Literatura: Humor de “Mochileiro” decai no 4º volume

Na Folha de hoje, o SLATFATF:

“Eu amo prazos”, disse certa vez o escritor inglês Douglas Adams (1952-2001), “adoro o som apressado que eles fazem quando voam”. O barulho deve ter ficado insuportável quando ele escrevia o material do quarto volume da série “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, “Até Mais, e Obrigado Pelos Peixes”, que chega pela segunda vez às prateleiras do Brasil. Afinal, foi preciso que o editor original de Adams, Sonny Mehta, se trancasse em uma suíte de hotel com o autor para garantir que o livro saísse dentro de seu cronograma em 1984.

“Até Mais…” já havia sido publicado no Brasil com o título de “Até Mais, Valeu o Peixe” em 1988 pela editora Brasiliense, na primeira vez que o clássico de Adams foi vertido para cá – e foi justamente o livro em que a editora original parou de publicar a “trilogia em cinco volumes” idealizada inicialmente como uma série de rádio transmitida pela BBC 4, em Londres.

Com a nova edição, a atual detentora dos direitos da obra, a Sextante, equipara-se à primeira aparição do “Guia do Mochileiro” por aqui, além de prometer a publicação do ainda inédito volume de conclusão da saga de Harvey Dent e Ford Prefect pelos confins do espaço, “Mostly Harmless”, para maio de 2006. A editora trabalha com o título provisório de “Praticamente Inofensiva”, que é a sucinta descrição do planeta Terra no próprio “Guia do Mochileiro das Galáxias” que acompanha os dois protagonistas da série.

Com um ótimo equilíbrio entre comédia de costumes, surrealismo sci-fi, ácida crítica ao comportamento humano e a todos os níveis de burocracia, “O Guia do Mochileiro das Galáxias” não pode ser resumido em uma frase para ser colocada na contracapa de um livro. Com passagens pela equipe de redatores da série cult inglesa “Doctor Who” e do “Flying Circus” do grupo Monty Python (em que chegou a atuar, em pontas-relâmpago), Adams bolou uma viagem interplanetária em que um típico inglês, Arthur Dent, é salvo da destruição da Terra por um de seus melhores amigos, Ford Prefect, que se revela um alienígena pesquisando sobre o nosso planeta para a publicação mais popular do universo: o “Guia do Mochileiro das Galáxias”, um livro eletrônico interativo com a frase “Não Entre em Pânico” escrita em suas costas e que traz respostas para todas as perguntas sobre culturas, costumes e hábitos dos povos siderais.

Viajando pelo espaço e pelas páginas de livros como “O Restaurante no Fim do Universo” e “Vida, Universo e Tudo Mais”, os protagonistas encontram máquinas deprimidas, naves inusitadas, raças bizarras e alienígenas egocêntricos que apenas servem de veículo para o humor cáustico e elegante de Adams. Como Philip K. Dick, o autor inglês não quer fazer previsões sobre o futuro ou elocubrar sobre universos alien; ele usa a ficção científica como um gancho para filosofar sobre a natureza humana e divagar sobre a existência. No caso de Douglas, saem a pressa e a paranóia para entrarem jogos de linguagem e sutis ironias, sempre temperados com a característica fleuma do humor inglês – ela mesma ridicularizada diversas vezes no decorrer da série.

Devido justamente à questão dos prazos (e por sua história central ser um romance entre Dent e a paranóica Fenchurch, única terráquea a lembrar-se da destruição original do planeta), “Até Mais…” é o livro mais fraco dos cinco – o que não deixa de lhe dar léguas de vantagens sobre grande parte da atual literatura de humor. A frase que batiza o livro é uma estranha mensagem recebida por algumas pessoas na Terra, para onde Arthur volta, mesmo achando que ela tivesse sido destruída – a pequena diferença diz respeito ao completo desaparecimento dos golfinhos do mar, ligado diretamente à frase do título. Ela também é o tema para a fantástica abertura do filme hollywoodiano baseado na série, lançado este ano, com Martin Freeman (da série “The Office”) e o rapper Mos Def nos papéis principais. O filme não foi absorvido pelo público de cinema atual e fracassou nas bilheterias, não havendo projetos para possíveis continuações.

Mas, ao ser publicado no ano que vem, “Mostly Harmless” não esgota o “Guia do Mochileiro das Galáxias” por aqui – ao menos na galáxia de Gutenberg. Ainda há o póstumo “The Salmon of Doubt” (“O Salmão da Dúvida”) com contos aleatórios e um começo de livro, inicialmente bolado para outra série de Adams, a do “detetive holístico” Dirk Gently, mas que foi redirecionado para os universos do “Mochileiro”. Além do ótimo guia sobre a saga (“Don’t Panic: The Official Hitchhikers Guide to the Galaxy Companion”), escrito por Neil Gaiman, autor da série de quadrinhos “Sandman”, que esmiuça a saga no mesmo tom ácido e elegante do texto de Adams.

