Guitar Days: “Vou fazer o que eu quiser”

Entrevistando o Seconde Come

Entrevistando o Seconde Come

Houve um tempo em que ter uma banda e viver de música eram atividades quase marginais, quando conhecer música era uma atividade para iniciados pois discos eram difíceis de serem encontrados e escolhas estéticas criavam conjuntos musicais que não estavam interessadas em fazer sucesso comercial. Esse é o espectro do documentário Guitar Days – An Unlikely Story Of Brazilian Music, que começa a se materializar a partir dessa semana, com os três shows de volta do Killing Chainsaw em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. A volta do mítico grupo piracicabano, pedra fundamental para um mercado independente que hoje movimenta milhares de pessoas em todo o país, está diretamente ligada ao filme idealizado por Caio Augusto, que passou a entrevistar dezenas de bandas, produtores, donos de selo e jornalistas, para contar a história de uma cena que começou no início dos anos 90 e colhe frutos até hoje. Fui um dos entrevistados do filme, que ainda não tem data de lançamento, e também chamado para discotecar no show do Killing Chainsaw desta quarta, no Z Carniceria, que terá abertura dos Twinpine(s) (tocando com o Zé dos Pin Ups) e dos Mickey Junkies (mais informações aqui). O Killing também toca sábado em BH ao lado do Secod Come, do Valv, do Câmera e do Lava Divers (mais informações aqui) e no Rio dia 30 ao lado dos Cigarrettes e do Second Come (mais infos aqui). Conversei com o Caio por email sobre o documentário e a cena que ele se dispôs a conhecer melhor.

Como surgiu a ideia de documentar este recorte da produção musical brasileira?
A ideia original era fazer um curta sobre a ocupação do espaço público pelo músico independente. Em algum momento em março do ano passado, um grupo de amigos divulgou um show de rua que seria realizado na Praça Roosevelt. A tarefa não parecia nada fácil, naquela semana eles trocaram de lugar uma porção de vezes. Problemas com autorizações e a polícia militar. Na noite anterior ao evento, conseguiram a autorização. O show não aconteceu porque choveu. Aquilo me chamou a atenção e os procurei pra saber quais eram as dificuldades de se tocar hoje em dia.
Digo hoje em dia porque também tive banda, que se chamava Kaddish, mas nem chegou a gravar nada e sabia, por experiência própria, que a vida nos anos 90 não era nada fácil, achei que ali tinha uma boa história e esse paralelo temporal poderia ser feito.
Durante as pré-entrevistas, onde os próprios entrevistados sugeriam os próximos a ser entrevistados, percebi que as histórias não eram tão somente sobre a conjuntura do cenário alternativo-independente, contava-se uma história longa, desde o início dos anos 90, como se houvesse a necessidade de cobrir um espaço nessa linha de tempo que eu, como entrevistador, talvez precisaria ser informado por não ser um tema óbvio.
A partir deste momento, entendi que um pedaço incrivelmente relevante da história da música brasileira me chamava para ser registrado, a história das bandas alternativas-independentes que cantavam em inglês e utilizavam a voz como mais um elemento musical, e não como protagonista da canção. Eram as guitar bands.

Alê e Zé (Pin Ups)

Alê e Zé (Pin Ups)

Como você chegou ao denominador comum em relação a cantar em inglês no Brasil?
Dissonância, vocais embutidos e letras em inglês foram denominadores comuns para estas bandas que, a partir do início dos anos 90, decidiram romper com rock dos anos 80 e assumir suas influências que vinham de fora. Mas isso tinha um preço.
Quando se fala em “artista”, sobretudo no mundo da música, comumente pensa-se em badalação, fama, grana e afins. Inclusive, não é nenhum exagero dizer que o jovem que procura a vida artística, hoje em dia, ambiciona essa vida de celebridade que lhe é vendida, em vez da divulgação e promoção da sua produção artística. Os envolvidos neste cenário alternativo-independente abandonam qualquer possibilidade de se tornar um “artista” da maneira como lhes tem sido apresentado, pela simples escolha do idioma inglês como canal de expressão. Pelo menos, é o que tem se provado até então.
Por que se tornar um artista sem exigir o “pacote de benefícios” que a função costumava lhe conferir? Nunca houve, realmente, nenhuma pretensão? As respostas para estas perguntas têm ligação direta com aquilo que o documentário também pretende apresentar: o rock pode ter sofrido com sua autoestima, mas nunca perdeu a atitude. Quem acha que perdeu, está olhando para o lugar errado. O fato do mercado não se interessar por rock – em 2015 não houve um música de rock sequer nas top 100 das rádios brasileiras -, não extirpa da personalidade do rock a sua característica essencial. Enquanto as câmeras apontam para um lugar, atrás delas o bicho tá pegando.
Se sua banda canta em português, não importa qual sua intenção no show business, você tem chance.
É óbvio que para toda regra há uma exceção. E essa exceção, até agora, foi o Cansei de Ser Sexy. Agora, se você perguntar “por que eles estouraram?”, nem mesmo Carlos Eduardo Miranda, o primeiro a assinar com a banda através da Trama, sabe te responder. Adriano Cintra, compositor e multi-instrumentista do Cansei, tem uma boa resposta pra isso, “não foi meritocracia nenhuma, foi como ganhar na mega-sena”.

Qual a sua relação com estas bandas? Como conheceu esta cena?
No início dos anos 90, também tive uma banda que compunha em inglês. Não era uma guitar band, era uma banda de pós-punk com influências de Cure, Siouxsie, Joy Division e afins. Em São Paulo, o costume era oferecer noites de pós-punk/gótico às sextas, guitar aos sábados, e punk/hardcore aos domingos. Raramente me encontrava com essa galera, apesar de ter assistido aos shows de Pin Ups, Killing Chainsaw, Mickey Junkies e Garage Fuzz nessa época.
Havia um misto de curiosidade e admiração por estas bandas. Lembro quando vi pela primeira vez o disco homônimo do Killing, o da capa do Akira – feito pelo jornalista Alex Antunes -, e pensei: “Cara, as portas se abriram. Vai rolar gravar um disco!” Mas assim como o Sol Segabinaze do Stellar lamenta no teaser do doc, é difícil rolar.
A minha relação com eles foi como a de muitos, de quem estava por perto naquele momento, mas não eram meu círculo de amizade e nem curtíamos o rolê juntos. Ao contrário dos meus amigos que me acompanham na produção do documentário. O Magoo Felix sempre esteve nos mesmos lugares dessa galera toda, da mesma forma que o Maurício Palhano esteve com a galera de Belo Horizonte. Acredito que esse distanciamento me habilitou a tratar do assunto com imparcialidade necessária para um documentário, tanto na captação das experiências dos entrevistados, quanto na descrição dos fatos.

