Capitão Presença se lança à criação coletiva

Enquanto as luxuosas instalações do Marriott Hotel recebem, em Copacabana, no Rio de Janeiro, a cúpula mundial do conhecimento compartilhado ao redor de sua grife mais reluzente – a marca Creative Commons –, um informal baixo clero deste mesmo setor reúne-se em Ipanema, numa pequena loja de quadrinhos, roupas e assessórios alternativos, para celebrar a entrada no mainstream de seu produto mais bem recebido pelo mercado – o super-herói Capitão Presença.

“As Aventuras do Capitão Presença” (Conrad) não apenas consagra a inspiração coletiva instigada em toda uma geração de cartunistas como oficializa a carreira de Arnaldo Branco, o criador do personagem, que criou-se na internet e aos poucos come pelas beiradas do sistema: tornou-se colaborador fixo da revista “Bizz” e tranpôs a revista independente “F.” para a mesma Conrad que agora o publica em livro.

Natural que este lançamento acontecesse sob o manto de seu personagem mais popular, o herbífumo voador que reacende a questão das drogas no imaginário coletivo brasileiro – em seu caso, especificamente, a maconha. Enquanto nomes que se tornaram referências canábicas tupiniquins, como Gil, D2 ou Gabeira, hoje pigarreiam antes de começar a falar do assunto (sem contar as pára-quedistas Soninha e Luana Piovanni, que, sem querer, levantaram e deram bandeira ao mesmo tempo), o Capitão Presença esfrega na cara a familiaridade não apenas com a maconha, mas com o submundo da droga que o Brasil alimenta e finge não alimentar.

E não apenas do ponto de vista legal, mas também social, medicinal, artístico ou rotineiro. Afinal, não custa lembrar que o único super-poder do personagem é ter maconha na hora em que as pessoas precisam de maconha. Olha como o malandro carioca foi se reinventar…

Não é mero humor feito para quem usa drogas, como o excesso de obviedade parece supor. Este, tal como seus em pares de outras eras (Freak Brothers, Cheech & Chong e Wood & Stock), é só mais um elemento de crítica a este suposto público-alvo.

Isso, claro, sem o mínimo pudor ou formalismo intelectual, no humor sempre amargo de Arnaldo, que logo criou toda uma fauna ao redor do personagem, com nomes que falam por si, como o pidão Super Aba, o cachorro Malhado e o vacilão Mané Bandeira. Não bastasse seu universo, Presença ainda foi lançado para presidente da república neste ano, numa campanha em que o personagem promete “acabar com a seca não apenas no nordeste, mas em todo o Brasil”.

Mas o que une o encontro de Copacabana com o happy hour em Ipanema é o fato do personagem ser, na prática, um exemplo de conhecimento compartilhado e produção coletiva. Criado em duas tiras por Arnaldo, Presença ganhou vôo próprio e passou a ser redesenhado por cartunistas e ilustradores de sua geração que, a despeito (ou justamente por causa) das drogas, passaram a criar o personagem de forma coletiva – e assim Arnaldo publicou o personagem (como todo o livro) na licença Creative Commons. E enquanto no iCommons discute-se generosidade intelectual em palestras e workshops, esta mesma generosidade é celebrada, à brasileira, sem tanta teoria e com mais diversão – e longe, embora menos de um bairro de distância, dos gringos.

AS AVENTURAS DO CAPITÃO PRESENÇA
Editora: Conrad
Quanto: R$ 25 (144 págs)
Lançamento: hoje, às 19h, no La Cucaracha (r. Teixeira de Melo, 31-H, Ipanema, Rio, tel. 0/xx/21/2522-0103)

Esse texto saiu na Folha dessa sexta

Entrevista: Gary Lachman

Gary Lachman era integrante do Blondie no final dos anos 70 (até escreveu um livro sobre a época, New York Rocker: My Life in the Blank Generation with Blondie, Iggy Pop and Others, 1974-­1981, assinando com seu pseudônimo, Gary Valentine), mas sua carreira como escritor voltou-se para um lado pouco ortodoxo entre escritores pop, falando sobre a natureza da consciência (A Secret History of Consciousness), uma biografia sobre o mago Gurdjieff (In Search of P.D. Ouspensky: The Genius in the Shadow of Gurdjieff) e um compêndio sobre a história do ocultismo (The Dedalus Book of the Occult: A Dark Muse). Traçando uma conexão entre estes dois universos – o pop e o oculto -, Lachman escreveu Turn Off Your Mind: The Mystic Sixties and the Dark Side of the Age of Aquarius, em que ele diz que a psicodelia dos anos 60 era uma espécie de continuação do revival do desconhecido que rolou no mundo no final do século 19. Publiquei essa entrevista e essa resenha sobre o assunto, mas a íntegra do papo segue abaixo.