“Até Mais, e Obrigado Pelos Peixes”
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Sextante
224 páginas
R$ 19,90

Cinema: São Paulo sedia festival do polêmico Cine Falcatrua

Íntegra do texto sobre o Cine Falcatrua que saiu na Folha de hoje. Só que nego viajou na edição e, sem querer, tranformou as aspas do entrevistado em texto meu, no terceiro parágrafo. Normal, acontece…

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Imagine um festival de cinema sem pré-seleção. Sem curadoria. Em que todos os filmes inscritos são exibidos, independente de formato, época de produção, duração, tema ou outro tipo de classificação a que possam ser submetidos. Em que ordem e que trechos dos filmes – se a íntegra, se uma cena inteira ou alguns frames – irão ser exibidos, isso depende do humor do projecionista e de sua química com o público daquela sessão. Assim é o festival CortaCurtas, idealizado pelo coletivo capixaba Cine Falcatrua ao lado do instituto Itaú Cultural, que recebe inscrições até o dia 20 de janeiro de 2006, com suas exibições acontecendo entre os dias 21 e 28 de março, em São Paulo.

“Uma das idéias é mostrar que o cinema digital não implica necessariamente na instituição de um controle rígido, como algumas fantasias paranóicas podem levar a pensar – a MGM controlando os cineminhas de Taubaté à distância, lançando propagandas entre as trocas de rolos, como se fossem canais de TV”, explica o grupo capixaba que surgiu no campus da Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória.

“E também não significa a misantropia final, onde cada espectador, de posse do seu DVD pirata – ou cópia-doméstica-lançada-simultaneamente -, vai se trancar em casa para ver o filme no seu próprio home theather”, continua o grupo, respondendo coletivamente sob o codinome de Gilbertinho, “como qualquer outra tecnologia, por mais ideológica que seja, a sala de cinema pode ser cooptada e utilizada de forma criativa e criadora. Como festival, o CortaCurtas se propõe a promover uma nova forma de consumo audiovisual, definida menos pela vontade dos curadores/ patrocinadores/ realizadores, e mais pela relação momentânea entre projecionista e público. É uma forma de celebrar a sala de cinema enquanto local de diálogo e convívio”. Maiores informações podem ser conseguidas pelo site www.itaucultural.org.br ou pelo email cortacurtas@gmail.com.

O improvável festival talvez não fosse impossível sem a transição do analógico para o digital, mas a mudança é crucial para sua realização – como é o próprio Falcatrua. O coletivo começou há dois anos, em janeiro de 2004, como um projeto de extensão de estudantes da UFES, de diferentes cursos (psicologia, comunicação, artes, arquitetura). “Chegaram uns datashows na universidade e a gente resolveu utilizá-los para projetar filmes. Daí, seguimos nessa vontade de fazer e ver cinema”, explica Gilbertinho, “o Falcatrua organiza-se de maneira místico-anarco-punk-banda-larga e atua não só exibindo filmes, mas também publicando e pesquisando idéias ligadas a utilização de novas mídias aplicadas ao cinema”.

Assim, começaram exibições gratuitas de filmes em locais públicos. Baixados via internet, raridades, lançamentos e curiosidades desfilavam pela tela do cineclube. “As exibições sempre foram gratuitas, mas nunca primamos por um público especifico. Como priorizamos a diversidade tanto dos locais de exibição, quanto do produto audiovisual exibido, acabamos tendo uma diversidade de público constante”, explica o grupo, “exibimos esde seriados de TV até curtas metragens em película: tudo encontra seu denominador comum no cineclubismo gambiarra. Sempre utilizamos equipamentos digitais”.

O cineclube teve problemas com a lei na metade do ano passado, quando foram notificados por exibirem filmes como “Kill Bill”, de Quentin Tarantino, e “Farenheit 11 de Setembro”, de Michael Moore, antes de suas estréias oficiais no Brasil. “Culpa da primeira matéria veiculada na Folha”, ironizam, “claro que depois também veio uma onda de moções de apoio: o movimento cineclubista nacional e internacional, cineastas, produtores, festivais, jornalistas, intelectuais – enfim, uma galera se manifestou pela continuidade do videoclube, e botou lenha no debate sobre os cruzamentos entre cinema e internet. Foi aí também que muitos realizadores começaram a enviar filmes espontaneamente para o Falcatrua”.

Assim, saíram pela esquerda, adotando a transparência e a generosidade intelectual como ferramentas de trabalho. Passaram então a exibir filmes publicados em Creative Commons e copyleft, além de entrar em contato com os próprios realizadores para obter autorização de exibição – tudo mais barato, mais perto do Brasil, longe de Hollywood e dentro da lei. “Freqüentemente, o Falcatrua faz sala para filmes inéditos. São lançamentos nacionais que acontecem no Falcatrua e contam, por vezes, com a presença dos realizadores”, como o documentário “Sou Feia Mas Tou na Moda”, de Denise Garcia.

