50 anos de Bringing it All Back Home do Bob Dylan hoje

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Há exatamente 50 anos Bob Dylan lançaria o disco que mudaria completamente sua carreira e inaguraria os anos 60 como nós os conhecemos hoje. Escrevi sobre o Bringing it All Back Home na Ilustrada deste domingo, mas o texto inteiro não coube no papel, por isso publico a íntegra abaixo:

Trazendo tudo de volta para casa
Há 50 anos Bob Dylan lançava o disco que mudou sua carreira e a história da música pop, além de inaugurar os anos 60

Bob Dylan entrou no estúdio da Columbia naquele dia 13 de janeiro de 1965 exatamente doze meses depois de mudar drasticamente sua carreira. Há um ano ele lançara o disco The Times They Are a-Changing e e seu encontro com os Beatles, seis meses depois, lhe obrigou a repensar seus próprios rumos. O resultado daqueles três dias de gravação seria um disco que mudaria completamente sua biografia e a história da música pop, além de inaugurar os anos 60 como o conhecemos hoje em dia – Bringing it All Back Home foi lançado há exatos 50 anos, no dia 22 de março de 1965.

No fim de 1963 Dylan começou a abandonar o personagem “gente humilde” com o qual conquistou a cena folk nova-iorquina, que lhe elegeu herdeiro de Woody Guthrie, o bardo folk americano que era o símbolo da música do povo oprimido dos EUA. Em vez de músicas contemplativas e resignadas, ele começara a apontar o dedo desafiadoramente para as autoridades, com músicas que começavam a capturar o inconsciente coletivo norte-americano após o assassinato de John Kennedy, como “Masters of War” e faixa que iria batizar seu terceiro disco, lançado no início do ano seguinte.

Aquele novo repertório mudara completamente a relação de Dylan com seus fãs, que passavam de admiradores a devotos. Em poucos meses ele era eleito voz de sua geração e aos poucos começou a ver que havia se metido em uma enrascada. Para fugir deste papel, deu mais uma guinada, desta vez para dentro, cantando canções de amor mais introspectivas e com uma banda, ainda acústica. A nova fase foi registrada no disco Another Side of Bob Dylan, lançado em agosto daquele ano, que foi suficiente para causar reclamações dos fãs. Eles mal sabiam o que viriam.

No final daquele agosto, no dia 28, Dylan encontrou John, Paul, George e Ringo num quarto do hotel Delmonico em Nova York, onde fumaram um baseado juntos, o primeiro dos Beatles. Os quatro de Liverpool haviam tomado os EUA de assalto, preenchendo o vácuo afetivo do assassinato de Kennedy com gritos, guitarras e muito ritmo. Aquela mudança de sonoridade afetou diretamente Dylan, que antes de tornar-se centro da cena folk nova-iorquina, havia sido filhote dos primeiros dias do rock’n’roll. “Quando ouvi Elvis pela primeira vez”, repetiu em várias entrevistas, “sabia que nunca iria trabalhar na vida e que ninnguém iria ser meu patrão.” Dylan foi líder de bandas de baile nos anos 50 – como Shadow Blasters e Elston Gunn & The Rock Boppers – e desistiu do rock quando Buddy Holly morreu. Mas o sucesso e a energia dos Beatles o reanimaram – sem contar que eles eram ingleses inspirados por música americana. Era hora de trazer aquela energia de volta pra casa.

E foi com essa disposição que entrou no estúdio nova-iorquino em 1965. Na mesa de comando, o produtor Tom Wilson, que havia trabalhado nos discos anteriores de Dylan, estava disposto a fotografar o que quer que Dylan trouxesse. E ele trouxe um calhamaço de canções completamente novas, que misturavam citações bíblicas, a história dos Estados Unidos e poesia francesa do final do século 19, empilhando citações de forma cínica, completamente distante do Dylan heróico do ano anterior.

O primeiro dia de gravação foi um aquecimento, em que Dylan testou formações e sonoridades. Colocou o guitarrista John Sebastian, que nunca havia tocado baixo, para assumir o instrumento, sentou-se ao piano na maior parte do dia, o novato Kenny Rankin para tocar guitarra elétrica, que também nunca havia feito. A torrente de palavras das canções era reflexo de uma viagem de carro pelos Estados Unidos de costa a costa, quando, no banco de trás do carro, Dylan ia datilografando poemas, letras de músicas e comentários aleatórios. As novas canções foram apresentadas por um Dylan sempre de terno preto e RayBan Wayfarer, rindo e sorrindo muito mais do que o normal.

Nos dois dias seguintes, gravou o disco, composto quase inteiro por clássicos, em pouquíssimos takes. Seu lado A, elétrico, começa com a avassaladora “Subterranean Homesick Blues” confundindo completamente os fãs ao misturar política, frases de efeito e a paranoia da guerra fria. Na mesma linha, a cáustica “Maggie’s Farm” e a épica “Bob Dylan’s 115th Dream” (que é interrompida logo no início por uma crise de riso pois a banda não conseguiu acompanhar Dylan) mostravam que a eletricidade e histórias criadas a partir do imaginário norte-americano eram um caminho sem volta.

No lado B, acústico, o disco trazia músicas que mostravam que Dylan, mesmo só ao violão, estava indo muito além do folk, graças a canções como a enigmática “Mr. Tambourine Man” e as cruas “Garden of Eden” e “It’s Alright Ma (I’m Only Bleeding)”. O disco terminava com uma de suas canções mais emblemáticas, “It’s All Over Now, Baby Blue”, que antes de repetir seu título pela última vez, desafia o ouvinte ao mostrar que as regras haviam mudado: “Strike another match, go start anew” – “risque outro fósforo (ou comece mais uma briga), vamos recomeçar tudo de novo.”

