Presidente Kennedy

No ano 2000 entrevistei o Jello Biafra para a revista Rockpress. Devo ter a edição impressa em algum lugar aqui em casa, mas revirando meus arquivos digitais encontrei a versão em .txt da matéria que fiz, que segue abaixo, na íntegra. Resolvi republicá-la agora porque muito do que Jello fala tem a ver com o que está acontecendo agora…

biafra

PRESIDENTE KENNEDY
Jello Biafra solta o verbo sobre globalização, processos judiciais, Sílvio Santos, alimentos transgênicos, protestos contra o FMI, corrida eleitoral, pornografia, Gordo na MTV, ecologia e a guerra santa da verdade das câmeras de vídeo!

Muito poderia ser dito à abertura de uma entrevista com Jello Biafra. Mas, sério, precisa? Jello fala pelos cotovelos e gosta, age ao telefone com a mesma verborragia cínica que destila nos microfones do planeta, misturando ideologia, economia global, preconceitos e arte num carregamento expresso de palavras cuspidas com firmeza de uma das línguas mais afiadas da história da música pop. Quase uma hora de papo com o cara pelo telefone explica muita coisa. Então tá: domingo de eleição (primeiro turno), cinco horas da tarde (a hora em que as urnas se fechavam – MUITO sintomático) e o telefone do cara na mão, me passado feito senha secreta pra detonar a bomba da terceira guerra mundial. Não era pra tanto. Era apenas mais uma das bombas verbais do presidente Kennedy, bem na minha orelha. Toca o telefone, duas vezes e atende. A secretária eletrônica.

Jello na secretária eletrônica – “O coelho Alba é um muito especial. Porque seu pelo brilha verde fluorescente no escuro. Não por causa da tintura de cabelo punk, mas porque Alba foi manipulado geneticamente para ser deste jeito pelo artista Eduardo Kac. Há muita controvérsia sobre formas de vida transgênicas para motivos frankenstalimentares, mas… artísticos? Descubra o que as pessoas pensam quando Alba será exposto em público no simpósio de Chicago chamado Arte, Ciência e Liberdade de Expressão: O Mundo de Eduardo Kac, que começa dia 17 de setembro, em Chicago”.

Olá Jello, aqui é Alexandre, do Brasil. Falei com a Michelle da Alternative Tentacles e se você estivesse em casa…
Jello Biafra – Alô.

Alô? Jello?
Jello Biafra – Sim.

Tudo bem?
Jello Biafra – OK.

Dá pra fazer a entrevista agora?
Jello Biafra – Claro.

Eu queria então que você começasse falando sobre as manifestações de Seattle contra as grandes organizações que representam a globalização, o FMI, o Banco Mundial, a OMC (Organização Mundial do Comércio)…
Jello Biafra – Você está gravando?

Sim.
Jello Biafra – Volte a fita para ouvi-lo.

Claro. (Voltei a fita, ele ouve a própria voz e consente).
Jello Biafra – OK.

Entre as formas que você poderia ter usado para falar o que queria, você preferiu cantar.
Jello Biafra – Eu cantei e discursei. E é bom frisar que não foram tumultos, que aquilo foi distorcido pela mídia corporativa porque alguns idiotas quebraram umas janelas. Quem tumultuou foi a polícia. Eu acho que é bom ponto para seu público, aprender como a mídia corporativa trabalha. Eles dizem que é um tumulto porque quebraram umas janelas mas não falam das 50 mil pessoas em paz.

Mas você acha que a música é a forma mais poderosa de atingir outras pessoas?
Jello Biafra – É uma delas. Você pode fazer isso falando, pelo rádio, filmando, pelo jornalismo. Todo mundo deveria fazer o que pode.

Mas a música parece agir de forma mais próxima, porque atua de uma forma mais emocional em relação às pessoas. Você concorda?
Jello Biafra – Houve uma discussão sobre como deveríamos fazer o show no final da manifestação, porque havia muitos policiais e tinha gás para todo lado. Estávamos presos dentro de uma casa de shows assistindo a polícia pela TV do lado de fora. Na noite seguinte ainda houveram problemas com a polícia, toque de recolher e o Michael Franti, do Spearhead, disse: “Agora, de todas as formas, as pessoas precisam de música”.

Um aspecto que parece ser positivo da globalização é o fato de você polarizar a discussão entre os que exploram e as diferentes forças intelectuais e ativistas de esquerda.
Jello Biafra – Não é tão simples. As forças da globalização ainda estão no controle. Eles ainda têm o dinheiro, o poder, a mídia e as armas. Mas essa é a mesma situação que a América assistiu quando algumas vozes solitárias começaram a pedir o fim da guerra do Vietnã, quando algumas vozes corajosas na América do Sul exigiram o fim de ditaduras militares arriscando a própria vida. Você tem que começar em algum lugar, mas o ponto é que isso está apenas começando.
Todo mundo tem de se envolver por todo mundo. Por exemplo, eu ouvi falar que há uma resistência no Brasil ao cultivo de alimentos geneticamente adulterados – ou deveria dizer, mutilados. Nos Estados Unidos, quase ninguém sabe que isso existe, que dizer que já está em nossa comida, agora. Ajuda quando as pessoas no Brasil, na Europa e agora na África e Índia resistem à franken-comida. Ajuda o fato das pessoas do Brasil ajudam o resto de nós salvar os Estados Unidos deles mesmos (ri).

Porque o capitalismo se vende como um paraíso, mas na verdade só oferece uma opção. Veja a atual campanha presidencial americana, em que os dois candidatos são praticamente o mesmo.
Jello Biafra – Sim, o mesmo, mas a maioria das pessoas por aqui não votam, que é o que as corporações querem. Eu estou tentando fazer as pessoas votarem porque existe um bom terceiro candidato chamado Ralph Nader, do Partido Verde. Mesmo se ele não ganhar, o que provavelmente não vai acontecer, a vitória não vem logo adiante: se ele ganha 5% dos votos, o dinheiro que o governo dá aos grande partidos durante a campanha virá de forma equivalente para o Partido Verde. Isso quer dizer 12 milhões de dólares americanos, no mínimo. Podem ser importantes para fazer crescer o perfil e a atenção do Partido Verde nos próximos anos.

Mas surte efeito jogar o jogo político com as regras de quem manda?
Jello Biafra – Eu acho que é melhor do que não fazer nada. A ação nas ruas é uma parte disso, mas a outra é tirar estes imbecis dos escritórios deles, que é uma coisa que ainda podemos fazer. A maioria das pessoas não sabe que estes outros candidatos existem, porque sua liberdade foi tirada pela censura da mídia. A notícia é que o Ralph Nader, do Partido Verde, existe. Mas outra razão para participar mesmo sendo pelas regras deles, é o princípio das artes marciais que fala para usarmos a força de alguém contra eles. Talvez não vamos ter um bom presidente, mas se as pessoas se fizerem ouvir, vão ter pessoas melhores nos escritórios governando cidades, escolas, estados… Não é só o presidente. A maior parte do dinheiro que é mandado do governo federal vai à instância local para ser decidido como ele será gasto, se será gasto em casas para os necessitados ou em um outro campo de golfe. Também é muito importante ver quem está mandando nas escolas, pois ao contrário farão as crianças terem aulas sobre a Bíblia.