Ex-baixista do Blondie revê anos de paz e amor

Os Beatles na Índia, Mick Jagger com o peito tatuado no programa “Rock’n’Roll Circus”, Timothy Leary usando o “Livro Tibetano dos Mortos” como base de seu “A Experiência Psicodélica”, Jim Morrison escolhendo o nome de seu grupo a partir do livro “As Portas da Percepção” de Aldous Huxley, hippies celebrando a natureza coletivamente. Meros flashbacks dos anos 60? Não é isso que vê Gary Lachman.

Ex-baixista do grupo Blondie (quando era conhecido como Gary Valentine), Lachman revê os anos de paz e amor com olhos pouco deslumbrados no livro “Turn Off Your Mind – The Mystic Sixties and the Dark Side of the Age of Aquarius” (Desligue Sua Mente – Os Místicos Anos 60 e o Lado Obscuro da Era de Aquário). E remonta a psicodelia dos anos 60 não como o caleidoscópio tecnicolor que entrou para a história do pop, mas como um lento e avassalador resgate do ocultismo, relacionando os hippies com a nova geração vislumbrada por Madame Blavatsky no fim do século 19, os Merry Pranksters de Ken Kesey com a “Viagem ao Oriente” de Herman Hesse e o ácido lisérgico com o cogumelo Amanita muscaria, que seria a religião mais antiga do planeta. Em entrevista por e-mail, Lachman falou sobre o assunto de seu livro.

Como você percebeu esta conexão entre a psicodelia e este resgate do ocultismo nos anos 60?
Se você observar a cultura pop dos anos 60, verá que, claramente, por volta de 1966 e 1967 que alguns elementos daquilo que chamamos de “ocultismo” estavam renascendo. Como eu digo no livro, esta tendência começou em Paris, em 1960, com a publicação do livro “Le Matin des Magiciens” (“A Manhã dos Mágicos”, de Louis Pauwels e Jacques Bergier). Mas logo ela passou a se espalhar pela Inglaterra e pelos EUA. Como uma criança nos anos 60, podia perceber isto em coisas como nos quadrinhos da Marvel, graças a personagens como o Doutor Estranho. Os próprios X-Men, que não eram “ocultistas”, funcionavam como precursores dos hippies, no sentido em que eles eram adolescentes mutantes.

Como você entrou em contato, ainda nos anos 60, com o ocultismo da época e como este contato influenciou a pesquisa para seu livro?
Eu nasci em 55, por isso tinha 9 ou 10 anos quando essas coisas estavam começando. Eu comecei a ver isto em filmes, programas de TV, quadrinhos e em livros de literatura fantástica da época. Os livros do Conan começaram a ser republicados em 1966; alguns anos depois houve a redescoberta de H.P. Lovecraft. Entre 1967 e 68, as pessoas estavam falando em Tarô, terceiro olho, viagens astrais e coisas do tipo. Comecei a me interessar mais seriamente em 1972, quando um amigo meu me deu uma cópia do “Sidarta”, do Herman Hesse.

De todos as principais redescobertas mágicas dos anos 60 – como Crowley, Hesse e Tolkien -, quem você considera a mais bem-sucedida de todas?
Hesse e Tolkien eram os mais populares na época, pelo menos em termos de escritores. Os livros de Tolkien começaram a ser republicados nos anos 50, mas não tiveram um grande impacto até que uma edição pirata do “Senhor dos Anéis” saiu nos EUA. Hesse foi imensamente popular – na época em que comecei a lê-lo, praticamente todo mundo que eu conhecia tinha pelo menos um de seus livros. Crowley era conhecido nos anos 60, mas ele não teve um grande impacto até a década seguinte, e hoje é muito mais conhecido do que era quando estava vivo. Mas o trabalho de Tolkien é claramente o mais popular de todos, ainda mais com os filmes e afins.

Falando em nomes, qual popstar dos anos 60 esteve mais envolvido com o Desconhecido? Será que até aí os Beatles são o nome mais influente?
Bem, os Beatles eram as pessoas mais famosas do mundo na época, mas eles não estavam tão interessados em ocultismo como estavam em misticismo oriental. Os Rolling Stones estavam muito mais envolvidos com o lado escuro. Como outras bandas, como o Doors. Os Beach Boys se envolveram com o Charles Manson. Mais tarde, o Led Zeppelin se associou a Crowley e Tolkien.