Mickey Junkies

Mickey Junkies

Foi um documentário dificil de ser realizado?
Tem sido. O primeiro desafio a ser compreendido e equacionado é a obtenção e alocação de recursos para um projeto que não tem apelo comercial. É um trabalho sobre um cenário musical que, apesar de prolífico e de alcance nacional, ainda se trata como nicho, comercialmente. Ainda assim, pudemos observar durante a realização do documentário, que existe uma intenção objetiva de seus envolvidos – casas, mídia especializada e músicos – em assumir sua importância dentro do rock brasileiro e se profissionalizar. Por conta disso, nossa primeira tentativa de captação de recursos foi através de crowdfunding. Avaliamos que esta forma coletiva de financiamento seria uma possibilidade real para escoar nossas recompensas através desta ampla network em construção, auxiliaria no processo de divulgação inicial, com a possibilidade de entregar ao fã de música recompensas relevantes relacionadas ao tema. Preparamos uma coletânea de músicas inéditas em parceria com a Midsummer Madness, exibições de corte-não finalizado, DVD com extras e shows especiais em SP, BH e RJ, mesclando bandas noventistas com a nova safra e promovendo o retorno do Killing Chainsaw. Paralelamente, lançamos uma campanha chamada “Pacoteira Guitar Days”, onde dezenas de artistas, selos e bandas independentes de diversos estilos colaboraram com camisetas, CDs, vinis e uma série de outros itens bacanas para estimular a venda dos apoios. Ainda assim, o crowdfunding não trouxe o retorno esperado e preferimos interromper o processo em tempo para que os shows pudessem ocorrer sem problemas para os fãs interessados. A Pacoteira será sorteada entra aqueles que comprarem os ingressos para estes shows.
Ainda sobre problemas, um dos maiores ao realizar esse documentário foi decidir quando parar de buscar os personagens a serem entrevistados. O Guitar Days não tem a pretensão de indicar quem são as bandas mais relevantes do país, sobretudo se falarmos sobre a cena atual. Mas é inegável que Pin Ups, Second Come, Killing Chainsaw, Mickey Junkies, Garage Fuzz, Low Dream, brincando de deus, PELVs e The Cigarettes, foram sim os pioneiros da música indie nacional. Foram os primeiros a gravar discos e CDs, os primeiros a desenvolver uma linha rudimentar de distribuição de fitas demo, os primeiros a lançar uma plataforma online – brincando de deus tinha site na web em, pasme, 1993! – e os primeiros a criar uma rede de colaboração e cooperação entre bandas. A partir daí, o guarda-chuva se abriu. Querer definir a relevância das bandas independentes a partir deste ponto seria, no mínimo, irresponsável. Com bandas do mainstream isso é simples e óbvio, há uma lista ali de quem vendeu mais discos. Mas e para quem vende discos para um público ultra-segmentado? Por isso, a partir dali, a escolha das bandas para o registro do documentário obedeceu um critério objetivo. Dentre os temas abordados na narrativa, buscamos bandas que têm experiência para falar sobre tais assuntos e foram, também, mencionadas nas pré-entrevistas.
Um exemplo. Em Belo Horizonte, tínhamos na lista os excelentes Valv e Vellocet de BH, e Soap Blisters de Contagem. Três guitar bands de expressão na região, sendo que uma delas foi uma das primeiras bandas nacionais a participar do South By Southwest, o Valv. E eles contaram como foi essa experiência nos EUA.
Recebo mensagens cobrando a participação de bandas de todas as partes do Brasil, como se tivesse havido uma eleição ou seleção de bandas para o documentário. O doc não trata de quem é o mais importante, trata de assuntos importantes relacionados ao cenário alternativo-independente cantado em inglês e a forma como bandas experienciaram aquilo.
Mas como trabalho pouco é bobagem, pra quê simplificar se a gente pode complicar, não é? Hoje, temos um longa-metragem para finalizar, um CD para prensar e três shows para produzir. Se não é a participação dos parceiros Rodrigo Lariú – do selo Midsummer Madness – fazendo o meio-de-campo na produção da coletânea; o Rodrigo Carneiro – dos Mickey Junkies – ajudando enormemente em tecer alguns contatos fundamentais para as entrevistas; o Maurício Mauk – do Second Come – fazendo a ponte com a galera no Rio de Janeiro; nosso anjo da guarda mineiro, a Fernanda Azevedo – que era da produtora Motor Music – na linha de frente do show em BH; a Mariângela Cavalho – do Supernova – dando total suporte na nossa divulgação, posso lhe assegurar que nós aqui já tínhamos arrancado todos os nossos cabelos, unhas e etc.

Como você vai financiar o resto do filme? Há uma previsão de lançamento?
Ainda estamos avaliando alternativas para o financiamento do filme. A intenção é esgotar as possibilidades de finalizar o documentário de forma autossustentável, e os shows são uma das ferramentas de apoio para o financiamento. Veja bem, não sou contra a utilização de leis de incentivo. Acredito que o governo tem a obrigação de fomentar a produção cultural no país. Ainda assim, é uma busca pessoal tentar alternativas ao financiamento público. O Guitar Days é sobre isso, também. Sobre ser independente. Criar caminhos para que o audiovisual autoral possa se retroalimentar é, além de uma luta pela sobrevivência, uma declaração de independência. Sobretudo com a iminência de tempos difíceis por aqui. Sobre o lançamento, ainda não há previsão. Além do financiamento, durante este processo de levantamento de recursos percebemos que ainda havia algo que precisava ser contado. Por conta disso ainda faremos algumas captações pontuais, mas muito importantes para o refinamento da história.

Rodrigo Guedes (Killing Chainsaw e Grenade)

Rodrigo Guedes (Killing Chainsaw e Grenade)

Fale sobre a relação do documentário com o último show dos Pin Ups e a volta do Killing Chainsaw?
Quando fiz a pré-entrevista com o Zé Antonio, ainda em maio de 2015, ele já havia me dito que estavam conversando com o Sesc para fechar o último show da banda em São Paulo. Não teve dedo nosso ali, ao contrário do Killing Chainsaw.
Ao entrevistar o Rodrigo Guedes em Londrina, e Gozo, Pedrinho e Gérson em Piracicaba, percebemos que havia ali uma vontade latente em tocar juntos mais uma vez. E não era “voltar a tocar”, Guedes nunca deixou de tocar. Apesar do tempo lhe atribuir mais responsabilidades, ele é o “singer-songwriter” do Grenade. O pessoal de Pira se reúne eventualmente para tocar, com menos frequência, uma vez que o baterista Pedro Rosas mora hoje em São José dos Campos.
Eu, como fã de música e de performances ao vivo, sempre quis ver o Killing tocar mais uma vez. E acredito que eles também. Antes das entrevistas contei para eles tudo aquilo que tinha ouvido nas entrevistas anteriores. Como as bandas e jornalistas viam o Killing Chainsaw e como essa admiração não mudou de tamanho dos anos 90 para cá. Admito que fui à entrevista de Piracicaba já com segundas intenções, mas não aumentei uma palavra sequer daquilo que tinha ouvido. O Killing Chainsaw tinha uma vigorosidade nos palcos, que os entrevistados lembravam com brilho nos olhos. A semente havia sido plantada. Colheremos agora nesta quarta, no Z Carniceira em São Paulo, no sábado na Autêntica em BH, e dia 30 no Saloon 79, no Rio de Janeiro.

Quem você vê como os principais herdeiros daquela época?
A internet te oferece um universo de músicas e bandas, hoje, de forma totalmente horizontal e democrática. O oposto dos anos 90, quando você tinha que sair de casa, ir aos shows, copiar demos, vasculhar zines para ouvir coisa nova. Também não há o elemento da ruptura, que caracterizou aquela época, nos dias de hoje; mas sem dúvida alguma podemos ver bandas que foram influenciadas ou que transitam pelos caminhos criados por aquelas bandas. Pessoalmente, gosto de bandas mais soturnas, como os piracicabanos – tem coisa naquela água lá! – do Travelling Wave, mas não acho que eles seriam herdeiros por causa de uma sonoridade contemporaneamente distópica. Na minha opinião, os mineiros do Lava Divers e os gaúchos do Loomer, agregam as especificidades da época: guitarra distorcida, vocal embutido, volume alto, 4 pessoas que vivem a banda, correria, networking e muita disposição. Tenho convicção de que, se a música que o Lava Divers gravou para o Guitar Days, “Hash and Weed”, for lançada na gringa, vira hit. Aliás, essa coletânea do Guitar Days tá uma coisa linda!

Lava Divers

Lava Divers

O que mais lhe impressionou ao produzir o documentário?
Os artistas, sem dúvida alguma. O que conheci foi um número de talentosos artistas brasileiros que são tão artistas quanto My Bloody Valentine ou Sonic Youth. A diferença aí, é que estes artistas independentes não podem se dedicar a sua arte em seu tempo integral, porque precisam se dedicar a outras atividades para custear a sua atividade artística que, como sabemos, não é autossustentável. Não há dúvidas ao afirmar que essa foi a melhor parte ao realizar este documentário. A sensação ao sair das entrevistas era de perplexidade por estes artistas não terem recebido o devido reconhecimento por aquilo que produziram até então. Foi um privilégio ouvir as histórias dessas pessoas. Não por acaso, foram mais de 70 horas de conversas registradas.