E em paralelo a este jogo de mídia, há todo um poder no submundo da internet que não gosta de aparecer e faz tudo que tem de fazer longe do olho público. Qual é seu papel político?
Jello Biafra – Há trinta anos a mídia era independente e ajudava a policiar os governantes e as corporações mostrando como estes agiam de forma imbecil. Agora a mídia foi comprada por estas mesmas corporações e tornou-se basicamente numa vitrine de propaganda para as mesmas. O movimento de mídia independente começou a tomar o poder de volta deles à medida que as pessoas estão tendo a informação
real via internet, pela televisão pública ou microrrádios.
Por exemplo, a CNN disse que, em Seattle, a polícia estava agindo comportadamente e não houveram balas de borracha disparadas. E a mídia independente colocou no ar na internet em menos de uma hora, cenas de policiais atirando nos manifestantes com balas de borracha. CNN foi forçada a mudar sua história pois outras pessoas trouxeram suas câmeras também. Eu chamo isso a guerra santa da verdade do câmera de vídeo (camcorder truth jihad), quando mostra-se algo que não deve ser visto.

Mas como esse movimento consegue quebrar o ciclo que o público quer exatamente este ideal de felicidade?
Jello Biafra – Mas nem todas as pessoas, na América e no mundo, estão tão felizes agora. Falam de como a economia está ótima e como os Estados Unidos nunca foram tão ricos, quando apenas uma em cada cinco pessoas está se beneficiando deste boom econômico. Os outros 80% não tem porra nenhuma. São 80% das pessoas se fodendo e sem saber porquê. Eles podem não entender os motivos, mas aos poucos vão sabendo. Por exemplo, em Seattle, não eram apenas radicais, punks e hippies marchando contra a OMC, mas haviam os sindicatos também. Todo mundo desde metalúrgicos a pilotos estavam marchando lado a lado com pessoas que são normalmente tachadas de loucos. Isso é algo importante a ser salientado: os sindicatos não ajudaram a protestar contra a guerra do Vietnã, mas agora estamos do mesmo lado.

E qual vai ser a velocidade deste desenvolvimento político?
Jello Biafra – Ele vai acontecer. Vai ser difícil, mas tem de ser feito. Vai demorar pelo menos o mesmo tempo que demorou para parar a guerra do Vietnã, talvez mais. Porque desta vez o inimigo são as próprias corporações.

O presidente do Brasil também fechou esse acordo de fortalecimento da economia com o FMI…
Jello Biafra – …e ele deve! Caso contrário, eles descobrem uma forma de derruba-lo.

Deste jeito, nossas riquezas estão sendo aos poucos repartidas pelas corporações estrangeiras. Como você acha que o Brasil pode reagir a isso, uma vez que você conhece a história dos países latino-americanos?
Jello Biafra – Eu acho que é importante lutar o máximo que puder para preservar o que resta da Amazônia e suas tribos nativos. E educar o máximo de pessoas que a maior parte das riquezas vão para corporações multinacionais, não apenas americanas, mas européias e japonesas, e não para o Brasil. Há um discurso que diz que devemos explorar a Amazônia para tirar o Brasil da pobreza, mas não é isso que acontece. Os mesmos ricos tiram o dinheiro e tudo mais e todo o resto continua na mesma. Eu tenho a impressão que a maioria dos brasileiros apóiam a exploração das riquezas nativas.

Sim, porque vem embalado como progresso.
Jello Biafra – O importante seria apontar que isso não estava fazendo bem algum ao país. O Brasil parece um país muito nacionalista, então acho que a primeira coisa a fazer é falar o jeito que eles falam.

Além do fato que o inglês tornou-se uma espécie de uma segunda língua por aqui.
Jello Biafra – Muitas bandas daí cantam em inglês (ri).

Não apenas o Brasil, mas o terceiro mundo como um todo acaba parecendo um mutante entre a cultura americana e a cultura local.
Jello Biafra – Não apenas por causa da TV americana, mas a música também deve ser culpada.

Mas esta mesma música que aliena as pessoas, voltando ao início da entrevista, pode faze-la entende-las?
Jello Biafra – Sim. Você já disse isso, a música pode agir num nível emocional ou espiritual. Eu posso ouvir Ratos de Porão em português e ainda sentir a música, a energia, a emoção. Não são todos americanos que suportam isso, eles não conseguem ouvir outra música que não seja cantada em inglês.

Qual a imagem que o Brasil tem nos Estados Unidos?
Jello Biafra – Uma das piores partes sobre o fato das corporações controlarem a mídia é que a forma que eles censura alguns assuntos importantes existem pra valer. Então as únicas vezes que você ouve falar no Brasil é quando há um acidente de avião ou o time de futebol ganha. Os americanos não tem a menor idéia sobre o Brasil. Sabem que é na América do Sul, que tem muita floresta, que as cidades são muito poluídas… Os que sabem mais um pouco sabem que existe uma enorme desigualdade entre o mais rico e o mais pobre. Mas além disso, ninguém mais sabe mais nada. Eu acho que eu sei mais um pouco porque eu falo com brasileiros com mais freqüência, mas a maioria dos americanos, não, claro (ri).

Você esteve no Brasil em 92. Qual foi a sua impressão quando viu as coisas que já haviam lido sobre?
Jello Biafra – É difícil dizer porque eu não fui à floresta ou qualquer coisa do tipo… Eu só fui ao Rio e a São Paulo. Claro que as favelas eram muito chocantes, mas não surpreendentes. Um amigo brasileiro me levou a uma favela no Rio e ficamos lá à noite para ver uma banda que havia por lá. Há uma atmosfera de felicidade estranhamente diluída na superfície: as pessoas conversando com amigos e vizinhos e bebendo nas ruas… Mas consigo me lembrar de mais coisas além dos velhos discos brasileiros legais que eu encontrei lá. Primeiro foi descobrir que o que os americanos queriam forçar no tal encontro de cúpula (a Eco-92) que as corporações americanas poderiam entrar na Amazônia, pegar o gene de um animal e uma planta e dizer que era delas, vendo por um preço alto para alguém, sem pagar nada para as pessoas que mora lá. Outra coisa que eu me lembro, até comentei isso outro dia, que eu vi que haviam sacos plásticos nos mercados do Brasil do mesmo jeito que nos Estados Unidos. E disseram: “isso mostra como estamos evoluindo no mundo”, o que é justamente o contrário (ri).

