Abstinência digital

Bem boa a capa do Ilustríssima dessa semana, em que o compadre Cardoso vê-se obrigado a passar uma semana desconectado. Justo ele…

“Minha droga favorita sempre foi o e-mail. Não sei precisar quantos já escrevi no total, mas só de 2004 pra cá foram mais de 300 mil. Estimo que na época do “CardosOnline”, fanzine por e-mail (!) que editei entre 1998 e 2001, deve ter sido muito mais.

Eu passava de 8 a 10 horas por dia apenas lendo e escrevendo e-mails. A média caiu um pouco nos últimos anos, mas ainda hoje passo mais tempo lendo e respondendo e-mails do que fazendo qualquer outra coisa quando estou on-line. Até porque, no fundo, é como diz aquela gostosa canção cheia do groove sensual que exsuda dos muitos lábios de Janet Jackson: “You don’t know what you’ve got ‘till it’s gone” (algo como “você só sabe o que tem em mãos quando a coisa acaba”).

Uma semana sem internet. Tentei me lembrar das várias vezes em que isso devia ter me acontecido, mas não consegui. Muitos anos atrás, quando ainda existia uma separação bem visível entre os mundos on-line e off-line, era mais possível.

Internet só no computador, conexão discada, planos de horas (eu tinha 30 por mês). Atualmente, com internet sem limites no celular, no videogame, nos parques, restaurantes e até na geladeira, difícil é não estar conectado.

Quer dizer, difícil pra você. Pra mim beira o impossível.

A íntegra do texto segue no site da Folha e a foto que ilustra o post é a foto que o Cardoso tirou, via Instagram, da ilustração que o Laerte fez para seu texto – e que não sei porquê não está na versão online do caderno. Vacilo, ajeitem aê.

Haddad, o comunismo e o Rei Leão

O Teté (que o leitor do Trabalho Sujo já conhece como autor daquela tese sobre a ascensão do Emicida) escreveu para o Ilustríssima no fim de semana comentando como foi uma de suas aulas com o atual prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, nos tempos em que ele ainda era professor na USP:

Eu era terceiranista quando, em 1998, me matriculei na disciplina Seminários de Teoria Política Contemporânea, oferecida por Fernando Haddad. Já tinha sido aluno dele no ano anterior, quando começou a dar aulas na USP.

Logo vi que tinha entrado numa fria. O debate girava em torno do fim da URSS e dos discursos políticos que se tornavam hegemônicos. Estava na pauta a formulação de uma resposta à tese de Francis Fukuyama sobre o “fim da história”. Líamos Robert Kurz e outros cujos nomes não lembro, marxistas ou não. Não era a minha praia.

Frequentando o curso semana sim, semana não, revi a sinceridade de meus interesses por política. A verdade é que minha boina era sobretudo um elemento de estilo.

Guardo uma só lembrança das aulas: Haddad nos recomendando um filme. Não “O Encouraçado Potemkin” nem “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, mas “O Rei Leão”.

Quem não recorda a épica cena inicial? O dia rompendo nas savanas da África e os animais desfilando em harmonia pré-diluviana ao local onde o rei Mufasa apresentará o herdeiro do trono, o fofíssimo Simba. Tudo ao som da emocionante trilha, com os devidos ajustes étnicos, de Elton John.

Eu tinha visto a animação na estreia, em 1994 –aliás, ano em que o “príncipe da sociologia” foi eleito presidente do país–numa sala do shopping Iguatemi, em companhia de dinamarqueses com quem participava de um programa de intercâmbio. Não parecia algo que interessasse aos leitores de Kurz.

Ainda sem entender como Walt Disney e Elton John poderiam dividir a sala de aula com Trotsky e Rosa Luxemburgo, fiquei eletrizado com a proposta, que li em chave tropicalista. O professor explicou que assistira “O Rei Leão” com seus filhos, então crianças. Ao longo da sessão, tivera um “insight”: havia um discurso ideológico consistente e articulado costurando a narrativa do blockbuster. Uma reatualização da Guerra Fria.

O reino de Mufasa representaria o capitalismo, colorido, abundante e multicultural. O lema da canção “Hakuna Matata”, interpretada por Timão e Pumba, era uma variação do “Don’t Worry Be Happy” –uma ode à futilidade da sociedade de consumo. Do outro lado, depois do Cemitério dos Elefantes (onde Mufasa proibia o filho de ir), encontrava-se a cinzenta terra das hienas –o Bloco Oriental.

Slavoj Zizek tem citado “The Circle of Life”, canção-tema do filme, como algo que naturaliza a dominação capitalista: é normal, leões comem os outros animais.

Mas Haddad ouviu o galo cantar primeiro. Para ele, a cena mais emblemática era aquela em que o vilão Scar mobiliza o exército de hienas para anunciar seu plano: matar o rei Mufasa e seu filho Simba. Outro número musical: “Injustiças, farei com que parem: se preparem! Fiquem comigo, e jamais sentirão fome outra vez!”

Scar está no topo de uma pedra e, enquanto a horda de hienas desfila em fileiras fascistas, a “câmera” faz um travelling. O leão é visto em contraluz, tendo por trás uma lua crescente. Haddad não podia se conter: “Vejam com seus próprios olhos, não estou delirando: são a foice e o martelo da bandeira soviética”.

Muito bom, embora o ponto mais preciso seja a forma como um ditador golpista chega ao poder atiçando as hienas do fascismo (“fiquem comigo e jamais sentirão fome outra vez!”). Se a lua crescente atrás de Scar é mesmo a foice do comunismo, a interpretação está em aberto – mas não há dúvida do que as hienas (marchando como o exército nazista em O Triunfo da Vontade) representam. O vídeo com o trecho citado segue abaixo: