Imagine uma festa

, por Alexandre Matias

Outro texto velho, que eu resgatei da edição 224 do Cardosonline. A data é 17 de dezembro do ano 2000.

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Imagine uma festa. Uma casa espetacular, de frente para um lago imenso, umedecendo o calor de uma noite de verão. Iluminação discreta e eficiente – lá fora, tochas fazem o caminho ao redor do lago; dentro, pequenos spots colorem as esquinas dos seis ambientes da casa. Na entrada, uma banda instrumental recepciona os convivas com versões supimpas para sucessos da Jovem Guarda e do samba rock. O hall é grande, é o ambiente mais iluminado (com cores pastéis) e está lotado – o som da banda se confunde com o bater dos copos, a falação, as risadas. As pessoas se circulam passando umas pelas outras, enquanto alguns casais se encostam nos três sofás de costas para o bar. “Dá uma passeada antes de escolher um lugar pra ficar”, recomenda um cara que você não lembra de onde conhece, mas sabe que é gente boa. Então tá. Da entrada, cinco opções: ou seguir um corredor à direita que dá nos fundos da casa, ou subir uma escada à esquerda que vai para o segundo andar, ou descer uma escada do lado da porta do corredor que vai para o porão, ou sair pela porta à direita da casa ou continuar indo reto, entrando pela porta principal entre o hall e o salão principal.

Vamos seguindo o fluxo – em frente. Estamos num enorme salão, teto alto – isso aqui devia ter dois andares e derrubaram o segundo para ficar dessa altura. É isso aí, olha ali a escada da esquerda, com um segundo lance para o terceiro andar. A iluminação é de rave, mas o som é bem diferente – cinco carinhas se acabando num palco baixo numa mistura pesada de funk e jazz que se perde num improviso tribal instrumental. Dois baixos – e olha só o que aquele sujeito tá fazendo com o instrumento! Todo mundo está completamente hipnotizado pelo som, a esfregação passou para um nível ainda mais baixo – mas todos se tratam com respeito e bom humor. Lá de cima, um sujeito de barba branca distribui baseados, pílulas, cartelas e tíquetes vale-bebida. No meio da festa, uma enorme piscina cercada por uma parede de vidro – quem quiser pular, que suba para o terraço. As pessoas ficam só assistindo os malucos se jogarem do alto. A cada dois passos, você vê um conhecido, um velho chapa, um daqueles caras que você sempre vê à noite, um caso antigo, a namorada do cara daquela banda. Um dos patrocinadores garantiu uma fonte de drink energético – é só chegar e beber. Outro colocou uma dúzia de loiraças distribuindo garrafinhas de uísque. Tá todo mundo louco – oba.

No fundo do salão principal, outra escada vai para o porão. Depois de uns três lances de pedra para baixo – cada degrau nos afastando mais do som do térreo -, chegamos num hall menor, com a entrada supervisionada por dois porteiros gigantescos. Educadamente, eles abrem as enormes portas de madeira maciça e nos deixam passar para o inferninho clubber, dividido em duas pistas – à direita é a pista de house, do outro lado a drum’n’bass. O primeiro lado, parece um clipe do Right Said Fred, com fortões de todos os tipos se bolinando no ritmo. Claro que não é só isso – há aquelas mulheres que adoram gays e até casais que se acham moderninhos (olha aqueles dois coroas ali, tão claramente se divertindo). A outra pista é menos homogênea e todo tipo de gente se espreme enquanto o DJ cutuca os graves do jungle com baterias de escolas de samba ou os tambores de blocos afro. De vez em quando, o cara quebra um pouco a porrada e coloca um lado mais jazzy, com ênfase na bossa nova, deixando escapar frases conhecidas do imaginário musical popular brasileiro entre os telecotecos dos breakbeats. No meio das duas pistas, a piscina do andar superior, ainda com as paredes de vidro e os malucos do terraço explodindo silenciosamente quando caem na água – muitos sem noção do que vão ver debaixo d’água.