Fabio Massari

Fabio Massari

Como foi seu contato com o Mauricio Palhano e o Magoo Félix, que estão ajudando no documentário?
O Magoo Felix é amigo de bairro. Nos conhecemos desde os 16 anos quando ele só ouvia Anjos dos Becos. A bateria que ele usou nos primeiros 6 anos de Twinpine(s) era a minha. Magoo era um dos entrevistados para o curta-metragem sobre a ocupação do espaço público. Foi ele quem me costurou os contatos do Zé Antonio do Pin Ups e Rodrigo Carneiro dos Mickey Junkies. E foi logo após estas entrevistas que decidi ampliar o escopo de atuação. Eu o chamei, dizendo que seria uma produção de guerrilha e não poderia pagar um real sequer, ele aceitou na hora. Magoo é um trabalhador incansável! O Maurício Palhano foi meu parceiro de Academia de Cinema. Ele não gosta muito de tocar no assunto, mas é baterista da banda shoegaze mineira Multisofá. Através dele, desenrolamos as entrevistas de Minas e Rio de Janeiro e algumas outras em São Paulo. Além dos contatos com os entrevistados, Magoo e Maurício seguiram atuando em diversas frentes da produção, como obtenção de locais para gravação, busca de material de cobertura, artes gráficas, e também durante as gravações, auxiliando na captação de áudio e também participando das entrevistas. Isso sem falar na correria da produção dos shows, que é todo um trabalho à parte.

Caio, Magoo e Maurício (Divulgação)

Caio, Magoo e Maurício (Divulgação)

De volta ao Juntatribo

Culpa do Facebook, que agora tem uma página em homenagem ao clássico festival campineiro. Um resumo bem 3 x 4 na matéria abaixo, da EPTV.

Traduzindo: foi o início do rock alternativo no Brasil de fato, quando o movimento paralelo às gravadoras e rádios começou a se tornar nacional a partir de um festival realizado fora de uma grande capital. O Junta foi imaginado pelo Marcelão, que na época tocava com o Waterball, e executado pela dupla Sérgio Vanalli e Thiago Mello, que editavam o fanzine Broken Strings. O festival teve duas edições, ambas na Unicamp: na primeira, em 93, mais guitar e hardcore, a principal revelação foi os Raimundos, mas a banda de Brasília já estava no radar do jornalismo musical brasileiro há alguns meses e o show no Juntatribo (marcado em cima da hora) foi quase que a explosão de uma banda relógio. A principal atração da primeira edição foi reunir a primeiríssima geração daquele novo rock independente brasileiro (que cantava em inglês e existia basicamente entre o Rio e São Paulo) num mesmo evento: Mickey Junkies, Killing Chainsaw, Pin Ups, Second Come, Safari Hamburgers e Low Dream (a outra representante de Brasília). Os Raimundos funcionaram quase como um brinde para o festival. Assisti à maioria dos shows sem nenhum distanciamento crítico: era apenas estudante da Unicamp e a realização de um festival daqueles, feito na raça por pessoas que eu conhecia pessoalmente, era exatamente o que eu esperava da vida na universidade.

No ano seguinte, já estava trabalhando em jornal (no Diário do Povo) e ajudei a pensar a edição especial que cobriria a segunda edição do evento, que já ampliou seu leque musical e cuja principal atração era um grupo de rap novíssimo do Rio de Janeiro, um certo Planet Hemp. A edição de 94 foi marcada pela desorganização em alta escala, uma vez que a popularidade posterior do primeiro Junta trouxe dezenas de carros cheios de malucos da capital e de todo o interior de São Paulo para o festival. Já no primeiro dia, o palco desabou. O que transformou o segundo dia em uma maratona que começou ao meio-dia e terminou às cinco da manhã do dia seguinte, algumas horas antes dos shows do último dia começarem.

Foi um festival importante pra muita gente, que passou a aprender o que era rock alternativo, cultura independente e a lógica do faça-você-mesmo na prática e que cultivou sementes que brotariam no decorrer da década e que até hoje estão aí. E isso num tempo sem internet, sem MP3, sem blog, sem rede social, sem podcast, sem YouTube. Era tudo na base da carta, do xerox, do VHS, da fita cassete e do flyer. Parece que se passaram uns cinquenta anos.

A página do Feice do festival é essa. Curte lá.

Uma entrevista com o Adriano Cintra

Em uma entrevista feita pelo blog Chiveta no meio do ano (e que sumiu do blog IdealShop, mas o Internet Archive acaba resgatando tudo), o Adriano falou sobre sua vida mudou depois do Cansei de Ser Sexy:

O quê é mais difícil de agüentar: jornalista gringo babando ovo ou jornalista brasileiro invejoso falando mal?
Eu não sei, eu não dou mais entrevista faz um bom tempo. E não leio nada que escrevem sobre música. Música é feita pra escutar. E não vou perder meu tempo lendo opinião de gente que eu não conheço, prefiro cuidar das minhas plantas, andar de bicicleta, queimar minhas cerâmicas.

Quanto ao assédio, qual tipo é mais chato: de fã adolescente e celebridades gringas ou subcelebridades e alternativos “das antigas” brasileiros?
O pior assédio é quando você acaba saindo e vem gente fazer a íntima. Celebridade não faz a íntima. Alternativo das antigas brasileiro sou eu, a maioria eu conheço e sei de onde vieram, não tem essa de ser chato. Tem muito neguinho que eu conheço há miliano que eu sei que não gosta de CSS, e daí? Eu não quero saber, não faz a menor diferença na minha vida e se forem me tratar diferente por causa disso azar o deles, eu tenho meus amigos.

Agora que você viu e participa do circuito de rock mundial, o que você acha do Brasil? O quê precisaria mudar por aqui pra ficar bom para as bandas?
Primeiro precisa acabar a idéia que a casa de show está fazendo algum favor pras bandas. O Brasil precisa de agentes de pequeno/médio porte para mediarem as negociações entre os artistas e as casas de show. Isso já ia fazer uma diferença bem grande. E eu amo muito o Brasil. Nego inventa que a gente fala mal, que isso e aquilo.

No resto da entrevista, ele solta o verbo sobre vários outros assuntos. Dá pra ler ela toda aqui.

E por falar em anos 90: A volta do Low Dream

Calma, é só o Lariú dando um trato nos clipes do Midsummer e colocando-os na roda. Chegou a vez do ícone shoegazer brasiliense. Acredite, essa já foi uma das bandas indies mais importantes do Brasil:

É legal o Lariú explicando:

“Este clipe começa, a música pára e volta, é assim mesmo”

Agora… Volta? Nah, tou só sensacionalizando. Mas vai que…

De volta a 1994

O Lariú tá resgatando o acervo de clipes do Midsummer Madness e começou com três, esse clássico lo-fi do Cigarrettes aí em cima (que abria a demo Felicia – éramos tão jovens…), outro da PELVs e mais um da banda do Collares. Taí um revival dos anos 90 que vale à pena, mas por motivos estritamente pessoais para os envolvidos…

A “volta” do Brincando de Deus

Luciano conversou com Messias sobre a “volta” da banda em que é vocalista e letrista, a baiana Brincando de Deus, uma das bandas mais importantes do cenário independente brasileiro. O “retorno” (entre aspas mesmo, porque a banda não chegou a acabar de fato, apenas parou em 2005) acontece a princípio em um show nesta sexta, em Salvador, mas o próprio Messias já anunciou que em 2010 devem rolar mais novidades…

Aliás, tudo indica que ano que vem será fodaço.

E por falar em Brincando de Deus…

Campinas, São Paulo, 17 de setembro de 1994. Ou melhor, 18 – a meia-noite já tinha passado longe. No palco, o Brincando de Deus. Para uma geração que cresceu associando rock independente brasileiro a associações, cachês e MySpace, uma pequena amostra do que era isso há quinze anos. Esperem até cair a energia no meio do show.

Eu tava lá. Época boa. Tudo era tosco, amador e feito na marra. Mas tinha mais sangue, mais paixão. As bandas gostavam mais de tocar juntas do que de tirar foto de divulgação.

E por falar em Juntatribo…

O Moralis upou umas fotos que fez no festival-chave de toda uma geração crescida na base da fita demo, CD importado barataço e Fabio Massari na MTV. Era mais do que tinham na década anterior, mas quase nada comparado ao que se tem hoje. Ele ainda escreveu um textinho igualmente nostálgico para emoldurar o set de fotos:

As fotos que ilustram esse álbum são apenas fragmentos de uma noite no histórico festival Juntatribo, eu era apenas um moleque com uma camiseta do Sonic Youth (Goo), uma Yashica amarela e as passagens do ônibus Cometa que me levariam para Campinas, no observatório da UNICAMP, onde a lona de circo estava montada para receber mais de uma dezena de bandas, entre elas algumas que entrariam para a história da cena musical independente brasileira, como Garage Fuzz, Killing Chainsaw, Little Quail, Planet Hemp, entre outros.

