Fringe e o drama do duplo

, por Alexandre Matias

E esse é o texto do Denis, da mesma edição do Matéria Obscura dedicada ao Fringe que eu citei há pouco.

A grama é mais verde do lado de Lá
Denis Pacheco
Spoilers: O artigo traz informações sobre a terceira temporada da série “Fringe”.
Desde pequeno aprendi com o misto de ditado popular e título de filme antigo que a felicidade não se compra. Ainda que a literatura de auto-ajuda, os tratamentos esotéricos e alguns romances de banca de jornal tentem argumentar o contrário, o conceito de felicidade imbuído em mim e, provavelmente, em você é o de uma busca indelével que se sustenta em si. Seja uma luz no fim do túnel, seja uma meta tangível traçada numa planilha eletrônica, a ideia de felicidade passa por todos nós como algo a se almejar.

Por mais intangível que seja, essa noção de contentamento com a vida, permeia absolutamente todas as minhas decisões. É em busca dela que escolho a roupa que vou usar para mais um dia de trabalho, o caminho que farei para voltar para casa, a comida que irei preparar no jantar desta noite ou o destino das minhas férias em agosto. Entretanto, as escolhas que faço para apaziguar a necessidade instintiva de me fazer constantemente feliz levam-me na direção oposta. É nessa hora que revejo meus atos e abuso do recurso literário “e se” para imaginar como seria minha vida se outras decisões tivessem sido tomadas. Seria eu mais feliz se tivesse cursado História e não Comunicação Social? Deveria ter feito aquele intercâmbio em 2001 ao invés de me apressar a entrar numa faculdade?

Enquanto fico aqui supondo o que meu eu-alternativo estaria vivendo num outro universo, em “Fringe” os personagens interpretados por Anna Torv (Olivia Dunham), Lance Reddick (Philip Broyles), Kirk Acevedo (Charlie Francis) e Seth Gabel (Lincoln Lee) têm a chance de saber exatamente como suas vidas seriam se as circunstâncias fossem outras. E, para nossa surpresa, suas vidas na Terra paralela são sim mais felizes, com uma notável exceção.

Antes de explicar em que bases assumi que os personagens da Terra-2 (1) são mais felizes ou menos infelizes do que os desse universo, faz-se necessário explicar em quais condições diferenciadas vivem esse conturbado conjunto de pessoas.

1985 – A ruptura entre Universos

Dentre os grandes eventos de “Fringe”, aquele ocorrido em 1985 é demarcadamente o mais importante para definir o que diferencia os universos. Acometido pela morte prematura do filho, Peter, o cientista Walter Bishop expande o conceito de janela dimensional – uma construção capaz de espionar a realidade de um mundo alternativo, mais avançado tecnologicamente, mas virtualmente idêntico ao nosso – e atravessa para o Outro Lado pretendendo salvar a versão alternada do filho. Trazendo-o para o nosso lado para curá-lo de uma doença misteriosa, Walter causa danos irreparáveis no tecido da realidade, cujos efeitos só podem, inicialmente, ser sentidos do lado de Lá.

A partir de então, para os habitantes da Terra-2, certas verdades sobre seu universo foram escancaradas assim como os buracos negros que invadiram seu cotidiano. Pelo mundo, anormalidades da física criaram instabilidade e forçaram governos a assumirem posturas radicais para garantir a segurança da população e o Bem Maior. Nomeado Secretário de Defesa, Walternate (a versão Terra-2 de Walter Bishop), revelou ao planeta que o sequestro de seu filho e a instabilidade física universal eram parte de uma mesma equação. A partir daquela declaração, Walternate ganhou poder para criar uma divisão especializada em combater tais anormalidades utilizando-se até mesmo de um recurso definitivo de quarentena conhecido como “amber”. (2)

Crescendo sobre a ameaça de que seu universo fosse eventualmente tragado por uma infinidade de buracos negros, os futuros agentes da Fringe Division da Terra-2 foram naturalmente apresentados a duas potenciais abordagens em relação a vida: a efemeridade ou o fatalismo.