Mal sabiam – Dylan e fãs – como tudo iria mudar no decorrer de 1965. “Mr. Tambourine Man” iria parar no topo da parada dois meses depois graças a uma versão dos Byrds que inaugurava o folk rock. Os Rolling Stones gravariam “Satisfaction” inspirados pelo pedal fuzz que Dylan usara em “Subterranean Homesick Blues”. O próprio Dylan gravaria sua canção-símbolo – “Like a Rolling Stone” – em menos de um semestre, além de fechar a tríade de discos que o consagrou (Highway 61 Revisited e Blonde on Blonde) em pouco mais de um ano. O rock começava a deixar de ser visto como música de adolescente e os anos 60 começavam a mudar inesperadamente. E está tudo ali em Bringing it All Back Home.

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Dentro da capa

  1. A criação da cena da capa do disco de 1965 é considerada transgressora no mercado fonográfico por tratar-se como parte da criação artística e não como rótulo de um produto à venda. Sem esta mudança, capas de clássicos como Sgt. Pepper’s e Dark Side of the Moon seriam bem diferentes.
  2. Foi o primeiro disco de Bob Dylan sem nomes de canções na capa. A gravadora Columbia não gostou da mudança, mas o empresário de Dylan, Albert Grossman, foi categórico e não quis negociar.
  3. É a primeira vez em que Dylan não posa como um personagem do povo, usando roupas de popstar.
  4. Também é o primeiro disco em que Dylan olha para a câmera na foto da capa, dando origem a um padrão reconhecido por seus fãs: que quando Dylan reconhece a grandiosidade de seus discos, ele revela isso olhando para o ouvinte em sua capa.
  5. A mulher que olha desafiadoramente para a capa é Sarah Grossman, esposa do empresário de Dylan. A foto foi tirada na sala de estar da casa de campo do casal, em Woodstock.
  6. Bem antes do Photoshop, o fotógrafo Daniel Kramer criou um aparato para girar lentamente a lente da câmera e embaçar os cantos da foto, para causar a sensação do “universo estar se movendo ao redor” de Bob Dylan.
  7. Espalhados entre Dylan e Sarah estão discos dos Impressions (Keep on Pushing), de Robert Johnson (King of the Delta Blues Singers), de Ravi Shankar (India’s Master Musician), de Lotte Lenya (Sings Berlin Theatre Songs by Kurt Weill) e de Eric Von Schmidt (The Folk Blues of Eric Von Schmidt).
  8. No fundo da cena, seu disco anterior, Another Side of Bob Dylan, está próximo a uma lareira que fica em uma parede cheia de referências do século 19. É como se Dylan dissesse que, alé de pertencer a um passado distante, sua carreira anterior poderia ser jogada no fogo.
  9. Dylan segura um gato cinzento chamado Rolling Stone. Sete meses depois ele gravaria sua maior canção, chamada “Like a Rolling Stone”.

10 anos de YouTube

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Neste dia 14 de fevereiro o YouTube completou sua primeira década de existência e eu escrevi uma linha do tempo ressaltando os grandes momentos na história do site e seu impacto em nosso dia a dia pra Ilustrada deste sábado.

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Aperte o play
Maior arquivo de vídeos do mundo completa dez anos hoje; lembramos de alguns feitos do YouTube que mudaram nossa relação com a cultura

No começo era só um site em que qualquer um podia subir seu vídeo. Três ex-funcionários do serviço de transferência digital de dinheiro PayPal apostaram no formato que permitia ao usuário divulgar conteúdo sem intermediários, num tempo em que o vídeo on-line era uma lentidão cheia de engasgos.

Quando, no dia 14 de fevereiro de 2005, Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim ativaram o domínio YouTube.com, eles não podiam imaginar que no final do ano seguinte estariam sendo comprados pelo Google por US$ 1,65 bilhão e teriam sua criação na capa da revista “Time”.

O fato é que o YouTube mudou completamente a nossa relação com a internet graças à popularização da comunicação em vídeo. Se antes ela era oligopólio de poucos grupos de comunicação, emissoras de TV, produtoras de conteúdo e estúdios de cinema, a partir da explosão do site o mundo redefiniu o modo como consome e produz vídeos.

Virais intencionais ou não, trailers e músicas que estreiam longe dos cinemas, das TVs ou das lojas de disco, anúncios políticos, diferentes formas de se contar uma história, protestos, esquetes de humor: o YouTube tornou-se um dos canais mais assistidos do mundo todo, nos acostumou a consumir conteúdo via streaming em vez de download e mudou completamente o planeta nos últimos dez anos.

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A edição brasileira da biografia de Mick Jagger

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Escrevi a matéria de capa da Ilustrada dessa quinta-feira, comparando as versões norte-americana e brasileira da biografia sobre Mick Jagger escrita por Christopher Andersen – e os detalhes que separam as duas edições têm a ver com o envolvimento do vocalista dos Stones com a brasileira Luciana Gimenez.

“Você nem sempre consegue o que quer, mas, se tentar, às vezes, consegue o que precisa”
Biografia não autorizada de Mick Jagger é adulterada na edição brasileira para minimizar problemas com Luciana Gimenez

Uma das pessoas mais conhecidas do planeta, dono de centenas de milhões de dólares, autor de uma obra que reúne álbuns clássicos, dezenas de hinos para diferentes gerações e um dos líderes das transformações sociais da segunda metade do século 20.

A biografia de Mick Jagger é naturalmente carregada de superlativos, intercalando a obsessão pela própria imagem com um número inacreditável de conquistas sexuais, entre celebridades e anônimos.

Mas a edição brasileira de “Mick – A Vida Louca e Selvagem de Jagger” (Objetiva), escrito pelo norte-americano Christopher Andersen, traz uma quase bucólica “nota do editor” ao final de suas páginas que altera alguns detalhes da versão original.

As mudanças, no entanto, pouco têm a ver com surubas, viagens alucinógenas ou rituais satânicos que surgem pelas páginas do livro. Todas estão especificamente relacionadas ao relacionamento do vocalista dos Rolling Stones com a apresentadora brasileira Luciana Gimenez, com quem o vocalista tem um filho, Lucas, hoje com 15 anos.

São detalhes. Em alguns trechos da edição original o autor insistia na dúvida que Luciana teria engravidado de propósito, parando de tomar anticoncepcionais sem avisar Mick Jagger –trechos omitidos na edição brasileira. A passagem que diz que Luciana conheceu Mick em uma festa numa mansão omite na versão brasileira que os dois teriam feito sexo no canil da casa.

E a mãe de Luciana, Vera Gimenez, que atuou em filmes como “Nós, os Canalhas” (1975), “Já Não se Faz Amor Como Antigamente” (1976), “As Safadas” (1982) e “Oh! Rebuceteio” (1984), é descrita como atriz, sem o adjetivo “soft porn” (pornochanchadas) que aparece na edição original.

CLAREZA
“Nenhuma mudança foi exigida por terceiros”, diz, agora, o autor da biografia à Folha. “Três das mudanças foram feitas por mim e três, a pedido da editora”.

A editora Objetiva, em nota através de sua assessoria de imprensa, reforça que “todas as alterações foram aprovadas previamente por Christopher Andersen –e só por ele”, comunicou.”Estas alterações não resultaram na retirada de informações, mas na clareza e rigor jornalístico.”

Entretanto, em entrevista ao jornal “O Globo”, em novembro de 2014, o biógrafo se mostrava indignado:

“Fiquei chocado ao saber que o Brasil proíbe biografias não autorizadas. Como o país pode ser uma sociedade livre sem saber a verdade sobre suas figuras públicas? Depois de 45 anos de carreira e 33 livros, aprendi que a maioria das celebridades mentiu por tanto tempo sobre a própria vida que esqueceu o que é real. Em nenhuma edição estrangeira de meus livros tive trechos suprimidos. A verdade é a verdade. Censura é censura. Qual é o próximo passo, fogueiras de livros? Essas celebridades que defendem causas liberais e depois tentam controlar tudo o que é escrito sobre elas são hipócritas. Cada sílaba da biografia é real.”

Procurada pela reportagem, Luciana Gimenez negou envolvimento na edição. Disse não ser “a favor de censura, mas tampouco sou conivente com a publicação de mentiras”, informou, por meio de sua assessoria de imprensa.

“Que Mick e eu tivemos uma relação; que essa relação foi e continua sendo a melhor possível; que o fruto dela foi nosso filho Lucas, hoje com 15 anos; isso tudo é verdade. Qualquer mentira, difamação ou distorção da verdade, seremos sempre contra”, finalizou.

TABLOIDE
O livro segue o tom de tabloide e a tradição de biografias não autorizadas que nunca seriam publicadas no Brasil, como o de outras obras de seu autor: Michael Jackson, Madonna, casais presidenciais e reais, além da princesa Diana, quase todos presentes na lista de best-sellers do jornal “The New York Times”.

A imagem que o livro passa do vocalista dos Stones não abala sua reputação, apenas a reforça. Mostra o quanto ele é obcecado por controle, destratando todos ao seu redor –apenas para criar um vínculo doentio com seu eterno parceiro Keith Richards.

E, claro, há um desfile de conquistas sexuais para todos os gostos: de David Bowie a Angelina Jolie, passando por Carla Bruni e os próprios stones Brian Jones e Keith Richards. “Acho que ele é como um vampiro sexual”, explica, em dado momento, a sexoterapeuta que Jagger procurou para tratar sua compulsão por sexo.

“Estar com todas essas pessoas faz com que se sinta jovem e fornece toda essa energia”. Mas, como ninguém é de ferro, a própria terapeuta confessou ter ido pra cama com Jagger.

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…e o Letters of Note virou um livro

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Fonte interminável de inspiração, o blog Letters of Note (sempre comentado aqui no Trabalho Sujo) virou livro e foi lançado no Brasil. Escrevi sobre o belíssimo Cartas Extraordinárias – A Correspondência Inesquecível de Pessoas Notáveis do inglês Shaun Usher para a Ilustrada deste sábado. E a imagem que ilustra esse post é uma carta que Charles Schulz mandou para uma fã irritada com uma nova personagem chamava Charlotte Brown, que era o oposto do protagonista da tira Peanuts, Charlie Brown. Schulz concordou com a morte, não antes sem responsabilizar sua leitora pelo feito, ilustrado pelo pai do Snoopy como um machado da cabeça da ex-personagem.

Livro reúne pérolas emocionantes do universo das cartas
Versão em papel do blog Letters of Note, compilação traz correspondência enviada por pessoas notáveis

Um jovem chamado Leonardo oferece seus préstimos para o governador de Milão. Para isso, cita suas aptidões numa lista, sendo que só o décimo item comenta suas inclinações artísticas.

O líder de um movimento pela independência de um país asiático escreve para o líder de um país europeu, pedindo para que não vá além com suas intenções imperialistas.

O mundo digital ilude com a ideia da hiperconexão. Não é que não estejamos cada vez mais interligados graças à troca compulsiva de mensagens eletrônicas de toda espécie.

Mas nos esquecemos que, antes da internet, as pessoas também viviam conectadas.

E não deixa de ser irônico que um site tenha que virar livro para reforçar a importância das cartas. “Cartas Extraordinárias – A Correspondência Inesquecível de Pessoas Notáveis” é a versão impressa do blog “Letters of Note”, criado pelo inglês Shaun Usher.

Desde 2009, ele reúne pérolas emocionantes do universo da correspondência. A maioria delas é escrita por personalidades históricas de toda a sorte –políticos, artistas, cientistas, escritores, atores– em diferentes períodos de suas vidas, além de relatos anônimos de cortar o coração.

Dez dólares
Não faltam momentos históricos. Lemos um jovem Fidel Castro, aos 12 anos, em 1940, pedindo, em inglês, uma nota de dez dólares ao recém-reeleito presidente norte-americano Franklin Roosevelt.

Duas cartas são endereçadas a Marlon Brando: numa delas, de 1957, o escritor Jack Kerouac suplica para que o ator faça parte da adaptação de seu recém-lançado livro “Pé na Estrada”. Noutra, de 1970, Mario Puzo faz pedido semelhante para a versão cinematográfica de “O Poderoso Chefão”.

Há relatos tocantes, como uma carta de um ex-escravo para seu antigo dono. Outros hilários, como o do gerente de produto da Sopa Campbell a Andy Warhol, comentando o uso das latas da empresa em suas obras. Ele lhe oferece caixas com o enlatado.

Alguns outros são repugnantes, como a carta em que Jack, o Estripador, se apresenta à polícia londrina enviando um pedaço de uma de suas vítimas. Outros curiosos, como o de uma criança que sugere ao presidente norte-americano Abraham Lincoln que deixe a barba crescer.

Algumas cartas não são manuscritas. Um telegrama avisa aos militares na base de Pearl Harbor que as sirenes que estavam ouvindo não eram um teste –e sim o ataque que motivou a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial.

“Cartas Extraordinárias”, que traz fac-símile da maioria das 125 epístolas reunidas, é prazer tanto para ser folheado e lido casualmente quanto para ser devorado.

E entre as inúmeras surpresas pelo caminho, descobrimos que foi graças à uma carta que o governador de Milão contratou Leonardo da Vinci em 1483 e, dez anos depois, lhe encomendou a “Última Ceia”.

E que Gandhi tentou, por meio de uma carta, fazer com que Hitler desistisse de dominar a Europa e não provocasse a Segunda Guerra Mundial. “Pelo bem da humanidade.”

CARTAS EXTRAORDINÁRIAS
Organização Shaun Usher
Tradução Hildegard Feist
Editora Companhia das Letras
Quanto R$ 99,90

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O autor Mario Puzo escreve ao ator Marlon Brando, 1970.

Caro sr. Brando, Escrevi um livro chamado “O Poderoso Chefão” que teve algum sucesso e acho que o senhor é o único que pode fazer o papel Chefão com a força e a ironia (o livro é um comentário irônico sobre a sociedade americana) que o papel exige. Espero que o senhor leia o livro e goste dele o suficiente para usar todo o seu prestígio para conseguir o papel. Com essa finalidade estou escrevendo para a Paramount; pode ser que ajude. Sei que é muita presunção de minha parte, mas o mínimo que eu posso fazer pelo livro é tentar. Acho que o senhor seria fantástico. Não preciso dizer que admiro sua arte. Mario Puzo Um amigo comum, Jeff Brown, me deu seu endereço.

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Carta enviada pelo gerente de produto das sopa Campbell ao artista Andy Warhol, em 1964.

Prezado sr. Warhol: // Venho acompanhando sua carreira há algum tempo. Sua obra tem despertado grande interesse aqui na Campbell Soup Company por motivos óbvios. Já tive a esperança de adquirir um de seus trabalhos com o rótulo de Campbell Soup, porém receio que seja caro demais para mim. Quero dizer-lhe, no entanto, que admiramos sua obra e que eu soube que o senhor gosta de sopa de tomate. Tomo a liberdade de enviar-lhe algumas caixas de nossa sopa de tomate, que serão entregues nesse endereço. Desejamos-lhe constante sucesso e boa sorte. Cordialmente, William P. MacFarland // Gerente de produto

Um papo com o Xkcd

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Entrevistei o físico Randall Munroe, também conhecido como Xkcd, para a capa da Ilustrada de hoje – falei com ele algumas horas antes de ele acompanhar o pouso da nave no cometa, assunto que dominou o final da conversa. Meio tímido e meio sem graça, ficamos quase meia hora falando sobre cultura pop, quadrinhos, internet e ficção científica. Um dia eu publico a íntegra dessa conversa.

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Eureka!
Ex-funcionário da Nasa e um dos principais autores da era da internet, o físico e quadrinista Randall Munroe conversou com a Folha sobre o livro em que responde, usando ciência, a perguntas inusitadas enviadas por seus leitores

Faltavam poucas horas para o módulo Philae desconectar-se da sonda Rosetta e pousar no cometa Churyumov-Gerasimenko e Randall Munroe, 30, não conseguia disfarçar sua animação. “Vou ficar acordado à noite toda para assistir a isso, quero ver se tudo vai dar certo”, disse em entrevista por telefone com a voz tímida e quase sem graça, como se fosse apenas um sujeito qualquer assistindo a um evento corriqueiro.

E isso o físico e quadrinista mais conhecido como Xkcd, que acaba de lançar seu E Se? – Respostas Científicas para Perguntas Absurdas (Companhia das Letras, R$ 39,90) no Brasil, não é. Seu traço é simples até o limite do conceitual, reduzindo minimanente tudo a bonequinhos de palitinhos, mas ele lida com temas de escopo épico, medindo tudo com a grande régua da ciência.

Suas tirinhas – publicadas no site xkcd.com a cada dois ou três dias – compilam comentários ácidos e diálogos perspicazes sobre assuntos correlatos à ciência, como a cultura da internet, nossa relação com a tecnologia, linguagem e a natureza da ficção científica. Em uma delas, observou que tweets sobre terremotos chegavam mais rápido que as próprias ondas sísmicas a regiões ao redor do epicentro do tremor, sendo possível ler sobre o terremoto antes de senti-lo – e o comentário foi comprovado cientificamente pouco depois da publicação do quadrinho.

A tira começou em 2005, quando Munroe ainda trabalhava na área de robótica da Nasa, a agência espacial norte-americana. “Meus primeiros quadrinhos foram desenhados ainda na escola, quando deveria estar prestando atenção nas aulas, sempre rabiscava algo nos cantos dos meus cadernos. Depois de um tempo resolvi escaneá-los, mas não sabia o que fazer com eles e os coloquei em meu site”, explica.

O nome do site foi inventado a partir de uma observação que ele havia feito quando ainda era criança, de que um nome poderia perder seu sentido com o tempo: “Então inventei uma linha de texto que não significa nada e que seria só minha. E também um nome curto, pois achei que seria mais fácil se precisasse digitá-lo bastante no futuro.”

Não demorou muito para o quadrinho autodescrito como “um webcomic sobre romance, sarcasmo, matemática e linguagem” começasse a fazer sucesso, atingindo em poucos meses um público mensal de 70 milhões de pessoas, como registrou a revista Wired no final de 2007. Foi quando Munroe começou a explorar as possibilidades do formato quadrinho na internet.