E é exatamente assim que vivemos: achando que cada pequena nova coisa é algo que nos eleva e não o contrário.
Jello Biafra – Será mágico como um programa de TV americano. Mas por um outro lado, parece que em vez do Brasil ficar cada vez mais parecido com os Estados Unidos são os Estados Unidos que vão ficar mais parecidos com o Brasil. Um dos economistas do Ronald Reagan dizia que usava o “modelo brasileiro” para o futuro dos Estados Unidos: o rico fica bem mais rico, o pobre fica bem mais pobre e você aciona o poder militar e a polícia para ter certeza que ninguém reclame. Eu lembrei de outra coisa que eu vi no Brasil, era um programa de TV que só mostrava closes em gente morta, toda noite: gente que levou tiro, atropelados… E agora você vê o mesmo tipo de programa nos Estados Unidos.

Prepare-se então para a próxima onda, com mulheres esfregando a bunda na câmera…
Jello Biafra – Isso não me surpreende, não mesmo… Isso já tem aqui. Até os programas de debate, como Jerry Springer, em vez de pegar gente discutindo assuntos tem gente se pegando na porrada. Aí você muda para a Janie Jones e a grande pergunta do dia é “minha filha peituda está mostrando muita carne na escola?”, desfilando adolescentes com peitões na TV… É só sexo e violência, TV é isso. O que aconteceu com um apresentador em São Paulo que tinha um programa de jogos, que parecia um crocodilo e tinha um microfonezão saindo de dentro do peito?

(Rio)
Jello Biafra – Você deve saber de quem estou falando…

Sim, do apresentador Sílvio Santos…
Jello Biafra – Ele foi candidato a prefeito…

A presidente. Eles está na TV agora mesmo, enquanto conversamos. Hoje, inclusive é eleição para prefeito no Brasil.
Jello Biafra – Ele está concorrendo de novo?

Não, ele não chegou a concorrer. Ele só ameaçou fazer, para atrapalhar a disputa. Como o Ted Turner fez…
Jello Biafra – …Não lembro se ele fez isso, mas sei que ele sabe que tem mais poder onde ele está (ri).

Mas qual era a do programa, que você ia falar?
Jello Biafra – O mais louco era que na noite em que eu assisti, o grande prêmio era uma arma (ri)! O show acabava, começava a chover papel do teto, os créditos subiam e ele e a mulher que ganhou o prêmio estavam atirando com suas armas felizes e satisfeitos. Não chega a ser tão estranhos quanto os programas de TV no Japão, mas… Mesmo dando um prêmio como uma arma num programa de TV e ao mesmo tempo tem um show com fotos de cadáveres… Isso é uma forma de dessensibilizar as pessoas em relação à violência. Tentar provar para as pessoas que aquilo é normal. E isso está acontecendo nos Estados Unidos também… Embora não haja nenhuma revista como a Rudolf nos Estados Unidos (ri). Muito menos vendida em bancas de rua onde crianças podem ler…

…e comprar.
Jello Biafra – É estranho. Se o país é muito religioso, fervorosamente católico; o outro lado é tão fervoroso também. Tem uma loja de souvenirs no Corcovado que vende filmes pornô (ri)!

Mudando um pouco de assunto, eu queria que você falasse da briga judicial entre a Alternative Tentacles e os ex-Dead Kennedys.
Jello Biafra – Foi a coisa mais escrota que já aconteceu em toda minha vida. Gastei um bom tempo tentando lembrar as pessoas da nossa música e o que ela significava elas, quando tudo o que eu queria era que eu não tivesse conhecido esses imbecis. Eu não vou deixar eles colocarem “Holidays in Cambodja” numa propaganda da Levi’s. Então eles vieram atrás de mim com um grande advogado corporativo que também representa o Journey, o Boston, os Doobie Brothers e o Santana, e eles estão me processando por não ser corporativo, tentar destruir a Alternative Tentacles e roubar a música. Eles ainda mentiram ao dizer que escreveram todas as minhas músicas. Dizendo que eu estava roubando dinheiro deles quando na verdade eu havia os pago. Para o choque de todos, incluindo deles mesmos, o júri acreditou nisso. E agora, mesmo estando num puta rombo financeiro, eu tenho que juntar grana para apelar na justiça. Nesse meio tempo, eles estão tentando vendendo o catálogo dos Dead Kennedys o quanto antes sem se preocupar com nada. Por isso se você ver qualquer disco da Alternative Tentacles por outra gravadora NÃO COMPRE. Eles ainda usaram dinheiro que roubaram de mim para pagar o advogado deles. Eles não ligam para o que a banda significou, só querem dinheiro.

Quando você vai apelar?
Jello Biafra – Ainda não. Estou me preparando. Toda essa coisa influencia meus sentimentos a respeito do Napster, do download de músicas… Se eles conseguirem tirar minha música de mim, então o Napster será meu melhor amigo.

E o que você acha do Napster hoje?
Jello Biafra – O Napster deve ser destruído em breve pelas grandes gravadoras. Mas logo uma nova tecnologia que será mais difícil de destruir irá substituí-lo. Isso faz parte da bela e a fera que é a internet: não importa que tipo de garras que ponham no caminho e fechem as coisas; sempre haverá um moleque chateado de qualquer idade que irá encontrar um jeito de foder com aquilo (ri)!

Aproveitando a deixa, o que você acha sobre a questão dos direitos autorais. O formato tem que ser mudado?
Jello Biafra – Provavelmente. Agora mesmo estou lutando pelos direitos das minhas próprias músicas (ri). Querem roubar para coloca-la em comerciais e filmes de merda. Mas por outro lado, eu não sei o que vai acontecer. Eu não estou tão preocupado com o Napster ou com essa tecnologia, porque já acabou. Não vai fazer tão mal quanto alguém gravar um filme da televisão ou xerocar parte de um livro para um jornal da escola. Muitas pessoas que usam Napster não o fazem para roubar música, mas para ouvir antes de comprar. Você baixa uma música e se gostar, vai procurar o disco. Demora muito tempo para baixar um CD inteiro no Napster. Tanto tempo que o usuário prefere pegar o CD.

E ao mesmo tempo, conseguem baixar músicas de bandas independentes.
Jello Biafra – Eu espero que as pessoas apóiem a música independente. Porque o Napster pode começar a machucar pequenos músicos, que não têm muita grana e dependem da venda do Napster. Mas até aí eu sou pró-Napster. Eu tenho que ir (espreguiça-se).

Legal, Jello. Ótima entrevista.
Jello Biafra – Você também gostaria de saber que tem um disco novo meu, que é só falado, que vai sair agora em novembro, que chama-se Become the Media. E um novo EP do Lard chamado Seventies Rock Must Die.

Become the Media (torne-se a mídia) é um conselho?
Jello Biafra – É um grito de guerra. Torne-se a mídia ao tornar-se parte da guerra santa da verdade da câmera de vídeo. Pegue os policiais que bateram em Rodney King e os caras atirando balas de borracha – esta é a guerra santa da verdade. Apoie zines, rádio, música, a cultura independente… E, claro, apoie a cultura independente ao não dar dinheiro para grandes lojas em cadeia – sejam lojas, restaurantes… Tornar-se a mídia significa ser didático com as pessoas de casa, na família, na escola… Quando ouvir bobagens como “vou votar em Gore porque o Bush é pior ainda”. Conte a elas… a verdade.

