo Costa (Scream & Yell), Pedro Antunes (colunista do UOL e Tem um Gato na Minha Vitrola) e Roberta Martinelli (Radio Eldorado e TV Cultura). A escolha dos vencedores deve acontecer de forma virtual no dia 18 de janeiro. Eis os indicados às quatro principais categorias:
Os 5 artistas do ano
Caetano Veloso
Emicida
Luedji Luna
Mateus Aleluia
Teresa Cristina
Os 5 artistas revelação
Flora – A Emocionante Fraqueza dos Fortes
Gilsons – Várias Queixas
Guilherme Held – Corpo Nós
Jadsa e João Milet Meirelles – Taxidermia vol 1
Jup do Bairro – Corpo sem Juízo
As 5 melhores lives
Arnaldo Antunes e Vitor Araujo (03/10)
Caetano Veloso (07/08)
Emicida (10/05)
Festival Coala – Coala.VRTL 2020 (12 e 13/09)
Teresa Cristina (Todas as Noites)
Os 50 melhores discos
Àiyé – Gratitrevas
André Abujamra – Emidoinã – a Alma de Fogo
André Abujamra e John Ulhoa – ABCYÇWÖK
Arnaldo Antunes – O Real Resiste
Baco Exu do Blues – Não Tem Bacanal na Quarentena
Beto Só – Pra Toda Superquadra Ouvir
BK – O Líder Em Movimento
Bruno Capinam – Leão Alado Sem Juba
Bruno Schiavo – A vida Só Começou
Cadu Tenório – Monument for Nothing
Carabobina – Carabobina
Cícero – Cosmo
Daniela Mercury – Perfume
Deafkids – Ritos do Colapso 1 & 2
Djonga – Histórias da Minha Área
Fabiana Cozza – Dos Santos
Fernanda Takai – Será Que Você Vai Acreditar?
Fran e Chico Chico – Onde?
Giovani Cidreira e Mahau Pita – Manomago
Guilherme Held – Corpo Nós
Hiran – Galinheiro
Hot e Oreia – Crianças Selvagens
Ira! – Ira
Joana Queiroz – Tempo Sem Tempo
Jonathan Tadeu – Intermitências
Josyara e Giovani Cidreira – Estreite
Julico – Ikê Maré
Jup do Bairro – Corpo sem Juízo
Kiko Dinucci – Rastilho
Letrux – Letrux aos Prantos
Luedji Luna – Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água
Mahmundi – Mundo Novo
Marcelo Cabral – Naunyn
Marcelo D2 – Assim Tocam Meus Tambores
Marcelo Perdido – Não Tô Aqui Pra Te Influenciar
Mateus Aleluia – Olorum
Negro Leo – Desejo de Lacrar
Orquestra Frevo do Mundo – Orquestra Frevo do Mundo
Pedro Pastoriz – Pingue-Pongue com o Abismo
Rico Dalasam – Dolores Dala Guardião do Alívio
Sepultura – Quadra
Seu Jorge & Rogê – Seu Jorge & Rogê
Silvia Machete – Rhonda
Tagua Tagua – Inteiro Metade
Tantão e os Fita – Piorou
Tatá Aeroplano – Delírios Líricos
Thiago França – KD VCS
Wado – A Beleza que Deriva do Mundo, mas a Ele Escapa
Zé Manoel – Do Meu Coração Nu
Mais uma semana começando e você sabe que segunda é dia de Festa-Solo, sempre às 21h no twitch.tv/trabalhosujo – o da semana passada foi assim….
Jessie Ware – “Ooh La La”
Dua Lipa – “Hallucinate”
New Order – “Blue Monday”
Madonna – “Music”
Chromatics – “You’re No Good”
LCD Soundsystem – “Sound of Silver”
MGMT – “Kids”
Caribou – “Odessa”
Gorillaz – “Empire Ants (Miami Horror Remix)”
Hot Chip – “Flutes”
Hercules and Love Affair – “Blind”
Breakbot – “Baby I’m Yours”
Mayer Hawthorne – “A Long Time”
Ariana Grande – “Thank U, Next”
Sade – “Paradise”
Michael Kiwanuka – “You Ain’t The Problem”
Curtis Mayfield – “Move On Up”
Sharon Jones & The Dap-Kings – “Better Things to Do”
Sam & Dave – “Soul Man”
Blues Brothers + Aretha Franklin – “Think”
Ray Charles – “I Got a Woman”
Beatles – “I Got a Woman”
Ritchie Valens – “Come On, Let’s Go”
Buddy Holly – “That’ll Be the Day”
Big Bopper – “Chantilly Lace”
Don McLean – “American Pie”
David Bowie – “Ziggy Stardust”
Stealers Wheel – “Stuck In The Middle With You”
Heart – “Barracuda”
Led Zeppelin – “Trampled Under Foot”
Rita Lee & Tutti Frutti – “O Toque”
Ira! – “Manhãs de Domingo”
Garotas Suecas – “Manchetes da Solidão”
Flora Matos – “Perdendo o Juízo”
Letrux – “Coisa Banho de Mar”
Céu – “Nada Irreal”
Curumin – “Boca de Groselha”
Bárbara Eugenia + Rafael Castro – “Te Atazanar”
Boogarins – “6000 Dias”
Ava Rocha – “Doce é o Amor”
Tulipa Ruiz – “Oldboy”
Gilberto Gil – “O Sonho Acabou”
Entrevisto o Nasi, lendário vocalista do Ira, nesta quarta-feira, a convite do Sesc Catanduva, a partir das 20h30, em uma live. Para assistir, é preciso se inscrever neste link.