A seção E Se? (What If) foi um dos primeiros experimentos com a interatividade digital. Reunidas pela primeira vez em livro em 2014, as respostas elaboradas visualmente por Munroe vinham de perguntas absurdas enviadas por seus leitores. No livro, ele responde a perguntas inusitadas como “se minha impressora conseguisse literalmente imprimir dinheiro, o impacto no mundo seria muito grande?”, “quanto espaço físico a internet ocupa?”, “se um asteroide fosse bem pequeno mas superdenso, seria possível morar nele como o Pequeno Príncipe?” e “de que altura você teria que soltar um bife para ele chegar ao chão cozido?” Mas a inspiração veio na sala de aula.

“Há um programa no MIT em que qualquer pessoa pode ser voluntária para dar aulas num fim de semana sobre qualquer assunto para estudantes de segundo grau”, lembra. “Eu nunca havia dado aulas antes e vi como é difícil manter os alunos interessados naquilo que você está querendo ensinar. Então pensei numa questão sobre Guerra nas Estrelas e quanta energia que Yoda conseguiria produzir através da Força e de repente todos começaram a ficar interessados. E seguiram a lógica, fazendo perguntas do tipo sobre outros filmes e logo em seguida sobre coisas da vida real. Eles ficam bem mais interessados quando as perguntas não são abstratas.”

Ele adaptou essa lógica para o seu site e começou a receber uma avalanche de perguntas improváveis. “Não consigo ler todas, são muitas”, confessa. Alguma delas são bizarras o suficiente para que ele nem pestaneje em pensar na resposta (“Dá para impedir uma erupção vulcânica depositando uma bomba (termobárica ou nuclear) debaixo da terra?”) ou que nem comece a cogitar a possibilidade de respondê-las (“A que velocidade um ser humano teria que correr para ser cortado ao meio, na altura do umbigo, por um arame de cortar queijo?”).

Depois da seção E Se?, Randall começou a experimentar cada vez mais em escala (o quadrinho “Money” trabalha proporcionalmente todo o dinheiro que existe no mundo), com geolocalização (certa vez publicou uma brincadeira de primeiro de abril que variava de acordo com a localização geográfica de cada leitor), com espaço (no vasto universo digital de “Click and drag”, um desenho interativo que se fosse impresso ocuparia uma área de 14 metros de largura), culminando na contemplativa “Time”, que ganhou o prêmio Hugo, maior reconhecimento na área de ficção científica, deste ano (leia abaixo).

Atualmente ele descansa da turnê de lançamento de seu livro na Europa e cogita conhecer o Brasil: “Nunca fui ao Hemisfério Sul, mas sei que tenho muitos fãs aí.” Ele não detalha projetos para o futuro pois faz muitas coisas ao mesmo tempo (“sou muito desorganizado”), mas antecipou que quer fazer algo com os “3.2 GB de dados do genoma humano”, que baixou no início do ano.

Logo depois da entrevista, ele transmitiu o pouso do módulo Philae no cometa Churyumov-Gerasimenko através de seu próprio site, publicando um quadrinho a cada cinco minutos, criando uma animação que reunia as informações que conseguia conectar enquanto acompanhava as informações que obtinha no site da Esa (agência espacial europeia).

Projetos recentes ampliam ideia de interação entre público e obra

Dois dos projetos mais ambiciosos de Randall Munroe exploram as possibilidades de interação entre a obra de arte e o público de formas bem distintas. “Click and drag” (“clique e arraste”, que pode ser visto em http://xkcd.com/1110/), por exemplo, é o ápice de seu trabalho com mapas e tabelas, como já havia feito ao criar o mapa da internet ou do sistema solar. A obra de 2012 é uma tira cujo último quadrinho permite que o leitor explore dimensões improváveis dentro de um único painel. “Quando você está num videogame de carro e olha no horizonte, você vê algumas montanhas, mas se tenta dirigir o carro para fora da pista, há uma espécie de parede invisível que não permite que você chegue às montanhas. É um universo que parece ser muito grande, mas é muito pequeno. Eu queria fazer um quadrinho que tivesse o efeito oposto, que parecesse muito pequeno mas que fosse muito grande”, conta seu autor.

A obra também foi inspirada em um passatempo comum em nossa rotina digital: passear por mapas através da internet. “Eu achava um rio perto de casa e começava a clicar e arrastar o mapa para seguir o rio até o oceano e isso levava meia hora, passava por várias cidades e dava uma sensação de estar explorando. Mas eu não queria que você pudesse dar zoom para fora, pois isso seria como trapacear”, explica.

“Time” (que pode ser lida aqui http://xkcd.com/1190/) era um experimento com tempo e nele Randall convidava o leitor a acompanhar uma história que teria um novo quadrinho publicado a cada meia hora por 123 dias. “Era como se fosse algo entre uma tira na internet e um filme. Porque uma tira de internet é atualizada uma vez por dia ou por semana enquanto um filme é uma espécie de tira de internet que é atualizada 24 vezes por segundo. Eu queria contar aquela história, que era sobre o tempo, e achei que seria uma forma interessante e única de contá-la”, conclui. “Time” ganhou o prêmio Hugo de “melhor história gráfica” deste ano e a premiação foi aceita pelo escritor Cory Doctorow que, a pedido de Munroe, disse que iria ler o discurso de agradecimento falando uma palavra por hora.

P: Quanta Força o Yoda consegue gerar?
R:
É óbvio que vou ignorar as prequels. A maior demonstração de força de Yoda na trilogia original se deu quando ele ergueu a X-wing de Luke do pântano. No que concerne a movimentar objetos fisicamente, esse foi sem dúvida o maior dispêndio de energia através da Força que vimos em qualquer momento da trilogia. A energia necessária para erguer um objeto até certa altura é igual à massa do objeto vezes a força da gravidade vezes a altura a que se queira erguer. (…) Por fim, precisamos saber da força da gravidade em Dagobah. Aqui fico sem ter para onde ir, pois mesmo que os fãs de ficção científica sejam obcecados, não tem como existir um catálogo das mínimas especificações geofísicas de cada planeta que aparece em Star Wars, né? Não. Subestimei os fãs.A Wookieepedia tem esse catálogo e nos diz que a gravidade superficial de Dagobah é de 0,9 g. (…)
(O resultado de 19,2 kW) é potência suficiente para energizar um quarteirão de casinhas no subúrbio. Também é equivalente a 25 cavalos-vapor, que é quase a potência do motor do Smart Car elétrico. Aos preços atuais de energia elétrica, Yoda valeria aproximadamente dois dólares por hora. (…) com o consumo de eletricidade mundial na faixa dos 2 terawatts, precisaríamos de 100 milhões de Yodas para cumprir a demanda. Somando tudo, adotar “Yodanergia” não ia valer a pena — mas é incontestável que seria energia verde.