Abraçando a noção de efemeridade, Fauxlivia, Scarlie, Coronel Broyles, Capitão Lee, amadureceram com uma perspectiva bastante distinta da vida, ao contrário de suas duplicatas do outro universo. É a partir dessa diferenciação circunstancial que irei trabalhar:

Olivia/Fauxlivia

Quando conhecemos a Olivia Dunham na primeira temporada de “Fringe” imediatamente percebemos o quão rígida e desconfiada a agente do FBI poderia ser. Vítima do abuso do padrasto durante sua infância, Olivia cresceu como uma vítima. Perdendo a mãe ainda jovem e se tornando responsável pela irmã mais nova, Dunham acumulou responsabilidades suficientes para esquecer os anos em que fora sujeita a experimentos contestáveis daquele que viria a ser seu colega no FBI, e o responsável pela ruína quântica da Terra-2. Solitária, a agente Dunham que encaramos como protagonista é segura de si, mas sente dificuldade de expressar qualquer outra emoção num amplo espectro de situações.

Já ao sermos apresentados a Fauxlivia, sua contra-parte alternada, pudemos enxergar quase que o oposto do que entendíamos como núcleo central da personagem. Fauxlia não perdeu a mãe que, supostamente, a criou sozinha, sem a possível influência ou companhia de um padrasto violento. Apesar de ter perdido a irmã e a sobrinha para uma complicação médica, Olivia não tem dificuldades em se aproximar dos colegas de trabalho ou de cultivar um estável relacionamento amoroso. Imune aos experimentos de Walternate, Fauxlivia possuiu – ao que sabemos – uma infância comum, afetada não particularmente pelo estado instável de seu universo. Como agente da Fringe Division, ela atua na linha de frente dos casos mais complexos do lado de lá, sendo responsável, inclusive, por ativar a quarentena de Amber 31422 em áreas atingidas por eventuais buracos negros, lacrando-se junto com centenas de cidadãos numa bolha estática que não representa nem morte, tampouco a vida.

Ainda assim, passando por situações que extrapolam o absurdo, Fauxlivia – assim como muitos de seus colegas – parece encarar os fatos surreais que a cercam como parte de uma rotina corriqueira. Armada com a certeza de que seu mundo pode desabar, a Dunham alternativa construiu para si uma vida saudável, com relacionamentos familiares e interpessoais que fazem dela uma personalidade suficientemente forte para dominar, por um tempo, a mente enfraquecida da Olivia.

Marcada pela possessão e posterior retorno para seu universo, Olivia contempla a felicidade de Fauxlivia numa conversa com Peter Bishop:

Olivia: Antes de você saber que não ela era eu. Ela era divertida, certo? Ela tinha um sorriso fácil, quero dizer, é o que você disse.
Peter: Olivia, eu queria que você soubesse que eu notei a diferença. Mas eu pensei que era por minha causa, por causa de nós. Eu pensei que eu estava trazendo um lado diferente em você. Mas nunca foi porque eu queria estar com ela mais, porque eu não queria. (3.12)

Ciente de que sua outra versão, cuja vida havia sido reorganizada por um conjunto de decisões diferentes, ainda que assombradas pelo fantasma de um iminente apocalipse, era mais satisfeita do que ela própria, resta a Olivia remediar suas futuras escolhas tendo Fauxlivia como parâmetro inatingível de bem-estar.

Charlie/Scarlie

Substituído por uma cópia transmorfa, o Charlie que conhecíamos como parceiro de Olivia Dunham morreu prematuramente no universo principal de “Fringe”. Com um casamento bem sucedido e alguns missões que quase lhe escaparam do controle, Charlie parecia, até certo ponto, satisfeito com sua vida até que em “Unleashed” (1.16), em uma de suas conversas finais com Walter Bishop após uma infestação interna de larvas geneticamente alteradas, o agente revelou brevemente suas inseguranças quanto a trazer uma criança para um mundo cheio de possibilidades assustadoras. Ocultando de sua esposa, na cena final, as complicações quase letais do dia de trabalho.