Ao fundo da pista de drum’n’bass, quase do lado do DJ, uma placa aponta – “venha descansar aqui”, mostrando a entrada para um corredor escuro. Ao seu lado, uma escada trazia gente de um andar acima que entrava direto na porta do descanso, como se quisesse repetir a dose. Não custa nada, vamos lá. Andando pelo corredor – uns vinte metros no escuro, com umas três curvas, dá pra ficar meio puto -, chegamos a uma parede final que, tateando-a, descobrimos ser mais larga que o próprio corredor – ou seja, as saídas ficam nas laterais do corredor, só que no sentido contrário. Saímos por uma cortina preta de veludo, daquelas de cinema, e vamos parar num outro corredor, este branco, curvo e bem mais claro, onde poltronas duplas passam desfilando por uma esteira daquelas de aeroporto. “Tão chamando a gente de mala”, brinca um japonês no grupo logo atrás. Acima, um telão mostra pessoas desavisadas escorregando dentro de uma piscina cheia de bolinhas de isopor, saudada por gritos histéricos de drag queens e transformistas. Só pra meter medo. Mas vamos nos acomodando e entrando no tal “passeio de descanso”.

Que parece um parque de diversões com um metrô musical e um home-theater. Vamos andando num corredor cheio de curvas, que nos leva por palcos pequenos, onde bandas de diferentes formatos e estilos tocam músicas “para descansar”. Bandas de indie rock reverenciando Cure, Smiths e Teenage Fanclub, duplas de bossa nova, uma roda de samba, um quarteto de jazz – tem até uma sala com um pianista cheia de livros e jornais. Em cada pequeno palco, uma voz anunciava o conjunto, enquanto a esteira parava e uma placa convidava os passageiros a descer e apreciar a apresentação mais de perto. Em todo show, pelo menos umas dez pessoas se estiravam em sofás, cadeiras de bar e tapetes, descansando com um som mais sossegado. Uma vez fora da esteira, avisa a voz, o passageiro não pode retornar, tendo que sair por uma escada ao fundo de cada um dos pequenos pubs, subindo para um ambiente fechado do lado esquerdo da casa. Lá em cima, uma banda de trip hop à brasileira faz seu show para um monte de gente espalhada em sofás e pelo chão, no canto da festa dedicado realmente ao descanso. Pelo salão, uns três ou quatro equipamentos de áudio e vídeo passam clipes legais de bandas queridinhas, filmes do Kubrick, uns neo-realismo italiano, uns Buñuel…

Cada poltrona daquela esteira tem duas caixas de som de cada lado, fazendo com que o som ouvido vindo do palco seja opcional. Ao final do passeio, uma banda de dixieland irrompe as caixas de som e convida para um baile de swing, enquanto a porta por onde as poltronas continuam seguindo avisam para você entrar por sua conta e risco. Tá no inferno, abraça o capeta. Depois de mais de quinze minutos andando com paradas misteriosas por corredores curvos iluminados por diferentes cores – e sem som -, chegamos numa sala pequena decorada como uma fornalha siderúrgica, cheia de efeitos imitando metal derretido e uns caras desentortando barras vermelhas de ferro a marteladas. Quando as poltronas páram, os caras páram de trabalhar, vão em sua direção e pedem numa boa para que você os acompanhe – e não tem essa de não querer ir, não. É tudo encenação, é tudo seguro – mas que raios esses caras estão fazendo? Eles chegam no que deveria ser o forno principal, apertam um botão, uma luz vermelha se acende, uma porta se abre, um deles pede para que você entre, você entra, ele fecha a porta (e você fica sozinho), as luzes se apagam, o chão desaparece e você começa a escorregar, até cair numa piscina de bolinhas de isopor pequeninhas, daquelas que grudam na roupa, no meio da pista de house. “Uuuh!”, grita um monte de homem com jeito de mulher. Se você correr, quem sabe vê o próprio vídeo filmado na entrada da esteira.