Mesmo com sol…
Paul Simon – “Wristband”
Glue Trip – “Le Edad del Futuro”
Whitney – “Follow”
Beach Boys – “‘Till I Die”
Sebadoh – “Everybody’s Been Burned”
Yo La Tengo – “Our Way to Fall”
Belle & Sebastian – “A Summer Wasting”
Neil Young + Sadies + Garth Hudson – “This Wheel’s on Fire”
The Band – “The Weight”
Bob Dylan – “Tangled Up in Blue”
Arnaldo Baptista – “Será Que Eu Vou Virar Bolor?”
Sonic Youth – “Incinerate”
Cramps – “Human Fly”
Autoramas – “Carinha Triste”
The Fall – ” Victoria”
Ira! – “Farto do Rock’n’Roll”
Doors – “Soul Kitchen”
Blood Orange – “E.V.P.”
Jamie Xx + Romy Madley Croft – “Loud Places (John Talabot’s Loud Synths Reconstruction”
Lana Del Rey – “Blue Jeans (Penguin Prison Remix)”
Tame Impala – “Let it Happen (Soulwax Remix)”
BaianaSystem – “Azul”
Beck – “Jack-Ass”
Aproveitando o relançamento dos três primeiros vinis do Ira!, o site Azoofa (esse nome é muito feio, broder) fez uma longa entrevista com o Nasi, que comentou sobre a relação do Psicoacústica com o nascimento do mangue beat:
“Foi um disco que decepcionou não só as rádios e a gravadora, mas também parte da crítica, que classificou o Psicoacústica como um disco pretensioso. Tipo: ‘Quem são esses caras aí pra misturar maracatu com rap e rock?’. Até hoje vejo o cara que falou isso aí assinando diversas resenhas. Mas de certa forma, despretensiosamente, Advogado do Diabo acabou sendo a base do manguebeat. Não que fizemos a música e dissemos: “Estamos aqui inaugurando o manguebeat!”. Não, mas eu falei pro André: “Você é pernambucano, conhece a levada do maracatu, faz no pandeiro! Vamos fazer um rap, vamos colocar guitarra, um scratch!” Na época eu chamei o Thomas Pappon, ex-baterista do Voluntários e que hoje é jornalista da BBC, pra fazer o release do Psicoacústica. Ele fez um release todo cheio de frescura, mas um outro jornalista me disse que o Thomas riu pra caralho do disco, que achou uma bosta! Lembro de ir com o André na casa dele, picar o release e jogar na cara dele. Vai se fuder, você não e obrigado a gostar! Se você não gostou, não faz um release falando da rebimboca da parafuseta! Tudo isso é só pra dizer que é um disco que não passou batido! (…) Quando nós conhecemos o Chico Science, não existia Nação Zumbi. Conheci o Chico quando ele tinha o Loustal ainda (embrião da Nação Zumbi, formada em 1989 por ele, Lúcio Maia e Dengue). Ele trabalhava, inclusive, num balcão da Vasp, ainda! Eu já trabalhava com rap e ele veio falar, certa vez: ‘Sou fã de rap, gosto do Thaíde, que você produziu…’.”
Leia a entrevista inteira lá no site deles.
Os três primeiros discos do Ira! – Mudança de Comportamento, Vivendo e Não Aprendendo e Psicoacústica – formam a trilogia de discos que justifica a existência da banda, que como ninguém melhor soube retratar os dilemas e dramas do pobre paulista da virada dos anos 70 para os anos 80. Narradores da própria história, o grupo passa evolui seu mod à paulistana de canções simples e diretas a experimentos pop ousados como o conceito do terceiro disco, com sua capa 3D e citações do Bandido da Luz Vermelha e flertes com o rap e com o repente. Os discos chegam às lojas ainda este mês.
Shin Oliva Suzuki – “Livros e Música”
David Bowie – “1984” (1984, de George Orwell)
Cure – “Killing an Arab” (O Estrangeiro, de Albert Camus)
Velvet Underground – “Venus in Furs” (A Vênus das Peles, de Leopold Sacher-Masoch)
Leonard Cohen – “Hallelujah” (Bíblia)
Radiohead – “2+2=5” (1984, de George Orwell)
Ira! – “Os Meninos da Rua Paulo” (Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnar)
Police – “Don’t Stand So Close to Me” (Lolita, de Vladimir Nabokov)
Led Zeppelin – “Ramble On” (O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien)
Cream – “Tales of Brave Ulysses” (Odisséia, de Homero)
Nirvana – “Scentless Apprentice” (O Perfume, de Patrick Süskind)
Green Day – “Who Wrote Holden Caufield?’ (O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger)
Teve algum que ele esqueceu?