Scarlie surge ainda no finalmente da primeira temporada, em pequenos flashs motivados pelos saltos de Olivia por entre dimensões e a primeira coisa que nos marca sobre o personagem é sua cicatriz no rosto. Mais endurecido do que seu duplo, Scarlie aparenta não ser casado; ainda assim, não parece carecer de afeto recebendo flertes como o da cientista em “Immortality” (3.13). Intimo de seus colegas de trabalho, tanto quanto Charlie, Scarlie sobreviveu ao ataque do mesmo monstro geneticamente alterado, mas não sem consequências. Alegadamente vivendo sem a cura para as larvas que crescem em seu organismo, Scarlie não parece se deixar abater pela condição crítica, deixando-se levar pela extraordinária realidade com pitadas acentuadas de bom humor.

Broyles/Coronel Broyles

Pouco sabemos sobre Philip Broyles, o chefe da divisão do FBI responsável pelos casos que desafiam a compreensão humana. Divorciado, sem filhos e com uma mesa posicionada diante da janela de seu escritório, Philip é representado como alguém reservado. Seus relacionamentos fora da divisão não são expostos aos colegas que mal podem questioná-lo sobre seu recente divórcio durante a primeira temporada (1.18). Sua ligação com Nina Sharp, possivelmente romântica (2.1), é brevemente abordada, mas não chegamos a compreender realmente o peso desse relacionamento. Entre desconfianças e ordens racionais, Philip se faz presente na equipe da maneira que melhor lhe convém, sendo, na maioria das vezes distante.

Do Outro Lado, o Coronel Broyles, ainda que mantendo sua postura militarizada e analítica a frente de uma Fringe Division muito mais especializada, teve a chance de dividir elementos de sua vida privada com os colegas. Vitima de um caso da divisão ele próprio, o Coronel teve sua rotina familiar violentamente alterada por sequestrador que raptou seu único filho. Ainda casado, ele vive uma rotina familiar amorosa e completa. Suficientemente completa para que o coronel fosse capaz de estender a mão para Olivia, uma suposta inimiga infiltrada em sua equipe, dando sua própria vida, ainda que inadvertidamente, para ajudá-la em sua jornada de volta ao seu universo.

Lincoln/Capitão Lee

O único que conhecemos primeiro na versão da Terra-2, o Capitão Lee é tão ou mais destemido do que sua equipe. Com quase 90% do corpo severamente queimado (2.23), Lee passou parte de sua apresentação como uma vítima em recuperação. Graças a tecnologia do lado de Lá, sua cura completa aconteceu algumas semanas depois da visita de Walter, Olivia e Peter ao seu universo. Durante o processo de recuperação da pele, Lee não deixava de transpirar personalidade a frente dos casos da Fringe Division. Mesmo sem qualquer indicativo de passado ou de relacionamentos extra-profissionais, o agente mais dedicado da divisão não parece ter quaisquer dificuldades em fazer amizades, especialmente com Fauxlivia e seu namorado, que divide com ele o segredo de uma eventual proposta de casamento. (3.13).

Quando colocado em comparação com sua contra-parte, o agente do FBI Lincoln Lee, o Capitão destoa-se ainda mais. Confiante como todos os que vivem na Terra-2, Lee é o líder natural de sua equipe após o falecimento do Coronel Broyles, enquanto o agente Lincoln não parece desfrutar do mesmo sucesso profissional, estando preso a um caso misterioso que parece incapaz de resolver por um ano. Sem equipe aparente ou colegas mencionáveis, o agente Lincoln que se entrega a uma parceria acidental com Peter Bishop, não esboça nem a confiança tampouco a sagacidade de seu duplo de outra dimensão.

Walter/Walternate

Do manicômio para o cargo de Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Walter e Walternate trilharam diferentes rumos em suas vidas paralelas. Cruzando caminhos quando um deles decidiu atravessar dimensões, os dois Bishops podem ser facilmente considerados antagonistas na mitologia de “Fringe”; entretanto, a complexidade de seus papéis e a distinta noção de felicidade que apenas tangencia ambos os personagens merece ser analisada com maior detalhamento.