Se você tivesse descido na pista de swing – Glenn Miller, Tommy Dorsey e Squirrel Nut Zippers comendo solto no repertório do DJ que reveza a trilha sonora com a própria big band do baile – e subido para o andar de cima (o do trip hop), teria duas opções de lá: ou voltava para o salão principal, passando por uma sala intermediária onde uma dupla de DJs tocava hits disco, ou subia para o terraço da festa. Lá, uma banda de rock à moda antiga, revive hits desconhecidos com gás, energia e vontade de botar tudo pra fora. O clima é de festa de faculdade, cerveja passando de mão em mão, mesas de totó e pingue-pongue, todo mundo gritando, aquela fumaceira para uns doce para uns azeda, gente virando bebida na garrafa na própria boca ou na cabeça dos outros. O céu, intacto, está estrelado e a lua cresce à medida que a noite passa. No meio do terraço, uma estufa de vidro. Quer dizer, não é uma estufa – é a tal piscina, coberta e fechada com paredes de vidro – só dá pra pular do teto e em queda livre, sem correr o risco de se espatifar nas paredes laterais. O povo sobe numa espécie de trampolim que leva até o meio do teto da tal estufa e, por uma cabina cujo chão se abre quando menos se espera, as pessoas vão caindo dentro da piscina. Sobe e pula quem quer e chega uma hora na festa que tá todo mundo querendo.

São três horas da manhã e a festa está em polvorosa – lá de cima dá pra ver. Me dependuro na escada para ver: na frente da casa, muita gente querendo entrar e entrando, enquanto um tanto de gente prefere ficar na entrada, curtindo as apresentações de maracatu, capoeira e outros percussionistas. À direita, o tal lounge trip hop, todo mundo estirado no chão de tatame, enquanto pessoas saem de portas na parede, subindo dos pequenos palcos espalhados pelo curso do trem-das-poltronas. Atrás, uma enorme tenda iluminada apenas por dentro tem um aspecto de disco voador feito de pano, ainda mais quando ouvimos o som que sai de lá – indistingüível, daqui de cima. À esquerda, um imenso churrasco a céu aberto, com uma banda de samba esquentando a galera. Vamos lá.

Churrascão, coisa fina. Lotadaço, mas todo mundo com lugar pra sentar. Garçons passando com pedaços inteiros de carne e bandejas repletas de bebidas. Todo mundo sendo servido numa boa, pratos inteiro de carne e um gigantesco bifê circular cheio de saladas e outros petiscos (queijos, molhos, docinhos, sobremesas, frutinhas… e um monte de maconheiro ao redor, pegando as coisas com a mão) e no final do lugar, uma banda de samba tocando só clássico e a galera se aglomerando na frente feito um enorme carnaval. Parte do pessoal que está sambando já tirou peças de roupa e o clima vai se tornando cada vez mais hedonista. Coisa de louco.

Saindo para o quintal da casa, nos dirigimos à tal tenda gigantesca, que é dividida em dois ambientes. O primeiro é completamente iluminado e holofotes apontam para buracos na lona, que dão o aspecto intergalático à tenda. Lá, uma banda de technopop canta velhos sucessos new wave e pós-punk, enquanto dezenas de moleques se enfileiram atrás de máquinas de fliperama. No final da lona clara, duas enormes portas nos levam à lona escura, ainda maior que a primeira. No chão, uma espécie de teatro de arena grego, coberto por uma lona que dá ao lugar o aspecto de um circo. Sem iluminação, o lugar só conta com a luz da lua, que entra por um enorme buraco em cima do palco. Na platéia, as pessoas descobrem a utilidade das lanternas que lhes deram na entrada – todas de luz vermelha ou azul. No palco, só música hermética e indecifrável: free funk, krautrock, exercícios de microfonia, improvisos acústicos, eletrônica alien, idiomas recém-descobertos. A saída acontece pela mesma porta da entrada, fazendo nos voltar à tenda das diversões eletrônicas – o que nos dá uma sensação de fim da hipocrisia em torno da salvação chamada de tecnologia.

Voltando à festa, podemos voltar ao churrasco ou ao salão principal. De volta ao começo da festa, um grupo de rap revisita velhos grooves de funk clássico para justificar o calor interior. Pela festa, um monte de gente conhecida, todos se divertindo por todos os cantos. O velhinho aparece na sacada e começa a jogar drogas de novo e a galera se acotovela para pegar unzinho qualquer coisa. O relógio marca cinco e meia, o sol já está dando sinal de vida, mas a impressão é que estamos dias nesta festa. Todo mundo só quer se divertir. Eu também. Vou lá pra cima, mergulhar na piscina. Você não
vem?