Você descreve o movimento New Age como sendo uma evolução natural do interesse dos anos 60 com o Oculto. Como você relaciona isto com o atual interesse no assunto – que envolve desde franquias bem-sucedidas como “Senhor dos Anéis” e “Harry Potter”, quadrinhos de Alan Moore e Neil Gaiman e seriados como “Buffy – A Caça-Vampiros” e “Charmed”?
As pessoas sempre se interessaram em “magia” e é muito provável que continue a se interessar nisto. A diferença é que hoje o ocultismo é apenas um dos muitos estilos de vida alternativos, enquanto nos anos 60 era um dos poucos que haviam. Acho que há uma parte da psicologia humana que sempre será atraída pelo misterioso. Eu nunca assisti “Buffy”, por isso não posso falar nada, mas acho que o interesse nos livros de Harry Potter, por mais comercial que seja, é geralmente um bom sinal.

Como o espaço sideral, robótica e engenharia genética se tornaram uma espécie de ocultismo científico? No livro, você relaciona ufologia e extraterrestres ao ocultismo e há uma enorme lista de escritores de ficção científica (L. Ron Hubbard e Philip K. Dick sendo os mais óbvios) que de alguma forma lidam com o tema do seu livro.
Historicamente, em tempos de transição ou crise, a cultura responde de duas formas: revertendo-se a um estágio passado ou olhando em direção ao “futuro”. O que era fascinante nos anos 60 era como isso era evidente. Os hippies estavam advogando uma filosofia de “volta à natureza”, ainda que estivessem relacionados a substâncias químicas modernas, como o LSD. Viagens espaciais eram associadas à sabedoria ancestral, na época: deuses do espaço retornariam e dariam início a uma nova era de ouro. A idéia geral é que se algo está “errado” com o presente, é necessário procurar soluções em outras “épocas”.

Você termina o livro mostrando que filmes como “Matrix” são apenas novos disfarces para o ocultismo voltar ao imaginário comum. Gostaria que você falasse um pouco sobre as formas que o Oculto é vendido atualmente, usando disfarces que à primeira vista não parecem dizer o que eles são na verdade – sendo mídia tecnocêntrica sendo a máscara mais evidente…
“Matrix” lida com idéias gnósticas padrão sobre a natureza da realidade. Os antigos gnósticos acreditavam que vivemos em um mundo “falso” e o objetivo de práticas ocultistas e espirituais é escapar deste para um mundo “real”. Este é o tema central não apenas de “Matrix”, mas de filmes sci-fi dos anos 90 menos conhecidos, como “Cidade das Trevas” e “O Cubo”. Todo o jargão cyber de computador é basicamente uma fantasia de vitrine, para tornar a história contemporânea. Mas o roteiro básico é eterno. O objetivo da magia é escapar da grande ilusão.

Ao final do livro, você acena que a Era de Aquário não lida apenas com a luz do sol e euforia tecnicolor e que também pode ser sombria e doentia.
Os elementos sombrios dos anos 60 estão presentes na filosofia “faça o que quiseres” retirada de Crowley e na cessão àquilo que me refiro como “forças estranhas”, que foi alertado por pessoas como Hesse. Isso não quer dizer que o Oculto é sombrio e deve ser evitado, mas que a ética liberalista pode facilmente se tornar em uma espécie de agressividade fascista. Isto pode ser encontrado, acredito, em boa parte das políticas radicais da época. “Faça o que quiseres” pode se tornar facilmente “faço o que eu gosto” e dar origem à falta de consideração com as outras pessoas. Não é que algum tipo de conservadorismo seja preferível, mas que muitas pessoas que se envolveram com isso tinha um entendimento superficial das idéias com que estavam se envolvendo.

Fora alguns dos nomes que foram resgatados nos anos 60, seu livro é focado entre a Inglaterra e os EUA, os principais centros de produção psicodélica da época. Mas à medida que a psicodelia tornou-se uma tendência mundial, gostaria de saber se você teve contato com artistas ou resgates psicodélicos em outros países estrangeiros e se este interesse no ocultismo ocorreu em um âmbito mundial.
Centrei-me nos EUA e na Grã-Bretanha porque era a cultura pop que eu mais conhecia. Hoje, claro que o ocultismo é uma subcultura mundial. Mas fazia mais sentido centrar o foco naquilo que eu conhecia melhor. O livro poderia ter se tornado uma espécie de enciclopédia, em vez de uma narrativa histórica, mas acho que isso o tornaria menos interessante.