Ao perder seu filho para uma doença que não conseguiu curar a tempo, Walter Bishop – cujos princípios éticos já não encontravam limites mesmo antes de sua transgressão física – se tornou responsável por um desastre possivelmente apocalíptico. A condenação das duas realidades foi suficiente para sobrecarregar sua consciência e forçar seu melhor amigo, William Bell, a tomar medidas drásticas para afastá-lo de seu pleno potencial. Do Outro Lado, Walternate se utilizava de todo seu poder cerebral para descobrir o paradeiro de Peter, seu filho raptado. Por mais um descuido de seu duplo, o cientista-chefe da Bishop Dynamics se viu diante da mais extraordinária resposta.

Diferentes dos personagens citados até agora, ambas as versões de Walter encontram sérias dificuldades de se adaptar a rotina de seus universos de forma saudável. Enquanto Walter viu sua família se desintegrar após o suicídio de sua esposa e o afastamento de Peter, Walternate manteve seu casamento – e uma amante (3.15) –, sua empresa e foi capaz de ampliar seu poder político, já que permaneceu na linha de frente da defesa do próprio universo.

Infeliz e desacreditado, Walter se deixou entregar a própria loucura até ser resgatado pelo FBI em circunstâncias extremas. Passo a passo, o restaurado Walter Bishop reencontrou seu bom humor entre os casos que desafiavam a compreensão. Entretanto, ainda que reapossado de um simulacro de estrutura familiar, o peso da culpa por suas ações passadas – incluindo aí questionáveis experimentos com seres humanos e seus desdobramentos – tornam esse Walter incapaz de criar uma relação saudável com os que o cercam, e consequentemente, incapaz de interagir com outras pessoas abaixo de sua escala de inteligência.

Para Walternate, ocultar emoções, interagir com colegas e esboçar um aparente estado de satisfação com a própria vida é definitivamente parte de uma rotina casual. Preocupação com a estabilidade de seu universo a parte – se é que podemos colocar tal fato de lado –, Walternate parece ter tomado todas as decisões acertadas em seu universo, sendo inclusive incapaz de cruzar limites morais que Walter ignoraria em nome da Ciência. Portanto, podemos concluir que a ausência de Peter não faz de Walternate um personagem infeliz por definição, mas sim, um personagem figurativamente incompleto, buscando incessantemente o reestabelecimento de uma ligação paternal.

Se a miséria de um é sofrer pelas escolhas realizadas, a fonte do sofrimento do outro é padecer pelas decisões daquele que jamais deveria ter interferido com o andamento dos universos alternativos.

A questão verdadeiramente intrigante que cerca o erro de Walter Bishop e o cerne de toda essa especulação sobre os graus de felicidade dispersos entre as duas dimensões de “Fringe” é tão complexa quanto a explicação científica dos fenômenos ocorridos durante as três temporadas da série, assim como seus desdobramentos. Se Walter não tivesse cruzado as dimensões e alterado fundamentalmente a trama da realidade, especificamente a realidade do Outro Lado, teriam todos esses personagens tomado as mesmas decisões? Seriam eles destemidos diante da eventual destruição de seu mundo? Teriam todos o mesmo grau de apreciação pela vida que parece inferior a de suas contra-partes do lado de cá? Estaria essa alegada felicidade atrelada ao erro de um único homem?

(1) Vocabulário criado pelo fandom, tal como a denominação oficial ‘Lado de Lá’ ou ‘Outro Lado’ criadas a partir da tradução livre do título do episódio 2.22 “Over There, Part 1”
(2) A substância química chamada Amber 31422 foi desenvolvida pelo Secretário Bishop para conter micro-buracos negros que causavam danos devastadores ao tecido do seu universo. No Outro Lado, a Fringe Division utiliza esta tecnologia para colocar em quarentena as perigosas fendas no espaço assim que assinaturas de energia prejudiciais são detectadas.

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