Planos para vir ao Brasil?
Jello Biafra – Não por enquanto. Eu gostaria voltar, mas não parece que eu possa ir agora. Eu estou no meio de uma batalha legal…

Quando a revista sair, eu faço o possível para ela chegar em suas mãos.
Jello Biafra – Acabamos de lançar um disco novo do Ratos de Porão, o Crucificados pelo Sistema, que é uma regravação do primeiro álbum. Tá muito mais insano agora. O primeiro é muito bom, mas eu fiquei surpreso com esse novo…

Você sabia que o Gordo trabalha na MTV Brasil?
Jello Biafra – É engraçado, porque ele nega. Mas eu prefiro ter o Gordo na MTV que a Britney Spears. Ele é um exemplo bem mais positivo para jovens em todo mundo do que o mais novo clone pop americano.

Tá bom Jello. Valeu.
Jello Biafra – OK. Tchau.

Força bruta

Stooges, protopunk e cena paulistana de roque, pra capa de uma Rockpress das antigas.

***

Stooges contra tudo

Algo aconteceu no final dos anos 60. Uns culpam conjunções astrais, outros a era de ouro do capitalismo – o certo é que os hormônios da sociedade ocidental estavam em plena ebulição, uma menopausa às avessas que o planeta parece sofrer de cinqüenta em cinqüenta anos. A guerra do Vietnã servia de pretexto para uma geração inteira abandonar as regras impostas por seus pais e professores e descobrir formas próprias de cair fora do sistema. Os movimentos feministas e pró-direitos civis ganhavam força em nível mundial, ao mesmo tempo em que a América Latina sucumbia a seu período de ditaduras militares. A África vivia o ápice do processo de descolonização enquanto alunos matavam pais e professores com respaldo de Mao, na China. Tempos difíceis e interessantes, o mundo caía em uma dicotomia que abriu uma vala entre duas ideologias políticas e dois modos de vida, tendências cujas seqüelas ainda sofremos até hoje.

Mas os Stooges não se importavam. Para eles, era pouco. Como se as mudanças que o mundo atravessava fossem mais uma pequena amostra do poder de transformação do que uma mutação definitiva. As coisas ainda estavam inteiras, a raiva ainda estava contida, o máximo que víamos eram duelos entre estudantes e polícia, pouquíssimos contra-atacaram com a mesma violência do sistema. Faltava destruição. Com o mundo dividido em dois, quase toda intelectualidade migrou para o lado não-capitalista da disputa – mas poucos pegaram em armas. Muito foi dito e escrito sobre os anos 60, mas foram poucos que foram lá e deram o próprio sangue.

James Osterberg não havia dado sangue até a metade de 1966. Até então, apesar de considerado um dos melhores bateristas entre a turma de adolescentes da minúscula Ann Arbor, subúrbio de Detroit, no estado americano do Michigan, ele ainda era um moleque comportado, que estudava para as provas, vestia-se bem para paquerar as garotas e morava com seus pais num trailer. Foi a música quem o obrigou a entrar em contato com os irmãos Asheton (Ron e Scott) e seu amigo Dave Alexander. Estes três tocavam em diferentes bandas da cidade e eram conhecidos na vizinhança por sua fama de arruaceiros – quando ser roqueiro significava andar fora da linha. Em 1965, Scott e Dave venderam suas motocicletas e foram para a Inglaterra, “ver os Beatles em Liverpool”. Não deu certo, mas assistiram a shows memoráveis, como o único show do Who no Cavern Club. Vendo a excitação dos ingleses e a facilidade que eles tinham para fazer músicas e shows, os dois voltaram para o meio-oeste americano prontos para montar sua própria banda.

O mesmo havia acontecido com James, que saiu de Ann Arbor em 66 por recomendação do guitarrista Mike Bloomfield, que o baterista tinha ido adular após um show da Paul Butterfield Band em Detroit. Conhecido por Iggy por ter mantido o apelido de sua antiga banda (The Iguanas), ele foi para Chicago encontrar o verdadeiro blues. Passou a percorrer a periferia barra-pesada daquela cidade, onde era o único branco a freqüentar os shows. Mas logo havia percebido o melhor daquela música – deixar que ela saísse naturalmente, como a extensão natural de seus sentimentos.

Foi um baseado fumado às margens de uma estação de tratamento de esgoto que fez com que Iggy visualizasse seu futuro. “O lance é tocar meu próprio blues simples”, pensou enquanto experimentava maconha pela primeira vez, sozinho. Maquinava aquelas idéias quando foi ao primeiro show dos Doors em Detroit. Na platéia, a multidão só queria ouvir a banda que havia gravado “Light My Fire”. No palco, Jim Morrison cantou o show inteiro em falsete, provocando a platéia. Iggy não se aguentava, Jim fazia o que ele achava que devia ser feito, confrontava o público ao mesmo que o seduzia. “Se esse cara pode fazer isso, eu também posso”, pensava enquanto sorria vendo o grupo à sua frente, “E tenho de fazer agora, não posso esperar!”

Quando Iggy encontrou os irmãos Asheton, a explosão foi imediata. Tudo que eles queriam fazer era liberar aquela energia adolescente confrontando o público, despejar o triplo de vibração que sentiam com mais agressividade e violência. “Vamos por Dave Alexander pra tocar baixo, eu pego a guitarra e meu irmão toca bateria em qualquer coisa que dermos pra ele”, disse Ron Asheton, que logo perguntou o que Iggy faria. “Não se preocupem: farei algo”.

Quando encontraram Iggy, ele estava com as sobrancelhas raspadas, papel alumínio na cabeça e vestido num enorme macacão branco. Os irmãos Asheton começaram a rir quando o viram e lembraram de um vizinho chamado Jim Pop, um débil mental que raspava os pelos do rosto. Entre risadas, começaram a chamá-lo de Iggy Pop. Pegou.

Horas depois, estavam no palco do Grand Ballroom, em Detroit. Um ruído insuportável saía das caixas de som antes mesmo da banda subir no palco – era um liquidificador plugado na mesa de som. Logo depois, deram início a uma rotina de destruição cênica e sonora que se tornaria clássica com o tempo. Ron Asheton tocava sua guitarra ao lado de um aspirador de pó, que grudava no microfone sempre que largava seu instrumento. Iggy sapateava sobre uma tábua de lavar roupa devidamente microfonada, enquanto Scott martelava (literalmente) dois enormes galões de óleo. A grande maioria do público odiou aquilo e Iggy vomitava sua raiva incontida sobre aqueles que ficaram para vaiar. Entre os poucos felizes com aquilo estava o líder hippie John Sinclair, que mais estava cooptando outra banda de Detroit (o MC5) para clamar sua revolução à americana:

“Era uma porra tão real que era simplesmente inacreditável. Iggy não se parecia com nada já visto. Não era como uma banda, não era o MC5, nem Jeff Beck, como não era coisa nenhuma. Iggy criou um número hipnótico psicodélico como pano de fundo para suas palhaçadas na linha de frente. Os outros caras eram literalmente escadas (stooges) para suas palhaçadas. Eles apenas deixavam aquele tremendo zumbido rolar, como compassos dementes. Estavam tão perto da música do norte de África quanto do rock. E lá estava Iggy, dançando como se Esperando Godot tivesse virado um balé. Ele não era Roger Daltrey, se você entende o que eu digo”.