Lembro-me de ter visto o primeiro Juntatribo pela MTV, fiquei fascinado pelo Tube Screamers, Mickey Junkies, Safari Hamburguers, Low Dream, Raimundos, Pin Ups, Second Come, Okotô, entre outros. Era uma época onde a comunicação acontecia por cartas, as músicas eram trocadas em K7 e muitas informações eram divulgadas por fanzines, entre eles o Broken Strings, capitaneado pelo Thiago e pelo Sérgio (Hëavën in Hëll), nessa época me comunicava principalmente com o Thiago (Broken Strings) e o pessoal do Low Dream de Brasília! No mesmo ano trocava cartas com o Marcos Boffa, que realizaria o BHRIF e que traria o Fugazi!

Existia algo no ar que só compreenderíamos anos e anos mais tarde!

1994 se tornava histórico por todas essas bandas que começavam a surgir do norte ao sul do país, pelo Fugazi, e tragicamente pela morte de Kurt Cobain!

Memórias

Uma das recordações mais engraçadas do Juntatribo 2 foi um acidente de carro que aconteceu horas antes do festival começar, era de tarde, fazia um sol escaldante e algumas bandas chegavam para o festival! Recordo-me do pessoal do Brincando de deus chegando, enquanto alguns estavam sentados no chão conversando, tudo extremamente calmo, um Chevette branco perdia o controle e batia em uma árvore, uma cena surreal!

Logo após o acidente, ficamos sabendo também que na noite anterior o palco havia caído, danificado alguns instrumentos e que as bandas da sexta tocariam junto com as bandas do sábado! Confesso que fiquei feliz com a notícia, como só poderia ficar no sábado, o fato de unirem as bandas fez com que eu assistisse dois dias em um!

Outro fato marcante foi a confusão que os punks fizeram na apresentação do Garage Fuzz, interrompendo o show e fazendo um discurso patético, nem me lembro o que os irritava, sei que atrapalharam bastante o show, e mesmo após o fim da apresentação a discussão continuaria, como vocês poderão ver em uma das imagens que traz Ale (Pin Ups) batendo boca com os punks! Nessa época a Ale, ex- do João Gordo, iniciava o namoro com o Farofa, vocalista do Garage Fuzz!

Não sei ao certo quanto tempo durou o festival, se não me falha a memória, o festival começou por volta das 18h do sábado e terminou lá pelas sete da manhã do domingo, ou seja, no mínimo 12 horas ininterruptas de som e terra, muita terra vermelha!

Você devia ter estado lá.

Já é

Aeroporto tinindo, trincando de novo, o Zumbi dos Palmares faz bater os dentes até do visitante mais anticalor que Maceió pode receber – não era o meu caso, mas o frio vinha avassalador. Novinho em Folha, o aeroporto cheira a frigorífico e um ar condicionado power me gela-me os ossos feito filme de terror. Não deixa de ser assustador: tremendo aeroporto, completamente vazio, gelado por dentro e exibindo um sol escaldante do lado de fora. Sinto como se estivesse no aeroporto de Fenda no Tempo do Stephen King ou no shopping de A Madrugada dos Mortos, de George Romero: a qualquer minuto, o desconhecido vai entrar por aquelas portas de vidro e invadir geral.

Mas estamos no Brasil e a nóia com a violência é importada – invadamos nós. Do aeroporto pro calor das Alagoas (que não desce dos trinta, no máximo à noite), atravesso Maceió rumo ao Lagoa das Antas, onde os “gringos” (convidados, imprensa, bandas) ficarão hospedados. “Gringos”, expressão dita com uma ironia atravessada na garganta, são os cariocas e paulistanos que visitam a cidade – representantes do eixo Rio-SP que podem nem serem nascidos no sudeste (Gabriel do Autoramas é de Brasília, Catatau do Cidadão é cearense) mas foram respaldados por cidades que não são as suas. “Gringos”, expressão que carrega todo o escárnio sentido pelos locais: esses sujeitos que têm mais dinheiro que a gente.

Em Maceió, o simples fato de entrar na cidade pelo aeroporto te faz gringo. O ar condicionado lembra à alma que você não é dali, ou, se é, está deixando de ser. O frio como uma zona de transferência, uma doca social entre dois ambientes, um que voa com freqüência e um que admira e inveja esses que voam. Em Alagoas, índices sociais quase no fundo do poço, essa diferença fundamental do Brasil cresce aos olhos, pobreza e miséria de diferentes nuances vêm lembrar à caravana de turistas que, belas praias, belas praias, mas isso aqui é o terceiro mundo.

Maceió é um imenso amontoado de pequenas cidades do interior, como se centenas delas migrassem do agreste para o litoral para não morrer de fome e, quis o destino, sobreviveram melhor unidas, sem fronteiras. Pelas inacreditáveis distâncias percorridas em uma cidade com menos de um milhão de habitantes, é possível ver diversas pracinhas, com casas de fachada portuguesa, árvores frondosas, carrinhos de pipoca. Não há neon nem placas com luzes fluorescentes, as lojas se anunciam pintando letreiros nas paredes, como se ainda fossem os anos 50 ou 60. Pouquíssimos carros (o “engarrafamento” anda a 20 por hora) e muita gente a pé, belíssimas praias sujas pelo descaso. Não há prédios com vinte andares, avenidas caóticas, poluição visual ou sonora nem a vocação para a metrópole. A noite é um imenso barzinho, quase sempre de terra batida ou mesa na calçada.

Cenário mais do que improvável para um festival de música independente? Analisando superficialmente, sim. Afinal, nem Alagoas nem Maceió têm tradição em revelar nomes musicais para o resto do país, como seus estados vizinhos: fora Hermeto Paschoal e Djavan, que raramente são associados a seu estado de origem, pouco se sabe da música que sai daquele estado. Ainda paira sobre Alagoas o fantasma de PC Farias e a sombra de Fernando Collor, embora que, ao mesmo tempo em que estes montavam seu império com sede em Brasília, uma geração de músicos começasse a, lentamente, colocar a cidade no mapa.

O pioneiro foi o grupo Living in the Shit, cujo nome, sintomático, denunciava a falta de perspectiva do cenário local. Era a fagulha necessária para dar ignição à cena. Depois do Living, vieram bandas como Oito, Ball e Santo Samba, cada uma acrescentando um pequeno tijolo na incipiente cena alagoana do final do século vinte. Das fileiras destas bandas saíram nomes que ajudaram a cidade se estabelecer como um pequeno celeiro musical, com atmosfera, tempero e sotaques culturais próprios, longe de estar à margem de Recife ou Salvador.

Se a cidade nada tem de metropolitana, o mesmo não pode ser dito de parte de seus habitantes. Há um pequeno mas expressivo público para cultura independente, mais interessado nas novidades da cidade do que buscando fugas para o aparente tédio local. Gente que, com piercings, dreads, tatuagens, cabelos coloridos e sem preconceitos sonoros, fura só nos anos 00 do novo milênio uma barreira pela qual as principais cidades do Brasil atravessaram entre 1969 e 1996 – do pós-tropicalismo ao pós-mangue beat. Essa chegada tardia de Maceió ao cenário pop brasileiro, no entanto, não deformou os ares locais, como aconteceu em cidades como Curitiba (coesa mas esquizofrênica, segura de si mas sem rumo), Salvador (onde a axé music transformou roqueiros em xiitas), Florianópolis (que só faz quando tá com vontade, os verdadeiros novos baianos) e Belo Horizonte (cuja síndrome de inferioridade sob Rio e SP a faz esquecer que alguns dos nomes-chave do pop Brasil dos 90 [Sepultura, Pato Fu, Skank e, sem julgamento de valor, Jota Quest] vieram de lá). Tanto que os principais nomes da cena local não parecem emular bandas “gringas” – sejam internacionais ou do dito “sul maravilha”. Há um som que é da cidade. Todos os principais nomes da cena pós-Living buscam uma sonoridade que, ao mesmo tempo desalinhe a evolução urbana atrasada de Maceió e mantenha as características de uma pequena vila de pescadores que parece persistir nas metáforas e no clima quase sempre ensolarado – se noturno, ao menos quente – dos luminares da cidade (soando igualmente alagoano, cosmopolita e universal).