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O rock é um coma. Estamos saindo do coma. À medida que os anos 50 passavam, os Estados Unidos conseguiram crescer cada vez mais sua influência no mundo ocidental, com um truque simples: dê conforto às pessoas e elas te aplaudirão. Passamos por uma subseqüente automatização comportamental – eletrodomésticos substituindo atividades caseiras e diversões mundanas sendo vertidas em produto (discos, filmes, parques de diversão, celebridades) para serem consumidos em altares gigantescos ao deus grana (pense nos conceitos de supermercado, shopping center, megastore, loja de departamentos e loja de conveniência para ver como estamos presos à tal religião). O rock talvez seja – não sei se a melhor – a mais divertida metáfora para tal dominação de consciência. Vendendo rebeldia da rua como se fosse um produto (brancos cantando como negros, sexo transformado em dança, insatisfação como regra), o capitalismo conseguiu convencer todo um pedaço do planeta que o rumo certo a ser tomado era aquele: americano, capitalista, anglo-saxão, protestante, frio e calculista. Hoje estamos vendo o que é que aconteceu depois da nossa subserviência. O próprio rock vem nos mostrar isso, colocando cada vez mais em suas letras um nível de contestação não esperado pela indústria. Do Manu Chao ao Rage Against the Machine, de Jello Biafra aos Beastie Boys, do Mundo Livre S/A ao Rappa – parte representativa do atual rock mundial já percebeu que a América é um entrave no caminho de um progresso mundial e estão todos metendo a boca enquanto podem. Mas isso não acontece só na música – a produção de arte e o mercado de comunicação estão atualmente impregnados de uma pressão subversiva que pode ser comparada à que o mundo viveu em períodos como as brigas por direitos civis (e os assassinatos dos Kennedy e de Martin Luther King), a Guerra do Vietnã, crise do petróleo no começo dos anos 70, a Guerra Fria, o Guerra nas Estrelas (do Reagan, não o do Lucas) e a Guerra do Golfo. Todo mundo quer saber das verdades veladas, ditas nas entrelinhas em jargão jurídico ou economista para despistar suas verdadeiras intenções. Qualquer suspeita é considerada e paranóia é precaução. A diferença é que justamente agora vivemos num período em que as artes e a mídia conversam abertamente sobre este assunto. Não é mais tabu falar em segredos políticos, vamos dar nome aos bois. Sabemos que o coma mental que o planeta foi submetido no último meio século foi induzido, que as pessoas se tornaram improdutivas e letárgicas por acomodação, disfarçada como conforto. E veja como cada vez mais fazemos menos esforços físicos – até hoje. Isso nos torna fracos em todos os aspectos, cada vez mais nas mãos de poucos milionários que decidiram bancar estes confortos em larga escala justamente para manipular seus compradores. É a verdade que vai nos tirar do coma consumista representado pelo rock, vem aí uma década crua, sem respeito para aqueles que fingem. Vão falar grosso, vai ser dolorido – mas algumas boas verdades virão à tona. E, com isso, sairemos do coma.