Danny Fields, o maluco que a gravadora Elektra contratou para descobrir novos talentos, também ficou impressionado com o primeiro show que viu do grupo: “Era 22 de setembro de 1968. Não posso minimizar o que vi no palco. Nunca tinha visto ninguém dançar ou mover-se como Iggy no palco. Nunca tinha visto tanta energia atômica vindo da mesma pessoa. Ele dançava movido pela música, como são os grandes dançarinos. Era a música que eu havia esperado minha vida toda para ouvir”.

Fields conseguiu um contrato para o grupo após Iggy Pop mandá-lo pastar quando foi procurá-lo atrás do palco. Não que Pop rejeitasse a idéia de um contrato – simplesmente não acreditou que aquele sujeito fosse de uma gravadora. Quando o dono da Elektra, Jac Holzmann, os chamou em sua sala e perguntou se eles tinham material para compor um álbum, a resposta foi positiva. Mas era mentira – tinham apenas três músicas próprias e compuseram o resto do primeiro álbum no final daquele dia.

Stooges, o primeiro disco do grupo, foi gravado por John Cale por indicação de Danny Fields. Cale havia acabado de sair do Velvet Underground e Fields deu-lhe a oportunidade de fazer algo ligado ao rock, já que este parecia disposto a voltar à música de vanguarda. Quando o grupo começou a tocar no estúdio, com amplificadores no último volume, Cale acabou com a alegria do grupo. Não dava pra gravar daquele jeito e os Stooges ficaram putos com ele. Apesar da negação, Cale queria que o grupo soasse alto e sabia que este recurso se consegue com uma boa produção – tocar ao vivo no estúdio não funcionava, fazia o som soar capenga. A contragosto, eles gravaram baixo. E o entusiasmo do grupo seguiu o volume. Por isso o primeiro disco do grupo não tem a energia que eternizada por sua reputação. Mas lá estão os clássicos: “I Wanna Be Your Dog” é o antiblues, pedindo pelo sofrimento; as monumentais “1969” (“outro ano pra você e eu/ Outro ano sem nada pra fazer”) e “No Fun” são hinos à apatia de uma adolescência sem transformações; “We Will Fall” e “Ann” cambaleiam como gigantescas rochas que prenunciam uma avalanche e esta vem com “Little Doll”, “Not Right”, “Real Cool Time”…

Mas o impacto do disco de estréia não seria sentido no vinil. Em sua primeira turnê, o grupo definiu o limite que o grupo tinha frente ao excesso: nenhum. Ao ir para Nova York, tudo estava perdido. Uma platéia de intelectuais e foras-da-lei foi seguidas vezes aos quatro shows que o grupo deu em sua estada na metrópole. Lá, tinham tudo à disposição: mulheres, drogas, bebidas, moral e dinheiro.

A colisão do pequeno grupo caipira com o bas-fond nova-iorquino foi fulminante. Na primeira apresentação, Iggy entrou no palco e vomitou na platéia. Na segunda, jogou-se sobre o público e caiu sobre Johnny Winter, que estava ao lado de Miles Davis. Este riu à beça da performance do grupo e convidou-o para cheirar uma montanha de cocaína em seu apartamento, para depois sair por Nova York elogiando o trabalho do grupo. Iggy atirava coisas na platéia, que atirava de volta. Ácidos, baseados e picos davam lugar às refeições. Era o caos.

Mas a recepção era boa – coisa que não aconteceu quando o grupo continuou sua turnê. Na maior parte dos lugares em que tocaram, o público em geral reagiu mal e quase sempre os shows acabavam em confusão – vários em briga, a banda no braço com o resto da platéia. Ao mesmo tempo, iam se envolvendo com heroína. Mas era Iggy quem fazia a diferença – lambuzava-se de pasta de amendoim e jogava-se sobre o público, cobria-se de tinta, vomitava, rolava sobre cacos de vidro, comia hamburgueres de boca aberta, deixando pedaços de carne mastigada rolar pelo peito nu. E ameaçava o público. Xingava, provocava, puxava para a briga, entrava na platéia socando, misto de mosh com pogo antes dos dois terem sido inventados.

Para o segundo disco, Funhouse (batizado em homenagem à casa em que moravam), não havia outra forma de gravação – o grupo estava tão destroçado que só conseguia tocar como se fosse um show. Convocaram o saxofonista Steve McKay para tapar os buracos de algumas canções e gravaram tudo ao vivo. Para a produção, foi chamado o mesmo Don Gallucci que assistiu os Troggs gravarem “Louie Louie”. O disco abria com a brutal “Down on the Street”, que não esperava nem um minuto inteiro para explodir o som rumo ao espaço. Tudo caía aos pedaços, como escombros após uma explosão – mas com a firmeza e pulso característicos do rock’n’roll. “Loose”, “T.V. Eye”, “Dirt”, “1970”, “Fun House”, até a apocalíptica “L.A. Blues”, que destroçava o resto de música que existia no disco ao elevar o sax de McKay aos limites ignóbeis do free jazz.

Depois disso, o grupo acabou. Foi dispensado pela gravadora (mesmo com o próximo disco – Raw Power – composto), caçado pelo imposto de renda, pela polícia e por um grupo de traficantes com que Scott havia se metido. Após um acidente com um caminhão que destruiu uma casa, uma ponte, o caminhão e todo equipamento alugado pela banda, entraram numa paranóia sem limites e transformaram a antiga funhouse num bunker antimotoqueiros. Com o dinheiro da venda de drogas, compraram armas pesadas e ficaram à espera de inimigos que não vinham. Com aquela quantidade de armas e nada pra alvejar, destruíram a própria casa com tiros de grosso calibre.

Com o fim, o grupo tornava-se uma lenda. Mas não havia mais para onde ir. O dia seguinte da primeira vinda dos Stooges não deixou pedra sobre pedra e o grupo não teve outra opção senão voltar para suas próprias casas. Na formação, um racha: Dave Alexander havia sido demitido por Pop depois de uma balada baixo astral. E um elemento alheio havia se infiltrado na cúpula do grupo – James Williamson é descrito como “uma nuvem negra baixando nos Stooges” pela irmã dos Asheton, Kathy. O que, em se tratando do grupo, só tinha um sentido.

Mas a sorte continuava sorrindo para eles quando David Bowie os descobriu do outro lado do Atlântico. Começa a ser um nome de sucesso, devido às suas entrevistas francas e hits comportados, mas ele queria mais. Através dos discos dos Stooges e do Velvet Underground, Bowie descobriu uma América do contra, um submundo de perversão e corrupção que parecia ser o único lugar que permitiria (como mais tarde permitiu) a melhor música daquela época existir, num país careta daqueles. E o imaginário de sexo, drogas e destruição que tanto Iggy Pop quanto Lou Reed descreviam em suas canções era perfeito para uns bons meses de farra.