Estes são três, não por acaso os melhores shows da primeira edição do Festival de Música Independente, da infame sigla FMI, que aconteceu no último fim de semana de março, na capital de Alagoas. Wado, Mopho e Sonic Jr. Consagraram-se como o tripé fundamental da música da cidade, ao redor das quais orbitam nomes como os locais Xique Baratinho e Marcelo Cabral & Trio Coisa Linda, e novatos equivalentes de estados próximos como o paraibano Jackson Envenenado, o potiguar Experiência Apyus, o pernambucano Negroove e o mestiço Pedra de Raio (das ex-comadre florzinha Telma César, de Alagoas, e Renata Mattar, de São Paulo), todos convocando sonoridades distintas (forró, MPB, rock clássico, choro, funk, samba, música regional, indie rock, reggae) que se mesclam à medida em que cada grupo puxa determinados ingredientes do parêntese acima para compor o seu guisado musical. A música de Alagoas já absorve a tendência ao amálgama musical, pulando a fase da justaposição (funk metal, forró-core, ska com rap, indie com bossa) pela qual todo grande centro pop brasileiro já ultrapassou.

Mas antes dos shows memoráveis do sábado e domingo, a abertura do FMI na sexta, sem querer, teve cara de carta de intenções. Chamou um baiano e um pernambucano contemporâneos dos movimentos musicais que sagraram suas cidades no mapa pop brasileiro – o tropicalista Tom Zé e o mangue beat do Bonsucesso Samba Clube – e dois representantes locais da música alagoana, clássicos senhores, Chau do Pife e Tororó do Rojão. O primeiro, que se fosse metido à besta se apresentaria como Charles do Pífano, é um Louis Armstrong do forró. Conduzindo standards do gênero com a sutileza e a reverência de um mestre, Chau só parava para agradecer a oportunidade de tocar para aquele público e para falar da própria feiúra. O segundo, o forrozeiro classudo Tororó do Rojão, anunciado como uma espécie de ancestral de Genival Lacerda, mas que, na prática, localiza-se entre o sambista Riachão e o pagodeiro Moreira da Silva – um malandro clássico, terno branco e tudo o mais, que aconteceu de nascer nas Alagoas em vez de na Lapa carioca. Juntos, Chau e Tororó em nada parecem remeter à nova geração do pop alagoano, mas essencialmente têm, juntos a mesma qualidade que partece unir a música de Maceió – a reverência e a irreverência simultânea, como se respeitar e rir fossem o mesmo verbo.

Entre os dois, Tom Zé tirou um atraso de toda uma carreira para com a cidade, onde só tinha se apresentado em 1962, cinco anos antes de iniciar sua carreira discográfica, quando ainda era apenas estudante de música na Federal de Salvador. E o fez em grande estilo, executando um pout-pourri não apenas de suas músicas, mas de suas apresentações. Começou passando a íntegra da opereta Segregamulher e Amor, de seu último CD, Estudando o Pagode, que funcionou maravilhosa no cenário de ópera que era o local da noite de abertura, o Teatro Deodoro. Depois reviu seus hits tropicalistas, sua fase pós-David Byrne, seus anos 70, sua faceta de bardo solitário – faltaram apenas os instrumentos de seu bestiário particular, encarnados em disco no ano 2000. Mas o público, maravilhado com a compleição do artista, deixou-se hipnotizar e, mesmo encarando esparsas caretas de esgar quando pegava em assuntos belicosos (lembre-se que seu disco mais recente fala sobre machismo, feminismo, homossexualismo e prostituição infantil – quase sempre sem rodeios), foi guiado para a Utopia de Tom Zé, este plano de palavras e sons para onde somos levados num êxtase em meio ao show do baiano – e quem nunca foi, bom sujeito não é.

Depois, do lado de fora do teatro, o grupo olindense Bonsucesso Samba Clube começou a segunda parte da sexta-feira apresentando pérolas do novo disco, Tem Arte na Barbearia, como “Derrapar”, “Não Posso Pensar em Não Ir”, “Rios, Fios” e “Meu Jornal”, ao lado de notáveis de seu disco de estréia, como “Pensei Se Há” e “O Samba Chegou”. O carisma do vocalista RogerMan é comparável ao dos sambistas de velha guarda (aquele mesmo que Seu Jorge – atração do Coachella – emula com tanto cuidado e mercê), o que sublinha a palavra do meio do nome da banda, que ainda abre espaço para “um cover”, anunciam, ironicamente, antes de tocar o clássico “Volta por Cima” (“Levanta, sacode a poeira…”) do sambista e paleontólogo Paulo Vanzolini. A banda, sutil e detalhista, segue o samba, mas bate do ar da caixa feito bossa nova, tem o grave condutor do reggae roots e a escaleta do dub, além de um backing vocal da era do rádio e um guitarrista rock não-ortodoxo, funcionando quase como tios musicais do Mombojó.

O fato do festival ter começado no Teatro Deodoro dava uma suntuosidade de brinquedo ao evento: com a mesma cara de um teatro de ópera clássico, o pequeno Deodoro é muito menor do que casas de ópera de verdade, dando um ar de miniatura ao simpático teatro. Na entrada do Teatro, uma banda mecânica nos recepcionava – “robôs” musicais como os bonecos do Kraftwerk, a banda Só Bonecos é, na verdade, um enorme sintetizador analógico com engrenagens que disparam instrumentos de verdade, que tocam diferentes ritmos nordestinos ao simples apertar de botões – frevo, forró, maracatu, baião, xote. Uma inacreditável relíquia musical, quase uma invenção do professor Pardal encarnada aos olhos dos passantes. Nos dias seguintes, mesmo com a presença surreal da banda, a coisa mudaria de figura, em termos de ambientação. Sai a ostentação pequena do Teatro, entra a superestrutura montada na Uzina, uma enorme usina transformada em casa noturna, com pé direito de mais de vinte metros de altura e dois palcos para dez shows por dia, um deles com direito a ar condicionado. Foi neste palco que aconteceram as atrações mais deslocadas do festival (o instrumental Duofel, o free jazz de Beto Batera e o trance acústico roots do Projeto Cru), que, independente de suas “propostas”, foram bem recebidos pelo público.

Outros shows-chave do evento aconteceram ali, como os locais Mopho e Sonic Jr. Enquanto a última é, na verdade, apenas o ex-baterista do Living in the Shit Juninho que, depois de diferentes formações, resumiu a própria versão ao live P.A. consigo mesmo, cantando, disparando bases e às vezes assumindo a batera sozinho no palco; o Mopho existe na cabeça do vocalista e guitarrista João Paulo do mesmo jeito que o Pink Floyd foi uma visão de Syd Barrett. Dois grandes shows, o Mopho ganhou pela paixão despertada pelo público, que já compreende este amálgama de Mutantes e Roberto Carlos como patrimônio estadual. Quase sempre frito, o vocalista é observado como um sobrevivente de uma época que não viveu, como se fosse possível resgatar Arnaldo Baptista do pé-na-bunda que Rita Lee lhe deu no fim dos Mutantes, quase uma relíquia histórica. Já Juninho vai pela cintura e conquista todos com o ritmo.

Outro momento mágico do festival foi a apresentação do grupo cearense Cidadão Instigado, o Dark Side of the Moon da rádio AM. Irrepreensível, o grupo gira o momentum musical progressivo e popularesco ao redor de seu líder, Fernando Catatau, que transforma qualquer lapso de holofote deixado pela banda num monumento a seu instrumento, a guitarra. Cada show do Cidadão é melhor do que o anterior, Catatau atingiu a autonomia de vôo em suas composições e a banda está entrosada como se tivessem uma década de existência, pelo menos. Uma apresentação imperdível, um dos grandes shows brasileiros atualmente.