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E pra completar, imagine como é sair de um coma. Penso eu que deve algo parecido com morrer, um excesso de energia vital que completa um pequeno espaço de tempo, fazendo com que confundamos sensações com fatos históricos. E é isso que vai ser esse Rock in Rio de agora, a saída do coma. Sete dias, convenhamos, são segundos na contagem histórica e vamos assistir a um desfile de artistas decadentes tocando músicas novas ou de artistas novos tocando músicas decadentes. Os melhores shows do festival, pode ter certeza, vão cheirar a passado – seja nas referências musicais ou no próprio repertório. Mas o que vai acontecer é que vamos assistir a um mega espetáculo de rock – “o maior festival de todos os tempos”, quer o inconsciente coletivo e o consciente marketeiro – e nada vai acontecer. Tudo vai continuar na mesma. Por um mundo melhor, o cacete. É tudo pose, é tudo mentira. O rock é uma mentira. Isso vai ser dito aos brasileiros de uma forma tão convincente, que é capaz que detone toda uma lógica de reaquecimento da auto-estima nacional. O problema é que sempre tem quem queira tomar vantagem do assunto e todo um processo de reavaliação da condição brasileira pelo próprio povo pode ser detonado com algumas telenovelas, outras campanhas de marketing e uns dois filmes indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro – fácil, fácil. Ainda mais que quem perde poder é justamente o subproduto da geração Cinema Novo/MPB (e não estamos falando só de cinema e música, os dois servem apenas como rótulo ideológico – os órfãos da ditadura, melhor ser mais direto), que manteve-se supremo e imponente todos estes anos, com um discurso mais afiado que a prática, sempre com uma frase feita para justificar um peleguismo, uma tendência reacionária fake que “endireita” pensamentos revolucionários com afagos ao ego e ao bolso simultâneos. É percebida no ar uma sensação de “já deu” – taxistas e cobradores de ônibus reclamam como a música brasileira ta sem graça, poderes oligárquicos em diferentes áreas (administração pública, arte, mídia, empresariado) estão sendo colocados em discussão, o povo envelhecendo rapidamente com pouca perspectiva de melhora de vida. Mas ao mesmo tempo, observa-se não só os brasileiros retomando ideais nacionais por conta própria (um movimento que começa na universidade, é empurrado pela mídia para a classe média e descamba, tardiamente e de forma quase imperceptível, no povo), como um interesse exterior pela cultura brasileira. Está mais do que na hora de começarmos a botar uma fé neste país e fazer algo por isso.

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Aí me emputece quando pego o livro do Olavo de Carvalho, viro a contracapa e vejo um monte de luminares do pensamento brasileiro (de Carlos Heitor Cony a Roberto Campos) elogiando o pensamento do autor e tachando-o “o maior filósofo do Brasil”. Filosofia no Brasil? Me desculpe, mas tá no país errado. É muito fácil ficar trovejando contra tudo e todos filtrando um reacionarismo com um embasamento primeiro-mundista que é imposto (como quase tudo que é europeu) como saber universal. Recolha-se à sua biblioteca, à internet e à TV a cabo para tentar descobrir intelectualmente o Brasil e ao mesmo tempo você está perdendo o Brasil. Não há mídia que retrate este país tão bem quanto ele mesmo, nossa sociedade não é de fácil digestão. Para entender o Brasil, é preciso estar na rua, sentir o povo, conversar com as pessoas e ver como elas são. Não há teórico que entenda o Brasil se não houver prática. Por isso a universidade parece um mundo avesso à realidade por aqui, afinal não há intercâmbio da vida universitária com a vida prática. Isso é claramente descendente do pensamento europeu, que trancafia cultura e conhecimento em museus e bibliotecas. Mas há um modo de furar o bloqueio.