E assim aconteceu: Bowie foi para os Estados Unidos, catou Iggy e Lou, e resolveu se esbaldar. No meio da baladaça, perguntou se Iggy queria reformar os Stooges e James Williamson deu seu jeito de entrar na história, armando um disco gravado na Inglaterra. Todos estavam tão chapados de todas as formas que Iggy esqueceu de avisar aos Asheton, que vinham acompanhando toda a zona desde o começo. A chegada de Bowie à América causou um tipo de comoção às avessas, uma vez que a parte suja dos Estados Unidos que queria deslumbrar o astro inglês com aquilo que ele vinha procurar – fartura de realidade e reputação junto à rua.

Iggy e James voaram para a Inglaterra, onde, depois de tentar várias músicos, chamaram os irmãos Asheton para o baixo e a bateria. Assim, gravaram Raw Power, que teve seu som “amaciado” por David Bowie na mixagem (uma versão recente, com o dedo de Iggy Pop, corrigiu esse erro). A sonoridade dada por Bowie tirou todo poder de ataque do grupo ao vivo, que voltava a se equilibrar perto do fim. Uma turnê em Los Angeles fez com que o grupo instalasse morada na capital do excesso, uma combinação ingrata. Ninguém mais suportava os Stooges e seus shows iam ficando cada vez mais sem limites. Agora era a platéia quem encarnava a violência de Iggy, com resultados catastróficos.

O último show do grupo aconteceu em Detroit, em 1974. Uma gangue local os havia jurado de morte e o show começou com uma chuva interminável de pedras e garrafas. Iggy sequer se intimidava, gostava do clima pesado: “Alguém tem mais cubos de gelo, ovos ou granadas que queiram tacar no palco? Vocês pagaram, agora agüentem. Vamos ouvir o cantor. Eu sou o melhor… Obrigado pelos ovos. O que eu ganho se juntar uma dúzia de ovos? Ouçam, eu jogo ovos melhor que vocês. É hora das garotas do tumulto? TUMULTO. Me dá uma toalha pra eu tirar essa gema. Eu não quero que me vejam com gema na cara. Oooh baby. C’mon mama… Lâmpadas também? Copos? É, estamos ficando violentos… Tem dois subindo no palco. Temos que sair. Vejo vocês depois”. Quando um sujeito começa a esmurrar Iggy no palco. O cara sai, Iggy pega o microfone, todo fudido, e diz que, depois dessa, o público merece uma versão de 55 minutos de “Louie Louie”. E isso está tudo em disco, no pirata Metallic K.O.

E assim o grupo acabou. Mas seu legado apenas começara. Em Nova York, seguidores fiéis compactavam seu som e misturavam com rock bubblegum dos anos 50 – eram os Ramones. Em Londres, eram citados por ninguém menos que os mestres da revolução, quando os Sex Pistols cantavam “No Fun”. Iggy Pop era tratado como uma lenda viva do punk, mas foi para Berlim no auge do movimento gravar discos solos com David Bowie. Iggy conseguiu se equilibrar entre o showbusiness e a sarjeta, limpou-se de vez no começo dos anos 90 e hoje continua firme. Os Asheton montaram um New Order antes do homônimo grupo inglês que não vingou e mais tarde Ron assumiria as guitarras do Destroy All Monsters. De vez em quando aparecem em discos dos outros, como convidados, mas vivem uma vida mais normal que a sua. A última aparição de um deles foi quando Ron gravou “T.V. Eye” para a trilha de Velvet Goldmine, ao lado de Mike Watt, Thurston Moore, Don Fleming e Mark Arm, todos discípulos fiéis dos Stooges.

***

PROTO-O QUÊ?

Clash, Ramones, Buzzcocks, Joy Division, Sex Pistols, X, Jam, Television, Fall, Cars, U2, Black Flag, Wire, Hüsker Dü, UK Subs, Suicide, Blondie, Dead Kennedys, Smiths, Echo & the Bunnymen, Richard Hell & the Voivods, Talking Heads, B-52’s… Toda a geração de bandas que pode ser englobada no chamado período punk da história do rock (que agrupou diferentes tendências como punk, hardcore, new wave e pós-punk) não teria existido sem dez anos de barulho curtido no underground americano. Toda a cena faça-você-mesmo que explodiu com o punk e criou a “segunda via” do mercado de rock no planeta não aconteceria da mesma forma não fosse um punhado de bandas ilustres e diversas bandas anônimas de uma elite comportamental chamada de protopunk.

Quem mandou o automóvel ser a moeda corrente da primeira fase do capitalismo do século 20. Afinal, foi o primeiro supérfluo (transporte público serve pra quê?) a ser vendido como indispensável pelo mercado e, como tal, logo virou sinônimo de status. Aos poucos, a garagem se tornava cômodo indispensável em qualquer residência a partir dos anos 40. Mas com o declínio da economia americana nos anos 60, o carro logo foi o primeiro indispensável a ser descartado pela classe média americana, deixando milhares de garagens livres pela América. Logo, toda casa tinha uma sala de ensaio perfeita pra qualquer tipo de banda, recurso que até hoje é seguido, como um sacramento.

Seu uso efetivo começou com a invasão britânica. Depois que os Beatles oficializaram o rock como gênero inglês, dando oportunidade para vários jovens conterrâneos arqueólogos do blues americano entrar no mercado fazendo seu próprio som, o próximo passo desta ascensão seria entrar nos Estados Unidos. Quem vencesse na América, vencia no mundo e foram os Beatles quem deram o primeiro passo. Deram sorte: os Estados Unidos ainda não haviam se recuperado do assassinato de seu querido presidente JFK quando os cabeludos ingleses desceram por lá. Com a Beatlemania, todas as bandas de rhythm’n’blues inglesas migraram para os EUA, na vã tentativa do sucesso. Todas elas emplacaram ao menos um hit e constituiriam, mais tarde, a primeira geração da era de ouro do rock.

Como reza a terceira lei de Newton, a chegada dos ingleses provocou um verdadeiro chamado às guitarras na terra do Tio Sam. Foi quando adolescentes por todo país montaram suas bandinhas e foram em direção às paradas. A grande maioria trombou no mínimo sucesso e uma parte deste grupo emplacou dois ou três hits no resto do país. Tocando guitarras sem muita técnica e com muito barulho, bandas como Sonics, Troggs, Kingsmen, Seeds, Music Machine e outras semidesconhecidas cruzaram os Estados Unidos sobre um único hit, transformando suas apresentações em festas explosivas de energia juvenil. Mais que as apresentações inglesas, os grupos americanos tinham uma identidade imediata com o público e cada vez mais gente se empolgava a pegar uma guitarra. Para estes, uma geração bastarda da cruza da surf music com o rock inglês, “Louie, Louie” era o hino.