P: Quando, se é que um dia, o Facebook terá mais perfis de mortos do que de vivos?
R:
Vai ser ou nos anos 2060 ou 2130. Não tem muito morto no Facebook. A razão principal é que tanto a rede social quanto seus usuários são jovens. O usuário médio do Facebook envelheceu com o passar dos anos, mas o site ainda é mais utilizado — e com frequência bem maior — pelos mais jovens. Com base na taxa de crescimento do site, e na estratificação etária de usuários ao longo do tempo,2 cerca de 10 a 20 milhões de pessoas que criaram perfis do Facebook já morreram.

P: Dá para construir um propulsor a jato (jetpack) usando metralhadoras que atirem para baixo?
R: Eu fiquei meio surpreso quando descobri que a resposta é positiva! Mas para fazer direito, você vai ter que conversar com os russos. O princípio é bem básico. Se você atira uma bala para a frente, o coice empurra você para trás; então, se atirar para baixo, o coice vai lançar você para cima. A primeira pergunta a responder é: “Tem como uma arma erguer seu próprio peso?”. Se uma metralhadora pesa 4 kg mas o coice dela ao disparar é de 3 kg, ela não vai conseguir se erguer do chão, muito menos erguer ela mesma mais uma pessoa. No mundo da engenharia, a razão entre a potência de um veículo e o peso é chamada de, veja só, relação peso-potência. Se for menor que 1, o veículo não consegue se erguer. O Saturno V tinha uma relação peso-potência, para a decolagem, de aproximadamente 1,5
Apesar de eu ter crescido no sul dos Estados Unidos, não sou especialista em armas de fogo. Por isso, conversei com um conhecido do Texas para ajudar na resposta.
Aviso: por favor, POR FAVOR, não tente fazer isso em casa.

Clássico é clássico: Mick Jagger + Caetano Veloso

E por falar em Mick Jagger, vou puxar a sardinha pro Brasil pra lembrar do clássico episódio em que Caetano Veloso entrevistou o vocalista dos Rolling Stones para a TV Manchete, nos anos 80. O surgimento da Manchete, lançada numa década em que só haviam três ou quatro canais da TV (internet? hahaahahah), foi saudado na época mais ou menos como o lançamento da revista Piauí no mercado editorial brasileiro. Além de revelar novos talentos (Angélica e Xuxa são crias de lá) e explorar novos rumos para a telenovela (culminando na épica e memorável Pantanal), a emissora também investia no telejornalismo em diferentes frentes – de um lado havia o Documento Especial, que apresentava o submundo da cidade grande para o resto do Brasil, do outro o Conexão Internacional, programa de entrevistas capitaneado pelo Roberto D’Ávila, que abriu uma edição do programa para Caetano Veloso entrevistar Mick Jagger. Só achei esse trecho da entrevista no YouTube, que a descrição diz ser do filme Cinema Falado, do próprio Caetano Veloso (que nunca tive coragem de assistir).

Devia ter na íntegra, ninguém sabe onde tem isso?

A entrevista é clássica por ter dado origem a uma das principais polêmicas cultivadas pela Ilustrada, na Folha de S. Paulo, o embate memorável de Paulo Francis e Caetano Veloso. Afinal, olha como Francis tratou a entrevista de Caetano em sua coluna:

“É evidente, por exemplo, que Mick Jagger zombou várias vezes de Caetano na entrevista na TV Manchete. O pior momento foi aquele em que Caetano disse que Jagger era tolerante e Jagger disse que era tolerante com latino-americanos (sic), uma humilhação docemente engolida pelo nosso representante no vídeo.”

Além de ter tripudiado da ingênua pergunta de Caetano sobre a importância do rock para a história da música:

“Essa pergunta simplesmente não se faz em televisão, ou até em jornal. É de um amadorismo total. Só serve para seminários de ‘comunicação’ no interior da Bahia. Não é uma pergunta jornalística. Jagger começou a debochar aí.”

Caetano ficou putaço, chamou Francis de “bicha amarga” e Francis não deixou barato:

“Duas sorridentes cascavéis deste caderno me comunicaram hoje que Caetano Veloso me agrediu numa coletiva. Outro tema de debate: cantor de samba fazendo show vale uma coletiva? Por quê? Bem, fiz críticas culturais ao estilo de personalidade de Caetano, o flagelado milionário de ‘boutique’, servil como um escravo diante do condescendente Mick Jagger. São críticas, certas ou não, mas culturais. Qual é a resposta de Caetano? Diz que sou uma bicha amarga e recalcada. É puro Brasil. Ao argumento crítico, o insulto pessoal. Mas o insulto é o próprio Caetano. Afinal, o que ele quer dizer é que sexualmente sou igual a ele, e usa isso como insulto.”

A história virou pauta em que o intelectualismo cultural brasileiro foi submetido à enquete “Paulo Francis ou Caetano Veloso?” – e essa história está toda contada melhor aqui.

Em tempo, eu sou time Caetano.

Bob Dylan, por Rafael Grampá

Grampá foi ao show de Dylan no fim de semana e resenhou o show em quadrinhos pra Ilustrada.

A resenha inteira tá no site do jornal.

Seu Jorge, o Romero Britto brasileiro

Não acho Seu Jorge grandes coisas, mas respeito um cara que começa uma entrevista assim:

“Eu senti que existia uma demanda reprimida por um gênero específico, e esse gênero era eu”

Na Folha.