Já no palco quente (e sem ar condicionado, em Maceió, isso quer dizer pelo menos 30 graus), os grandes shows foram os da banda Vibrações Rasta, dos Autoramas e de Wado. A Vibrações é o equivalente alagoano de bandas como Natiruts e Planta & Raiz – uma banda de reggae raiz, e ponto. Uma boa banda de reggae raiz, bom salientar, apesar da afetação marleyista demais do vocalista – que é um verdadeiro fenômeno popular em Maceió. Faz muitos shows, tem público fiel – principalmente na periferia, que é quase toda a cidade – e são até pirateados por camelôs, que é um parâmetro definitivo pro sucesso comercial. Foi o que fez o bom show da banda, boa resposta de público, bom vínculo com a banda, química perfeita.

O Autoramas fez a mesma coisa, mas com a pegada industrial do rock’n’roll e para um público bem menor. Uma das poucas bandas independentes brasileiras que sobrevive de seu trabalho, o trio carioca faz shows como operários do rock. “Só não tocamos em dois estados do Brasil, até agora”, comemora o guitarrista e cantor Gabriel Thomaz, pouco antes de subir no palco e se apresentar em mais um dia de trabalho. Com a mesma energia, garra e eficácia de qualquer show da banda, veneno escorrendo pelo canto da boca como tempero de rock feito pra dançar.

Mas a grande apresentação do festival foi o reencontro de Wado com seu público quase-conterrâneo (Wado, de sobrenome Schlickmann, é catarinense adotado por Maceió). Há dois anos sem se apresentar nas Alagoas, depois de uma temporada carioca que transformou-se num exílio, ele fez uma apresentação nos braços do público, que cantava todas as músicas de seus três discos, deixando o vocal de “Ontem Eu Sambei” para a massa, em transe de felicidade, como toda a banda. Uma pequena e poderosa amostra do poder da música como catalisadora de sentimentos em si mesma, canções como cápsulas de emoção. Semelhantes às do show do Living in the Shit, datado nos anos 90, que trouxeram aos sobreviventes nascido na cidade lembranças de um tempo em que um festival como o FMI não exisitiria nem em sonho na cidade.

O festival chegou ao fim com a certeza de ter entrado para a história de Maceió – nunca havia acontecido um evento desta natureza na cidade, grande ou pequeno. Mapeando a própria cena ao mesmo tempo em que se projeta timidamente, mas sem modéstia, no cenário independente brasileiro, o FMI já é.

Indie 25

Lista complicada, o critério definido para determinar o que é ou o que não é rock independente é curto e grosso: se tem dinheiro de empresa grande, não é indie. Assim, os altos e baixos do rock nacional no mercado de discos dão a tônica da produção independente nos últimos vinte anos. Até o começo dos anos 80, ser independente era uma atitude, um manifesto – como foram os discos da fase Racional de Tim Maia e a idéia original do selo de Luís Carlos Calanca, a Baratos Afins. Mas a explosão do rock na década de 80 praticamente extinguiu a produção indie, tamanha era a demanda das grandes gravadoras – e grupos independentes por definição musical tiveram seus discos lançados por majors. A estréia de Lobão, Cena de Cinema, de 1982, por exemplo é uma demo gravada em vinil. Nos anos 90, a chegada da MTV e o sucesso do Sepultura no exterior impulsionam o faça-você-mesmo e o rock independente vive o nascimento de um mercado que começaria a se organizar nos anos seguintes. O sucesso do plano Real, em 94, determina o futuro deste mercado: se por um lado abre a possibilidade de se adquirir tecnologia graças à paridade com o dólar, por outro exclui o elitismo musical do mercado de discos, voltado apenas para classes populares. Isto aumenta a produção caseira e equipa uma primeira geração de computadores que, graças à internet, passa a se comunicar com mais agilidade e para um público específico. Chegamos ao século 21 com uma produção madura e plural, disposta a conquistar o Brasil e o planeta.

Os 25 discos abaixo são as pedras fundamentais na formação de um mercado independente, tanto do ponto de vista comercial como artístico. Cada um deles marca uma etapa concluída, um novo patamar e uma novidade no complexo jogo do rock brasileiro indie, cada vez menos abaixo e mais ao lado do pop endossado por patrões abonados, mesmo aqueles lançados sob uma chancela “indie” (como o selo Plug da BMG, o Banguela da Warner, a Tinitus que era distribuída pela PolyGram ou o Chaos da Sony). Para facilitar a compreensão e não confundir a história, o foco fica apenas no formato rock, excluindo outros agentes cruciais para a formação do mercado independente (como hip hop, heavy metal, eletrônico e hardcore). Se não, era assunto para páginas e mais páginas…


1) Singin’ Alone – Arnaldo Baptista (1982)
Marco zero da produção independente como nós conhecemos, é o primeiro lançamento da Baratos Afins e o alerta “o sonho acabou” para a geração que cresceu à sombra dos Mutantes. Um novo rock estava começando a tomar conta do Brasil (à base do chopp e batata frita) e Arnaldo Baptista chorava as próprias mágoas ao piano, atormentado emocionalmente, com baladas cruas e muito rock’n’roll. Bem distante do sol carioca que começava a bronzear o rádio.


2) 3 Lugares Diferentes – Fellini (1987)
MPB maldita, cool wave, pós-punk, bossa nova, África, cult band, art rock… Conceitos que fervilhavam no underground oitentista se encontraram numa mesma banda. Formada pelos jornalistas Cadão Volpato e Thomas Pappon, o Fellini contava com a participação de Ricardo Salvagni para gravar seu álbum menos enigmático e mais, er, pop. Entre o rock europeu e a melancolia brasileira, eles sintetizavam sentimentos que anos depois seriam traduzidos em um único adjetivo: indie.


3) O Ápice – Vzyadoq Moe (1988)
Na Sorocaba pré-Wry, o clima europeu era mais alemão do que inglês. Culpa do noise dada do Vzyadoq Moe, performáticos orgânicos que partiam pra cima do público. Menores de idade e fartos de punk rock, abraçavam o drone, o cabecismo, o ritmo kraut e o industrial desplugado, especialmente na percussão ferro-velho. O Ápice vale seu título por optar pela independência, enquanto irmãos de sonoridade do grupo (o mineiro Sexo Explícito, os cariocas Black Future e Picassos Falsos) fecharam com a certeza do contrato com grandes patrões.


4) Cascavelettes (1988)
Antes de serem banalizados por um hit na novela Top Model, pelos mimos do superstarismo e muito antes do forróck boca-suja dos Raimundos, os Cascavelettes inauguraram a fase moderna do pop gaúcho, separando os contemporâneos do Liverpool e a geração Rock Grande do Sul como farinha do mesmo saco. Usando o palavrão com motivos rock’n’roll (o rock brasileiro só os usava com motivos punk, ressaca da Censura), o grupo era um misto de Ramones pornográficos com New York Dolls machistas e seu primeiro disco (lançado um ano antes do sucesso de “Nega Bom-Bom”) mostra a disposição para injetar algo mais do que energia no indie nacional. As demos da época, todas batizadas com o nome da banda, mantém o “nível”.


5) You – Second Come (1991)
Este é o único disco do selo Rockit!, do guitarrista da Legião Dado Villa-Lobos, que pode ser considerado independente – já que o sucesso underground que fez esgotar a tiragem inicial de 3 mil discos fez crescer o olho da inglesa EMI-Odeon, que abduziu a marca. A estréia do Second Come, influenciada diretamente pelo sussurrado rock inglês pós-Madchester e pelas convulsões noise pré-grunge do underground americano, abre a segunda fase do indie brasileiro que, devido à onipresença do instrumento, começa a ser definido, anglofonamente, de “guitar” (as duas pronúncias são permitidas).


6) Little Quail and the Mad Birds (1992)
Depois de tentar seguir os passos da geração Legião-Plebe-Capital (em vão, culminando na geração do seminal Rock na Rampa, em 1987), o rock de Brasília volta-se para dentro e a capital do Brasil começa a ebulir culturalmente. Disputando cabeça-a-cabeça o título de melhor banda com o Low Dream e o de melhor demo com o Oz (a excelente Trés Bien Mon Ami), o Little Quail ganha por não soar derivativo de ninguém (nem de My Bloody Valentine, nem de Pixies). A fita é uma ótima desculpa para caçar os registros sonoros do rock candango do começo da década, que vão da fase rock do Pravda aos primórdios dos Raimundos, passando pelas excelentes, e esquecidas, Succulent Fly e Sunburst.