Foi exatamente no meio dos anos 60 que várias diferentes correntes do mercado musical se encontravam: a Beatlemania se esgotava e os próprios Beatles procuravam outros artifícios sonoros, a música folk saía imediatamente de moda – primeiro pela debandada de Bob Dylan para o rock, depois pelo surgimento do então novíssimo folk rock -, a técnica passaria a ser quesito indispensável em qualquer músico, a psicodelia transformava a cabeça de jovens londrinos. A quantidade de grupos que nasceram neste período é incomensurável e os nomes (Chocolate Watch Band, Jefferson Airplane, Captain Beefheart & His Magic Band, Grateful Dead, Doors, Frank Zappa & the Mothers of Invention, 13th Floor Elevators) ajudavam todas a confundir-se entre si.

Três bandas distinguiam-se radicalmente das outras. A primeira delas, o Velvet Underground, era fruto do encontro de Lou Reed com John Cale, dois jovens estudantes de vanguarda dispostos a quebrar convenções impensáveis de seus meios. Reed vinha da literatura, cantava a marginália de forma suntuosa e fazia bicos em gravadoras, compondo músicas bobas de amor para grupos de doo-wop. O galês Cale vinha da música contemporânea, músico prodígio desde menino, foi para Nova York estudar com os grandes mestres da nova música, como John Cage, LaMonte Young e Cornelius Cardew e queria flertar com o lado feio da música pop. O casamento dos dois gênios era explosivo e completado pela microfonia indomável de Sterling Morrison e pelo metrônomo unissex chamado Moe Tucker dava origem a um turbilhão sonoro sem precedentes até então. Barulho, melodia e vanguarda são dispostos lado a lado e tratados da mesma forma. Apadrinhados por Andy Warhol, tiveram que gravar um álbum com a cantora húngara Nico, que nunca realmente pertenceu ao grupo. The Velvet Underground and Nico, de 1967 (o disco da banana), é obra fundamental em qualquer estante de amantes de música popular moderna. O disco seguinte, White Light/ White Heat, trazia um turbilhão de ruído nunca ouvido antes em disco, um amálgama de ritmo e barulho que destruía o chão a cada pisada. Os dezoito minutos de dois acordes que arrastavam-se por Sister Ray, populados por uma orgia de travestis e marinheiros entupidos de heroína, falam por todo disco.

A saída de Cale levou o barulho para longe do Velvet. Com Cale, o lado erudito contemporâneo de destruição da música era posto de lado em favor do artesanato pop praticado por Lou Reed, que assegurou o repertório do grupo por outros dois discos e anos. John Cale saiu do Velvet a contragosto e resolveu despejar aquela raiva em sua carreira solo – o que incluía seu trabalho como produtor. Foi ele quem comandou as primeiras sessões em estúdio do segundo grupo desta leva de desajustados. Os Stooges de Iggy Pop aceitaram ser produzidos por um músico metido da cidade grande, que logo os impôs às limitações do estúdio – onde uma grande banda de palco pode soar meia-boca. As gravações soam cansadas, mas qualquer pirata do grupo naquele 1969 (“Outro ano sem nada pra fazer”, resmungava Pop) traduzia o dínamo autodestrutivo que era o grupo.

No palco, ninguém pegava os Stooges. Suas apresentações levavam o conceito de caos aos limites do possível, com o grupo colidindo de frente com a platéia, através do som e da fúria. Cuspindo as vísceras artísticas pra fora, os Stooges eram um atentado aos bons modos que o rock de sua época acabava parecendo, seja a piromania de Jimi Hendrix ou o quebra-quebra do The Who. Ao lado dos Stooges, na mesma cidade, um terceiro grupo completava a linha de frente do proto-punk. Erguendo a bandeira da desordem como nova religião, o MC5 (o quinteto da Motor City) era o lado mau dos Rolling Stones, o que Jagger e cia. diziam ser. Citando referências tão diferentes quanto Nat King Cole e Sun Ra, o grupo encabeçava o movimento Panteras Brancas, do ativista político de araque John Sinclair, um hippie que preferia disfarçar suas verdadeiras intenções numa bandeira política. Mas para o MC5 não havia disfarce: ele explicava com todas as letras seu intuito – sexo, drogas, rock’n’roll e nenhum outro motivo, o prazer e a diversão ficavam em segundo plano em relação ao excesso. “Irmãos e irmãs!”, berrava o cabeludo Rob Tyner como pastor de uma nova religião. Wayne Kramer e Fred “Sonic” Smith (que mais tarde casou com Patti Smith) grunhiam em resposta, ao mesmo tempo que Dennis Thompson e Michael Davis empurravam o ritmo com bateria e baixo. Um disco gravado ao vivo – Kick Out the Jams – é o melhor registro da truculência do ROCK (com maiúsculas) do grupo.

Com os anos 70, todos pasteurizaram seu som – o MC5 lembrava um grupo hippie tocando clássicos do rockabilly em Back to the USA, os Stooges pareciam escondidos embaixo dos escombros graças à mixagem de David Bowie em Raw Power e o Velvet Underground gravou uma coleção de hits radiofônicos batizada de Loaded. Os três grupos logo acabariam, mas seus estilhaços podem ser sentidos em duas outras bandas – os New York Dolls e os Modern Lovers.

As duas eram opostas como dia e noite. Os Dolls vinham de diversas bandas de Nova York que só queriam farra. Vestidos de mulher, David Johansen, os guitarristas Johnny Thunders e Syl Sylvian, o lendário baixista Arthur Kane e o baterista Billy Murcia, tomaram o subúrbio da capital do mundo de assalto, com uma resposta suja e grotesca ao glam rock inglês. “Tanto em tão pouco tempo” era um dos lemas do grupo, que batizou o primeiro disco. A sonoridade era mais rock’n’roll do que propriamente punk rock – o groove da banda saía do mesmo lugar do dos Rolling Stones -, mas a altura do som e a presença de palco do grupo antecipavam o gênero que começava a borbulhar. E o picareta inglês Malcolm McLaren assistia de perto – tanto que pegou os Dolls como empresário e os tentou transformar numa banda comunista (?), toda de vermelho, com uma bandeira da União Soviética ao fundo.

Ficando com a metade tímida dos primórdios do punk, os Modern Lovers de Johnathan Richman eram o extremo oposto dos Dolls. Com sua Stratocaster e sua insegurança ao encarar o palco, Richman só podia cantar canções como aquelas – “I’m Straight” (“Eu Sou Careta”), “Pablo Picasso” (“Pablo Picasso nunca foi chamado de cuzão, como você”) e “Hospital” (narrando a espera da namorada num pós-operatório). Com Jerry Harrison (futuro Talking Heads) e Chris (futuro Cars) na primeira e clássica formação de seu grupo, Richman transformava canções sem graça em hinos de rebeldia adolescente, culminando com o maior de todos, o clássico estradeiro “Roadrunner” (e seu refrão “Radio on!”). As primeiras demos, produzidas por John Cale, só apareceram como disco quase um ano de terem sido gravadas.