“A gente vê no Creative Commons uma forma de conformar o direito constituído à economia inevitável da rede. Por enquanto, é a saída mais viável para quem quer aproveitar determinados potenciais de difusão e criação propiciados pelas novas tecnologias e virar as costas de forma limpa a uma economia que perde cada vez mais o sentido”, explica o coletivo. “Daí buscamos difundir as vantagens desse tipo de licenciamento para quem está envolvido com o trabalho realmente criativo – escritores, cineastas, artistas plásticos, músicos, etc. -, como uma forma de compartilhar conhecimento livremente e construir subjetividades coletivamente. Uma forma de aproximar a produção cultural da cultura real”.

Dentro desta lógica, o Falcatrua realiza programações que contam apenas com filmes publicados de acordo com este pensamento open source, as Mostras de Conteúdos Livres. “Levamos para exibir quando somos convidados a participar de algum evento. Junto dessas mostras, programamos bate-papos sobre cinema, internet e direito autoral”.

Aos poucos, o Falcatrua vai se expandindo – além do CortaCurtas que acontece em São Paulo, eles também participaram da XXV Jornada Internacional de Cineclubes e do festival de mídia tática Digitofagia, que aconteceu na Unicamp em novembro passado. E já se tornou exemplo. “Desde as primeiras sessões ensinamos a quem quiser como montar seu próprio cineminha utilizando eletrodomésticos de última geração, através de cartilhas xerocadas e e-zines”, explica o grupo. “A gente até fazia uma piada dizendo que, enquanto outros cinemas itinerantes queriam formar público, nós queriamos é formar exibidores”.

“Claro que teve um momento que a coisa saiu do controle – e nem podemos nos orgulhar e dizer que foi fruto do nosso trabalho, porque não foi. Aconteceu espontaneamente. Quando menos esperamos, descobrimos sessões de ‘Cine Falcatrua’ na PUC-RS e do Cine FalcaTróia, em um espaço chamado Tróia, em Florianópolis. Falcatrua acabou virando uma modalidade de consumir cinema”, comemoram.

Lisergia impressionista nerd branca

Essa é a versão integral, antes da edição final, que saiu aqui, na Folha:

Pop: Chambaril faz o elogio da colagem

“Ween”, responde Cláudio N. “Pink Floyd”, diz Pi-R. A pergunta queria saber que shows eles gostariam de abrir. Entre o quarto esfumaçado dos irmãos Dean e Gene ao topo do mainstream trip rock, a lacuna entre as duas opções parece apenas exibir enciclopedismo musical, mas cataloga a banda de ambos, o Chambaril, num gênero ainda não canonizado – a lisergia impressionista nerd branca, disposta a transpor barreiras entre rótulos musicais através de montagens e superposições sonoras.

Entre outros exemplares desta espécie estão as colagens subversivas da primeira era de ouro ao ataque ao copyright (final dos 80, de nomes como Negativland, Double Dee & Starsky e KLF), os Mutantes, o hip hop instrumental de DJ Shadow e RJD2, o Primal Scream, os Beastie Boys de “Paul’s Boutique”, Bomb the Bass, Solex, Avalanches, e, claro, Ween e Pink Floyd. É desse habitat sonoro que sai o recifense Chambaril.

Que, apesar do nome estranho, não é um remédio. “Só se for pra fome”, ironiza Cláudio, o colador original, que largou a guitarra rock dos Astronautas para se dedicar à arte do cut and paste num gravador de quatro canais, “Chambaril na verdade é um prato regional, carregado de proteínas, que consiste em ossobuco, pirão, arroz e salada”.

Descritos, parecem uma reedição do conceito de “mistureba” que assolava o pop brasileiro no começo dos 90. O primeiro disco, batizado com o nome da banda e distribuído pela Peligro, abre com beats de hip hop velha guarda, cordas chorosas que parecem terem sido abduzidas do “Álbum Branco” dos Beatles, levada sintética de flash-house, baixão à Prince, piano apocalíptico, gemido de gaita de blues. Mas a indigestão é meramente textual – em disco tudo flui macio e sutil.

Começando como projeto pessoal de Cláudio em 2001, logo teve agregado à formação os amigos Vinícius também nas colagens, Pi-R nos teclados e Carlos Cabeça, dividindo as guitarras com Cláudio – todos descritos por ele como “músicos de confiança e amigos das tardes enfumaçadas e bucólicas da UFPE”. No ano passado, compuseram a trilha para o filme “Sertão de Acrílico Azul Piscina”, de Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirina e Urubus”) e Karim Aïnouz (“Madame Satã”). “Após essa gravação, resolvi passar pro PC algumas partes interessantes de minha coleção de vinil, dando predileção aos discos de 1 real, e as utilizei em forma de loops na construção de uma porrada de músicas”, explica Cláudio.

Entre grooves de disco music, álbuns falados, levadas Jovem Guarda e violões de fossa, não é possível reconhecer quase nada, fora um Costinha contando piadas aqui e a orquestração de Rogério Duprat para “Deus Lhe Pague” do Chico Buarque acolá. “Não temos preconceito”, resume Cláudio, “não achamos que nossa música deva se prender a algum estilo”.

Chambaril
Bazuka Discos
R$ 12,00
www.peligro.com.br