7) Killing Chainsaw (1992)
São os piracicabanos do KC que colocam o rock do interior de São Paulo no mapa da década de 90. O LP homônimo, lançado pela loja de discos Zoyd e sampleando o anime Akira na capa, é o ponto inicial de uma geração que deu ao Brasil instituições célebres do underground, como a casa noturna Hitchcock (em Santa Bárbara d’Oeste), o zine Broken Strings, o festival Juntatribo, a rádio Muda e o estúdio Arenna (todos estes em Campinas), além de bandas que iam do punk pop do No Class ao samba-noise do Linguachula e o industrial nerd dos Concreteness. Além de iniciar a fase caipira do indie nacional, o Killing ainda se orgulhava de seu inglês brasileiro, com sotaque “tchu” em vez de “to” e sem brit-frescuras. O rock aqui é ligado na tomada e na distorção, de pai Sonic Youth e mãe J&MC.


8) Rotomusic de Liquidificapum – Pato Fu (1993)
O disco mais esquisito da gravadora mineira Cogumelo (que já contava com esquisitices como o disco sub-Red Hot do DeFalla ou o caos sônico do Holocausto) também é o disco de estréia do Kid Abelha dos anos 90. Estranho, não? Que nada. Estranho é ouvir a versão speed para “Sítio do Picapau Amarelo” ou um hino mosh baptchura cuja citação da Unimed levou o grupo a tocar no comercial do plano de saúde. E que tal o medley esquizofônico que batiza o disco, que cita, sem pudor, os Flintstones, Kiss, baião, funk metal e beats eletrônicos? Muito mais John do que Fernanda Takai, é o disco do trio mineiro que os fãs de Mike Patton mais gostam. Com razão.


9) Scrabby? – Pin Ups (1993)
Lançado pela Devil e produzido por João Gordo, o terceiro (ou segundo, se não contarmos o LP do projeto Gash) disco dos pais do indie 90 é também seu disco mais sombrio e pesado. Fora as referências inglesas, entra o lado mais caótico e, hm, “visceral” da banda. Gravado com sua formação clássica, é uma mistura de Funhouse (dos Stooges) com Berlin (do Bowie). É o ápice das guitarras de Zé Antônio. “Acho que esse foi o disco que mais teve briga no estúdio”, lembraria o vocalista Luís Gustavo anos depois”, eu nunca vi tanta gente chorando, berrando, a Alê chorando num canto, o Marquinhos no outro”.


10) Mod – Relespública (1993)
Curitiba tem a péssima reputação de não produzir registros sonoros à altura das apresentações ao vivo de suas bandas. Discos e fitas funcionam mais como “guias” sobre o que esperar de determinado grupo do que reproduções in vitro de suas performances instantâneas. Da mesma forma, a cidade não possui rock de laboratório, aquele feito para viver em estúdio. Talvez isto explique o paradoxo fundamental da capital do Paraná: quanto mais bandas a cidade produz, menos elas se destacam em nível nacional. O primeiro compacto da Relespública (ainda com o enfant terrible Daniel Fagundes, vocalista, morto aos 16 anos) pertence à primeira safra do indie rock da cidade, custeado pela gravadora Bloody que pertencia ao mesmo JR que é dono do lendário club 92 Degrees. Com três faixas (“Capaz de Tudo”, “Preciso Pensar” e “Quem é Que Entende o Mundo?”), o vinil fala mais do rock de Curitiba do que todas compilações lançadas em seu nome.


11) Nunca Mais Vai Passar o Que Eu Quero Ver – Doiseu Mimdoisema (1994)
A influência que a Graforréia Xilarmônica, uma das dissidências dos Cascavelettes, teve sobre o rock gaúcho é muito maior que o séquito de fãs que o grupo preserva até hoje. Graças ao improvável gosto musical de seus líderes, Frank Jorge e Marcelo Birck, despertou-se no pop riograndense o prazer em redescobrir a Jovem Guarda, encravada na memória genética do estado. Esta redescoberta trombou irresistivelmente com os prazeres de uma recém-descoberta paixão gaúcha, o experimentalismo no estúdio em tempos de gravação caseira. Diego Medina fez a fita para um amigo de farra, mas a contagiante “Epilético” pulou do som da sala de estar para as ondas do rádio e virou hit local instantâneo. Medina continuaria suas experiências pop no futuro (Grupo Musical Jerusalém, Video Hits, Senador Medinha), mas sem conseguir reencontrar a ingenuidade da primeira fita, que está para o rock gaúcho atual como Angel Dust, do Faith No More, está para o novo metal.


12) Uh-La-La – Dash (1995)
Antes de provocar suspiros com seu baixo Danelectro a bordo dos Autoramas (e ao lado do ex-Little Quail Gabriel Thomaz), Simone do Vale era a líder de um supergrupo indie carioca. Gritalhona e com jeito de moleque, ela era uma das guitarrista do grupo, ao lado de Diba Valadão (na outra guitarra), Formigão (que depois entrou para o Planet Hemp, no baixo) e Kadu (ex-Second Come, na bateria). O hit “Sexy Lenore” transformou a demo Sex and the College Girl num hit do underground do Rio e fez com que o grupo fosse sondado pela misteriosa gravadora Polvo, que lançou o único CD da banda, pra ninguém. Com a capa desenhada por David Mazzuchelli, o disco passou por uma série de empecilhos que o tornaram item de colecionador. O ano era 1995, as grandes gravadoras tinham dado as costas para o rock, as pequenas perdiam ilusões de vendagens altas e vários picaretas apareceram no meio da história. O disco do Dash é apenas um dos muitos exemplos de uma geração pega com as calças na mão.


13) 100 Km c/ 1 Sapato – Lacertae (1995)
Ao mesmo tempo, o Lacertae, no Sergipe, abria uma em muitas possibilidades. Depois da seca de 1995, o mercado independente passou por uma brusca horizontalização, e sua pluralidade tornava-se sua principal qualidade. Assim, bandas de lugares sem tradição passavam a ganhar espaço no cenário, quebrando o eixo Rio-SP-BH-Brasília-PoA-Recife que já havia quebrado o RJ-SP original no começo da década. A cena começa a fragmentar-se não apenas em lugares diferentes (cidades como Goiânia, Londrina, Salvador, Fortaleza, Florianópolis, Vitória e Maceió reivindicam na marra seu próprio espaço, nos anos seguintes) mas em gêneros improváveis. Se a MTV e o Sepultura criaram um hiato noise/guitar/heavy com bandas cantando em inglês e tentando, sem sorte, o mercado exterior, a fita de estréia do Lacertae é o elo perdido entre o pop dos anos 90 e o experimentalismo dos dias do Vzyadoq Moe. Hendrix, discursos concretos e uma bateria com berimbau também mostravam que o Nordeste estava em plena ebulição artística depois do mangue beat.


14) Carbônicos – The Charts (1996)
Com a fragmentação da cena independente, São Paulo entrou numa onda retrô semelhante à gaúcha, disposta a resgatar valores sessentistas a um pop perdido entre a rádio e o anonimato. Antecipando a onda kitsch que veio com Austin Powers e o box-set do disco Nuggets, a cena paulistana passou por uma estilização visual e sonora que mais tarde seria referida, de forma irônica, como a cena “churly”. Os responsáveis pela popularização desta nova fase seria o grupo comandado por Sandro Garcia, que teve seu único disco lançado pela loja Suck My Discs dos jornalistas/músicos Alex Antunes e Celso Pucci (outra ponte dos anos 90 com o cult rock dos 80). Garcia, dono do famoso estúdio Quadrophenia, mais tarde fundaria o Momento 68 com o vocalista da banda gaúcha Lovecraft, Plato Divorack, selando assim a paixão de São Paulo e Porto Alegre pelos anos 60. (Plato aliás é a grande ausência desta lista, talvez por nenhum disco sintetizar toda a complexidade do artista).