Logo depois, o sonar da música pop cairia em Nova York. Depois que o glam rock esvaziou-se em Londres e os hippies da Califórnia estagnaram nos montes de dinheiro dados por gravadoras, foi a vez de um grupo de moleques descobrir um velho bar de motoqueiros que funcionaria como bunker de toda uma geração. O CBGB’s funcionou de base para bandas como diferentes como o Television, os Ramones, o grupo de Patti Smith e embriões de bandas que mais tarde seriam o Blondie, o B-52’s, o Talking Heads, os Cars, os Heartbreakers, os Voivods. Aquele impulso garagesco tomou conta de uma cena que passou a despertar interesse primeiro da imprensa, depois das gravadoras. Com seus discos debaixo do braço, eles levaram seus shows para o outro lado do Atlântico e para a costa oposta dos Estados Unidos, fazendo as cenas londrina e angelena brotarem. O punk havia nascido.

***

Protopunk à paulistana
Nos subterrâneos do rock paulistano, uma cena caminha no limite entre o ritmo, o barulho e a psicodelia. Qualquer semelhança com Nova York no começo dos anos 70 não é mera coincidência…

Tá certo que São Paulo teve sua cena protopunk nos anos 60, mas ela era, no máximo, uma versão mais vigorosa da Jovem Guarda. A violência e a fúria que descambaram no punk no final dos anos 70 teve de ser importada do exterior para nascer no concreto paulistano. Mas se, na época, o protopunk não teve a brutalidade suficiente, uma geração amadurecida durante os anos 90 equilibra as mesmas doses de psicodelia, barulho e rhythm’n’blues que seus antecessores americanos.

No centro do furacão, um trio de veteranos com histórias para contar. Marquinho veio dos Pin Ups, onde tocou bateria em toda chamada “fase de ouro” do grupo paulistano, sobrevivendo ao caos de grito e desespero que foram os bastidores deste conjunto em seu auge. Adriano “µ” Cintra calvagou outro caos, o inferno ambulante chamado I Love Miami, cuja existência bizarra vale uma biografia à parte. Sandro Garcia pode ser considerado o pioneiro de toda essa geração. Convicto em ser mod, fundou os Charts e dentro deste foi descobrindo todas as diferentes vertentes desta geração. Todos abandonaram suas bandas na mesma época (1995, o ano da seca de bandas no país) e começaram a construir nova carreira no mesmo ambiente.

É quando começa a gravadora Ordinary, comandada por Marco e sua esposa Deborah Cassano, a Debbie, e assessorada por Adriano. Juntos, Marco e Adriano respondem por duas das bandas mais importantes da cena. De mesma formação (os dois nas guitarras e o baterista Rodrigo), as duas bandas diferem-se pela abordagem musical. Enquanto o Butchers’ encarna a mesma versão suja dos Rolling Stones que o Pussy Galore imaginou em seu Exile on Main Street, de 85; o Red Meat é o que os Afghan Whigs seriam se Greg Dulli trocasse estilo por culhões, explodindo soul e rock’n’roll em alta combustão. Adriano ainda responde pela one-man-rock-band Ultrasom, que ultrapassa referências pessoais para abraçar o papel de guitarreiro solitário, uma espécie de trovador rock’n’roll (no bom sentido).

Gravando em seu próprio estúdio (Ordinary Studios, claro, na garagem do casal ordinário), o núcleo lança discos com uma velocidade muito difícil de acompanhar, dando faixas e fazendo remixes de suas músicas para lançamentos semioficiais. Sandro acompanhou o crescimento da Ordinary de seu estúdio particular, o conhecido Quadrophenia. Logo, Ordinary e Quadrophenia criaram uma cena ao redor daqueles caras que falavam de bandas antigas obscuras e de novas semidesconhecidas – e que tocavam aquela sonzeira.

Sandro suspendeu as atividades dos Charts e passou a dedicar-se a dois projetos. O primeiro, ao lado do mitológico Plato Dvorák (uma mistura de Otto com um Syd Barrett gaúcho, fanático por bandas de garagem dos anos 60 e lenda-viva em Porto Alegre), chamava-se Momento 68 e funcionava muito bem enquanto cada um deles ficava em sua cidade. À primeira apresentação ao vivo, o temperamento profissional de Garcia e a inconseqüência psicodélica de Plato bateram-se de frente e logo depois a dupla estava desfeita. Sem banda para correr, Sandro apegou-se ao Momento 68 e montou uma banda com Gregor Izidro – dos Espectros – e Carlos Rodrigues, gravando de cara uma fita com suas referências: Troggs, Who, Pink Floyd do começo, Yardbirds, Otis Redding e Love. No outro projeto, ajudou Fábio Golfetti a ressuscitar o Violeta de Outono, facilitando o desenho da árvore genealógica para aqueles que não haviam entendido, assumindo o baixo (e Izidro, a bateria) da lendária banda psicodélica.

Fazendo o circuito Alternative (“Alternative NÃO!”, reclama toda a freguesia em uníssono, antes de ver que não há outra opção por perto)/Borracharia – duas casas de show em Pinheiros -, logo novas bandas começaram a agregar-se ao epicentro da cena “churly” – rótulo usado de forma irônica pelos integrantes do grupo, numa forma de ridicularizar qualquer tentativa de rótulo. A primeira delas, o Sala Especial, teria uma história à parte.

Uma das primeiras bandas brasileiras a assumir o espírito easy-listening, logo as raízes roqueiras do grupo vieram à tona, devido à influência da cena que se formava. Aos poucos, o Sala deixava de ser uma simples banda engraçada e instrumental para se tornar uma ótima banda de rock instrumental. Logo passaram a incluir soul e rock garageiro em seu cardápio de música francesa, Jovem Guarda e discos de teste de estéreo, e suas duas fitas – Aventuras Estereofônicas Volumes 1 e 2 – venderam mais de mil exemplares, sendo copiadas outras mil vezes Brasil afora. Um verdadeiro sucesso underground, amados igualmente por paulistas e cariocas (o que não é fácil). Com o terceiro volume de suas Aventuras já engatilhado (quem ouviu, prevê outro sucesso), o grupo encontra-se na encruzilhada que outros grupos instrumentais brasileiros já cruzaram: como fazer sucesso de verdade num país viciado em letras.

Margeando a cena, ainda temos uma cena psicodélica na Móoca, formada pelos Effervescing Elephant (que troca um guitarrista por um tecladista para tornar-se o Flaming Salt) e pelo Cedar Lunen; os já citados Espectros, fazendo a linha garageira mesmo, a la Troggs; e a banda oficial da comunidade psicodélica de Cidade Ademar, os Jerssons, um combo de música aleatória que ganha fama fazendo shows memoráveis em faculdades de filosofia e cidades do interior, convidando todos os músicos presentes a subir no palco.

Enfim, uma cena. Coberta por publicações (eletrônicas ou em papel) diferentes como Magazine (das organizações Ordinary), o recheado Lo-Fi, a revista Velotrol, o venenoso Buxixo (o filhote paulistano do Tupanzine) entre outros, ela faz com que o Brasil finalmente tenha uma geração protopunk de respeito – mesmo que mais de trinta após a geração original.