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“E aí Matias, e o rock independente brasileiro?”. Passei pelo menos dois anos discursando sobre os altos e baixos da cena independente nacional no Trabalho Sujo (que completaria seis anos dia 22 passado) e falando sobre a possibilidade da cena acontecer. O problema é que “acontecer” é um verbo muito vago e propenso a múltiplas interpretações. No largo território entre o underground do mainstream e o mainstream do underground, há mais adversidades que qualquer vã filosofia possa supor. Quando falava da cena acontecer, significava que ela pudesse andar com as próprias pernas, ser um fim em si mesma, sem esperar redenções alheias. Não, ninguém vai descobrir a sua banda no exterior e você não vai vender nem dez mil discos – contente-se em fazer a música do jeito que você gosta, sem interferência. Esta é a lição do independente. Faça o que você estiver a fim de fazer. Na faixa de transição entre mercado e independência, porém, existe uma série de bandas disposta a assumir compromissos com vendas de disco e execução no rádio – prontas para a indústria. O que acontece é que normalmente os objetivos de umas bandas começam a se misturar com o das outras e o ego fala mais alto e a indústria fisga o fracasso do artista justamente por aí. Veja os principais nomes da atual cena independente brasileira e suas biografias têm um determinado flerte com a indústria, cujo desprazer é força-motriz para que estes continuem fazendo o que querem fora do mercadão. O que aconteceu neste ano 2000 foi uma espécie de replay de 1995, quando todas as bandas da geração Juntatribo acharam que bastava gravar o disco que o sucesso bateria à porta. A expectativa da “volta do rock” ao rádio fez com que as próprias gravadoras segurassem um pouco a onda para não serem pegas com as calças na mão como em 1993 (no susto “alternativo”). Resultado: engavetaram os nomes mais proeminentes e pop da cena (Autoramas, Relespública, Bidê ou Balde, Vídeo Hits – até o Los Hermanos, quando começaram a mostrar seu lado rock em “Quem Sabe”), em lançamentos sem entusiasmo para segurar o mercado e tentar um último tiro de misericórdia: as boy-bands. Twister e KLB são projetos fadados ao fracasso coletivo, sabemos, e lançamento de novas celebridades no mercado. Mas ao mesmo tempo, a aposta parece ser a última cartada da indústria antes de sua completa indefinição. Pagode, axé e sertanejo se tornaram um amálgama indissociável. A música romântica perdeu-se em sua própria sacarina, cantando idílios e acalentos difíceis de sustentar. Rock dá trabalho pra gravadora, artista é exigente, quer fazer tudo por conta própria, mete a boca pela imprensa, se precisa… Por isso, o rock não vingou no mercado como esperávamos no começo do ano. Este estanque atravancou o processo que faria com que o rock independente começasse a funcionar como estoque e ponto de referência para o mainstream vir colher novas bandas. Sem a debandada de uma safra de bandas para a primeira divisão, as categorias inferiores ficaram saturadas e estáticas, esperando algo acontecer. E o que aconteceu com a cena independente de rock brasileiro no ano 2000? Nada – não foi pra frente, nem pra trás.

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Daí o termo “Ano Zero” – hehe.

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Junta isso com o desespero da Paula Martini, o primeiro ser humano a manifestar publicamente que lê essa coluna, que me escreveu desesperada porque no último Tudo ou Nada eu apresentava a equação “1999 + 2000 + 2001 = 2000”. Estava me referindo justamente à esta estagnação criativa no ano 2000. Um impasse. Mas aí você pára para pensar e vê que o triênio resumido na equação está tomando conta de todas as áreas. Da crise na Palestina à eleição norte-americana, das Olimpíadas ao Festival de MPB da Globo, do disco novo do Radiohead aos capítulos de Laços de Família – tudo está preso num impasse, sem se desenrolar, congelado na tensão de uma crise que não parece disposta a resolver-se sozinha. Mas ao mesmo tempo, não há atitude nem iniciativa, é preferível ficar na mesma do que tentar mudar alguma coisa. Graças a deus essa mentalidade parece estar se dissipando à medida que o ano 2000 acaba e o ano que vem pode ser marcado pela vontade de fazer, pela disposição para o trabalho e pelo rígido controle de qualidade. Talvez essa seja a grande lição de 2000: ficar esperando é o mesmo que não fazer nada.

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A Paula continuou a carta dela falando que alguém tinha dito que “o ano 2000 iria passar em três meses”. Exagero. Mas é certo que à medida em que você vive, os dias vão ficando mais curtos. É óbvio, basta seguir o raciocínio: quando você tem um dia de vida, a unidade “dia” (24 horas) é o equivalente à sua vida inteira; quando você completa dois dias, um “dia” equivale à metade da sua vida; no terceiro, um terço; e assim por diante… De modo que a única unidade de tempo imutável é a própria consciência temporal que vulgarmente chamamos de “vida”, esta célula imprecisa de medição que acaba sempre quando não podemos mais contar. Quer dizer, dias são tijolos de tempo que você aumenta a fração do muro da sua vida a cada dia que passa. Mas não são os dias que diminuem… É a sua vida que aumenta… E você nem percebe.

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Sim, é problema seu, se você não vir.