15) Learn Alone Or Read The User’s Manual – Sleepwalkers (1996)
Aqui vamos ter motivos de sobra para reclamações. Afinal, muitos vão falar dos tempos do baterista Farmácia ou da clássica Sick Brain in Sue’s Coffee, gravada um ano antes, quando muitos sequer reconhecerão a presença da banda. O fato é que os Sleepwalkers foram a melhor banda de indie rock, em todos os sentidos, que o Brasil já teve, deixando para trás concorrentes de peso como os goianos Grape Storms, a carioca PELVs e o Grenade de Londrina. A sonoridade lo-fi, o tratamento de guitarras, o senso melódico, os refrões, o apelo pop – as qualidades do grupo catarinense podem encher parágrafos e mais parágrafos. Mas além de sua qualidade, sua importância se dá por tirar o pop catarina da vibração riponga de bandas como Phunky Buddha e Dazaranhas. Depois deles, vieram o Feedback Club (da ex-sleepwalker Sabrina), o Superbug, os Pistoleiros, o Pipodélica e as gravadoras Low Tech e Migué Records, dando força à cena ilhéu de Floripa.


16) Baladas Sangrentas – Wander Wildner (1997)
Luminar do punk brasileiro para as massas dos anos 80, o ex-vocalista dos Replicantes seguiu os passos da primeira safra dos anos 90 (comprada pelas majors) e o moldou para o underground. Como os Raimundos tinham o forró, o Planet Hemp tinha a maconha e o mangue beat, os caranguejos; Wander inventou uma máscara para facilitar sua absorção pelo mercado – e com o rótulo “punk-brega” vendeu-se para uma nova geração ao mesmo tempo em que amadurecia sua personalidade pública. Mas, mais importante, a carreira solo do velho WW era uma prova cabal que o rock independente pouco tem a ver com juventude ou faixa etária.


17) Menorme – Zumbi do Mato (1997)
O Zumbi do Mato é o som que Fausto Fawcett e Arrigo (ou Paulo) Barnabé fariam juntos se tivessem alguma afinidade. Mas, mais do que isso, é o ponto de convergência de diversos aspectos do pop carioca, representados por diversas instituições. Há o humor doentio do Gangrena Gasosa, a explosão cênica de Piu-Piu & Sua Banda, a podreira das primeiras fitas do Pólux, as gravadoras Tamborete (do jason Leonardo Panço) e Qualé Maluco (dos planet hemp B-Negão e Formigão), a repetição do Stellar, o choque de Rogério Skylab e o som metal da segunda vinda do Second Come. Além disso, o grupo continua o legado experimental retomado pelo Lacertae que resultou na safra de vanguarda da virada do século, com nomes como Objeto Amarelo, os Jersssons (São Paulo), Os Legais (SC) e Vermes do Limbo (Londrina).


18) A Sétima Efervescência – Júpiter Maçã (1998)
O disco de estréia do ex-cascavelette Flávio Basso é um passo adiante nos conceitos vendidos pelos Charts e por Wander Wildner. Rock adulto, retrô e psicodélico, A Sétima Efervescência sagrava a maturidade da mesma geração que havia tomado a porta-na-cara das gravadoras depois da efervescência do biênio 93/94 e a independência do formato perseguido pelas gravadoras, sem deixar de soar pop, brasileiro e cantando em português e inglês. É o primeiro blip no radar de um mercado que viria, em menos de um ano, a galinha de ouros do trio sertanejo-axé-pagode começar a dar com os burros n’água.


19) Chora – Los Hermanos (1999)
A segunda fita do quinteto Los Hermanos escancarava um pop estritamente radiofônico que foi forjado longe do universo do mercado fonográfico. O grupo liderado por Marcelo Camelo era a continuação do trabalho de uma geração de bandas cariocas que misturavam ska, funk, reggae e samba (nomes como Los Djangos, Acabou La Tequila e, mais tarde, Pedro Luís & A Parede). Mas o grupo ia além e se alinhava ao ecletismo chique de bandas de sua geração, como 4-Track Valsa, Vibrossensores, Vulgue Tostoi, entre outros. Fora os maneirismos apaixonados (que levaram a banda receber rótulos como romanticore e pop brega), a fita mostrava que as possibilidades cogitadas por Júpiter Maçã poderiam ser exploradas a fundo, tanto artística quanto comercialmente. Mas o mercado, acostumado com seu próprio toque de Midas, comprou a banda e forçou “Anna Júlia” a fazer sucesso, overdosando o público do que poderia se tornar os Paralamas do século 21 (e ainda pode, apesar de tudo).


20) Astromato (1999)
Continuação dos experimentos noise e industrial da época do Waterball (92-95), o Astromato era filho direto do Weed, banda de pop guitarreiro britânico que, brincando com as palavras, passou a compor em português e se deu bem. Sua primeira fita era mais um degrau na escalada que o indie brasileiro dava rumo à sua auto-suficiência artística. Se gaúchos e cariocas ajudavam o rock a perder o jeito de moleque, os campineiros explicavam que algumas qualidades (como sensibilidade e timidez) não pertenciam à adolescência. Além disso, a dupla de guitarras Armando e Pedro tramavam texturas sônicas à moda das bandas inglesas que tanto influenciaram o indie no começo dos anos 90 (e que ainda repercutiam, graças a bandas como os mineiros Vellocet, o carioca Cigarettes e os catarinenses Madeixas). Aos poucos, o ciclo vai se fechando.


21) De Luxe 2000 – Thee Butchers’ Orchestra (1999)
Cru e direto, o TBO é a melhor banda de rock’n’roll brasileira na ativa e sua existência se deve à dissidência garageira que rompeu com o indie no meio dos anos 90. Seu núcleo central era o trio da gravadora Ordinary (a produtora Deborah Cassano, seu marido Marco Butcher, ex-Pin Ups, e o guitarrista e produtor Adriano Cintra), que, além dos Butchers’ foi responsável pelo lançamento de bandas como Ultrasom (de Adriano), Red Meat, Spots, Grenade, entre outras. Mais do que agitar o underground com duas guitarras e uma bateria, o Butchers’ está ligado à fase de ouro do indie anos 90, quando o rock brasileiro começou a conversar com os gringos, sem passar pelos veículos oficiais.


22) It’s An Out of Body Experience – Grenade (1999)
O Grenade era o próximo patamar. Fruto dos experimentos lo-fi do ex-Killing Chainsaw Rodrigo Guedes, o grupo nascia em Londrina e logo se tornava um dos maiores nomes do indie nacional. A repercussão se dava graças à sensibilidade de Rodrigo, pai de riffs memoráveis, melodias pop ao extremo e pirações em estúdio. O som ia do rock clássico ao hardcore, passando por folk e indie rock. Lançado no exterior, Out of Body Experience poderia é a conclusão lógica do longo passeio que o rock independente fez durante a década de 90.


23) Brincando de Deus (2000)
O terceiro disco destes baianos deveria ter o título que Experience, do Grenade, levou. Afinal, seria lançado um ano antes e produzido por Dave Friedmann (Flaming Lips, Mercury Rev, Mogwai) caso todo seu equipamento e pré-produções não fossem perdidos num incêndio. O grupo se refez e, ao lado do talentoso produtor e tecladista André T. (responsável pela sonoridade de novos baianos como Rebeca Matta e a banda Crac!), gravou seu álbum definitivo, imbatível. Um disco que poderia ser lançado no mercado exterior sem dificuldades e que, apesar da anglofilia, é essencialmente brasileiro.


24) Peninsula – PELVs (2000)
Completando dez anos de banda e dez anos do selo carioca Midsummer Madness, a PELVs faz um disco igualmente robusto como o do Brincando de Deus, mas cheio de ganchos pop e melódicos. Uma obra-prima do indie nacional, Peninsula soa como todos os independentes querem soar: profissa, autêntico, despreocupado e livre, como se o mercado de discos brasileiro permitisse isto. Se ele não permite, a deixa fica para o indie.


25) O Manifesto da Arte Periférica – Wado (2001)
Além de coroar a recente produção de Maceió (a saber, Varnan, Mopho e Sonic Junior), o disco de estréia do ex-Ball Oswaldo Schlickmann é o auge da produção independente brasileira dos últimos 20 anos. Tem todas as qualidades dos discos citados nesta lista, além de falar em português, compor letras certeiras e experimentar à vontade no estúdio. Se chegamos até aqui com este nível, daqui pra frente é só crescer.

Não lembro pra quem eu escrevi esse texto… Acho que foi pra Zero.