O marco-zero do pop atual: o dia em que os Beatles conheceram Bob Dylan

Lembrei de uma matéria que fiz para a Ilustrada anos atrás, quando o primeiro encontro dos Beatles e de Bob Dylan completou 40 anos – reunião de cúpula que mudou o curso das carreiras dos dois artistas e, com elas, a história da cultura do século 20. Segue o texto abaixo:

Encontro entre Bob Dylan e os Beatles faz 40 anos

“Olhando em retrospecto, eu ainda vejo aquela noite como um dos grandes momentos da minha vida. Na verdade, eu tinha a consciência de que estava dando início ao encontro mais frutífero na história da música pop, pelo menos até então. Meu objetivo foi fazer acontecer o que aconteceu, que foi a melhor música de nossa época. Eu fico feliz com a idéia de que eu fui o arquiteto, um participante e o cronista de um momento-chave da história.”

Assim o jornalista norte-americano Al Aronowitz se refere ao clássico encontro que, exatamente há 40 anos, mudou a cara da música pop e da cultura popular, quando, no dia 28 de agosto de 1964, os Beatles foram apresentados a Bob Dylan e este os apresentou à maconha. O encontro, ocorrido no Delmonico Hotel, em Nova York, fez com que ambos artistas começassem a se enxergar como partes de um mesmo universo, cedendo atrativos musicais entre si –não havia mais consumismo infanto-juvenil de um lado e cabecismo adulto do outro, tudo era a mesma coisa. Nascia a música pop moderna.

O que a princípio parecia se tornar um breve alô entre jovens ícones se tornou um acelerador para novas certezas que ambas as carreiras vinham desenvolvendo. Fenômeno de mercado, os Beatles eram uma banda elétrica adolescente, cantando baladas de amor e petardos dançantes com maestria inigualável. Já o acústico Dylan nascera na mesma cena folk pacifista que habitava o bairro boêmio do Village e glorificava autores beat e músicos do povo.

Mas logo a seguir as coisas mudariam de figura. Dylan abraçaria a guitarra como um violão de maior alcance, ferindo seus próprios fãs puristas com decibéis de eletricidade distorcida, ao mesmo tempo em que deformava a própria lírica das canções de protesto para um panteão bíblico-pop que buscava a pureza da alma americana ao mesmo tempo em que se perdia em seus próprios pecados. Já os Beatles deixariam de lado o iê-iê-iê para mergulhar fundo em si mesmos, emergindo de seu experimentalismo intuitivo –parte nostálgico, parte ingênuo– com o melhor legado que o formato canção conheceu.

Aronowitz havia entrevistado John Lennon e descobriu que ele considerava Bob Dylan um “ego igual” e, amigo de Dylan, passou a pensar em como aproximar os dois artistas. Até que, naquele 28 de agosto, Al recebe um telefonema –era Lennon, de passagem com os Beatles por Nova York:

“Cadê ele?”.

“Quem?”

“Dylan!”

“Ah, ele está em Woodstock, mas eu posso trazê-lo!”

“Do it!” (Faça!), mandou John do outro lado da linha, e o jornalista percebeu que podia dar ignição na própria história. Aronowitz combinou com Dylan, que veio acompanhado do roadie Victor Maimudes, ao volante. Com Al no carro, foram em direção a Manhattan, chegando logo ao hotel na Park Avenue. Lá, os três alcançaram o andar em que os Beatles estavam, sendo recebidos por um amontoado de artistas, radialistas, policiais e jornalistas, bebendo cerveja e conversando, que esperavam a vez de entrar na suíte para conversar com os Beatles, que estavam na capa da revista “Life” daquela semana.

Dylan entrou rapidamente, e a recepção foi feita pelo empresário do grupo, Brian Epstein, que, ao perguntar, entre champanhe e vinhos franceses, o que Dylan gostaria de beber, ouviu o pedido por “vinho barato” –para despachar o roadie dos Beatles, Mal Evans, em busca da tal garrafa. O encontro vinha frio, e os Beatles ofereceram pílulas para Bob, que sugeriu que eles fumassem maconha. Os ingleses responderam que nunca haviam fumado –consideravam a maconha uma droga pesada como a heroína, restrita a músicos de jazz e escritores malditos.

Pasmo, Dylan perguntou sobre aquela música que eles compuseram sobre estar chapado. Sem entender o que ele queria dizer, o cantor folk citou uma passagem em que os Beatles cantavam “I get high! I get high! I get high!” (“Eu fico chapado”), e Lennon esclareceu que era “I Want to Hold Your Hand”, cuja letra, na verdade, dizia “I can’t hide! I can’t hide! I can’t hide!” (“Eu não posso esconder!”). Desfeito o mal-entendido, Dylan sugeriu que todos fumassem um baseado.

Os Beatles, Dylan, Mal, Victor, Brian, Al e o assessor de imprensa Derek Taylor se dirigiram ao fundo da suíte do hotel, onde se trancaram e fecharam as cortinas. Bob Dylan começou a enrolar o cigarro, mas deixou o fumo cair por duas vezes, deixando que seu roadie terminasse o serviço. Aceso, o cigarro foi passado para Lennon, que passou a vez para o baterista Ringo Starr, que, por desconhecer os rituais canábicos, fumou-o inteiro, sem passá-lo adiante. Isso fez com que Al incentivasse a produção de mais cigarros –e logo cada um tinha o seu.

“Foi muito engraçado!”, lembra Paul McCartney em suas memórias, “Many Years from Now”, “o negócio dos Beatles eram humor, tínhamos muito humor. Havia um lado do humor que usávamos como proteção e, com aquilo ainda por cima, as coisas ficaram mesmo hilárias”.

“Virou uma espécie de festinha”, continua Paul, “voltamos todos para a sala, bebemos e coisa e tal, mas não acho que alguém precisasse de mais fumo depois daquilo. Passei a noite toda correndo para lá e para cá, tentando achar papel e caneta porque, quando voltei para o quarto, descobri o sentido da vida. Queria contar ao meu pessoal como era aquilo. Eu era o grande descobridor, naquele mar de maconha, em Nova York”.

“Até a vinda do rap, a música pop era largamente derivada daquela noite no Delmonico. Aquele encontro não mudou apenas a música pop, mudou nosso tempo”, lembra Al Aronowitz, em sua coluna on-line “The Blacklisted Journalist”. Logo depois, Dylan lançaria, em seqüência, os discos “Bringing It All Back Home”, “Highway 61 Revisited” e “Blonde on Blonde”, enquanto os Beatles trariam “Rubber Soul”, “Revolver” e “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”. Pura história.

Renato Russo, 50 anos

Como bom brasiliense, fica aqui a minha lembrança e meu salve ao João de Santo Cristo original, o retirante carioca que legitimou a cultura da minha cidade-natal em forma de canção. Aproveitei a data para desenterrar uma entrevista que fiz com o Renato Russo em 1994 e que foi capa da Ilustrada em 2001, quando completaram cinco anos da morte do cara. Segue:

Em entrevista inédita, Renato Russo fala de drogas e da Legião

Há exatos cinco anos o pop brasileiro perdia o pouco de senso crítico que tinha, acelerando a escavação do atual abismo cultural em que se encontra. Com a morte de Renato Russo, acabava a Legião Urbana, uma das duas bandas de rock mais importantes do Brasil, funcionando no imaginário nacional -ao lado do experimentalismo dos Mutantes- como os Beatles para o do planeta.

O fim do grupo coincidiu com a aceleração da idiotização do pop brasileiro, hoje composto por discos de regravações, muitos deles subprodutos da própria Legião.

No dia 21 de maio de 1994, Renato Russo e a banda viajavam pelo interior de São Paulo com a turnê do disco O Descobrimento do Brasil. O show daquela noite havia sido no ginásio municipal de Valinhos (a 88 quilômetros da capital) e problemas com a acústica do lugar fizeram o grupo convocar uma reunião de emergência na beira da piscina do hotel Royal Palm Plaza, em Campinas. Leia trechos da entrevista concedida por Renato Russo, após a reunião.

Qual seu disco favorito da Legião Urbana?
O V, que eu acho o disco mais difícil. Gosto muito de O Descobrimento do Brasil. Agora, que encontrei a programação dos 12 passos -parei de beber e de me drogar-, tudo está mais tranquilo. Esse show de hoje, por exemplo: o som estava um caos, tudo estava um horror, e o público, superlegal. O lugar tinha uma reverberação brutal. O público berrava muito, e o engenheiro de som teve de aumentar tudo, desequilibrou. No começo era só “bum-bum-bum” e eu berrando, não dava para ouvir os detalhes. Mas, se fosse em outra época, eu teria ficado tão preocupado que ia beber, tomar um porre, falar: “Nunca mais vou fazer show”, nhem-nhem-nhem… Isso agora não existe mais. Há uma tranquilidade, uma serenidade que esse disco trouxe, e acho que as músicas refletem isso.

Como foi sair dessa fase?
Eu estava me destruindo e, em vez de me matar com um tiro na cabeça, preferi procurar ajuda. Isso vem desde os 17 anos, mas no V foi a primeira vez que coloquei na música essas questões. “Montanha Mágica” é sobre isso. Eu era jovem e acabei entrando num beco sem saída.
Isso foi me consumindo, eu ficava deprimido e não sabia o porquê. Achava que o mundo era horrível, igualzinho ao Kurt Cobain, nada mais valia a pena. E isso é estranho porque, se eu achar um dia que as coisas não valham a pena, quero estar com a cabeça no lugar, e não com o corpo cheio de toxinas. Parei com todo tipo de droga e vi que as coisas não eram tão ruins.

Isso se refletia na sonoridade da banda?
Isso a gente decide. Todo disco a gente tenta fazer uma coisa diferente, até porque é mais divertido. E para não ficar na obrigação de repetir o mesmo trabalho. Não achávamos que o Quatro Estações fosse estourar, porque é um disco bem difícil, mas todo mundo gostou. As letras são complicadíssimas e não é tão pra cima quanto acham. É tão depressivo quanto o V.
Tentamos fazer músicas mais pra cima porque era natural, mas não ficava bom. O Descobrimento do Brasil não é um disco pra cima, é como o Power, Corruption and Lies, do New Order. É a coisa mais gloriosa do mundo, mas, se prestar atenção, é pesado.

Como o Quatro Estações…
No geral, as pessoas acharam que aquilo foi a coisa mais alegre que já foi feita. Enquanto o V, não. A gente tentou fazer uma música alegre pelo menos, de tudo quanto foi jeito, e não saía. “Vento no Litoral” só tocou porque tem uma melodia bonita. Acho “Metal contra as Nuvens” uma música superacessível. O problema é que o disco falava de coisas que as pessoas não estavam querendo ouvir na hora. Foi quando estourou a axé music, a gente veio na contramão. Mas o disco tem as melhores letras, de longe. Consegui falar tudo o que eu queria. Mas as pessoas não queriam ouvir aquilo. Por exemplo, “Metal contra as Nuvens” é uma música sobre o Collor, mas nunca ninguém falou sobre isso.

Como você vê a crítica?
Eles usam os motivos errados. Eu não sou o dono da verdade, mas, para mim, o que motiva esses caras é um rancor e uma incompreensão do que é o nosso país e de como as coisas funcionam. Existem iniciativas maravilhosas no Brasil e a gente não sabe. Aí a gente fica oprimido, achando que tudo não presta, que tudo é horrível. Gostaria de poder apresentar um bom trabalho para as pessoas que gostam da gente. Acho sacanagem, na posição que a gente está, não tentar se esforçar o máximo para apresentar o melhor que a gente pode fazer.

E o futuro do Legião?
Não tenho idéia. Eu não vejo como a gente vai seguir o que está fazendo sem se repetir. Depois de “Perfeição”, eu vou escrever o quê? Depois que você fala “vamos celebrar a estupidez humana”, o que você vai falar? Então talvez a gente faça uma coisa parecida com o que o The Cure faz, para depois, com o tempo, a gente fazer uma mescla. Ou virar uma banda de trabalho, como o New Order. Eu não quero ficar falando como eu acho tudo horrível como está. Se a gente cansar, a gente pára. Se a gente achar que ainda vale a pena fazer alguma coisa, a gente continua.