Livro de Lachman destaca fascínio pelo desconhecido

Apesar de repassar a história dos anos 60 com minúcia e abrangência, “Turn Off Your Mind” não é um livro sobre a psicodelia daquela década. Numa prosa deliciosa e enciclopédica, Lachman pega o gancho dos sixties para escrever um pequeno tratado da história da magia.

Por isso, Timothy Leary, Allen Ginsberg e Pink Floyd são motivos para descobrir nomes da pesada (Gurdjieff, Eliphas Levi, Dr. Dee), picaretas (L. Ron Hubbard, Charles Manson, Anton LaVey) e ocultistas do primeiro escalão (Aleister Crowley, Kenneth Anger).

Os popstars dos anos 60 acabam vindo à tona como pontas de um iceberg que se esconde por toda a década –e além. No fim, esse é o grande mérito do livro de Lachman: mostrar que, por mais tecnófilos, científicos ou céticos que possamos fingir ser, o fascínio pelo desconhecido é característica humana. E não há razão que consiga contê-lo –daí ele voltar através do rock’n’roll.

Documentário revê os Rolling Stones jovens

Essa saiu antes do carnaval, mas inda não tinha postado aqui:

Alguém aí ainda agüenta Rolling Stones? Depois da overdose da megacorporação multinacional gerida por Jagger e Richards a que o Brasil foi submetido, voltar a máquina do tempo uns 40 anos e encontrar os atuais CEOs disfarçados de “rock stars” numa festa particular em uma cidade européia talvez seja o antídoto perfeito para anestesiar êxtases superlativos da passagem do grupo.

O documentário “Rolling Like a Stone”, que será exibido no Festival É Tudo Verdade (que começa dia 23 de março), em São Paulo, parte de um curto trecho de filme que registrou a passagem do grupo inglês pela cidade de Malmö, na Suécia, para reconstruir o conceito do grupo do outro lado do espelho. Centrado ao redor de uma festa particular da cena de rhythm’n’blues da minúscula cidade escandinava que contou com a presença ilustre de Mick Jagger, Keith Richards e Brian Jones (1942-69), o filme dos diretores suecos Magnus Gertten e Stefan Barg busca alguns dos coadjuvantes daquele dia para mostrar o que acontece com as pedras que deixam de rolar.

Somos atirados no meio de sexagenários saudosos de seus tempos de rock’n’roll, que recordam -uns com dor, outros com candura- dos tempos em que a sociedade poderia ser desafiada (e, quem sabe, o mundo ser mudado) com ruído elétrico, ritmo insistente e cabelos compridos. Integrantes de bandas anônimas (Gonks, Namelosers) e meninas apaixonadas pelo brilho dos ingleses colocam mais uma peça no quebra-cabeças cuja a imagem é a atual cultura pop –uma peça marginal, irrelevante, mas que mostra com precisão o impacto do rock na rotina do planeta.

Sem o áudio (a trilha sonora é composta por faixas das bandas citadas acima, de rock garageiro sem sal), o documentário é musicalmente insípido –mesmo para os fãs de carteirinha dos Stones (sempre em segundo plano, no filme), “Rolling Like a Stone” é, no máximo, curioso. Lento e enfadonho, o filme vale por mostrar de forma crua a triste realidade daqueles que sonham sonhos alheios. Como muitos no show histórico da praia de Copacabana.

Romance: Em “Coma”, Alex Garland mistura delírio e realidade

Na Folha de hoje

Romance: Em “Coma”, Alex Garland mistura delírio e realidade

Do mesmo jeito que com uma ruptura violenta em um paraíso terrestre Alex Garland atingiu seu grande momento literário, ao amarrar seu novo protagonista em si mesmo, o autor inglês parece caminhar para um beco sem saída. Felizmente, não é artístico. Ao deixar os conflitos exteriores de seus dois primeiros livros fora do horizonte, Garland e o pai, Nicholas, embarcam numa viagem sem volta em “Coma”, que acaba de sair no Brasil.

A história é simples e o tema é quase clichê: Carl sai tarde do trabalho e toma uma surra ao se meter numa tentativa de assalto. Acorda em coma. A partir daí, imagina alternar momentos de consciência e vazios de razão e a discussão reverte-se nas diferenças entre sono e despertar, fatos e lembranças, vida e morte.

Garland opta por uma estética enxuta, deixando maneirismos filosóficos e intelectuais de lado para discutir sobre a existência, a natureza da consciência e os limites entre ser e não ser usando exemplos corriqueiros, como a lembrança dos pais, um perfume conhecido, uma loja de livros, uma música antiga (no caso, “Good Golly Miss Molly”, de Little Richard). Contado em capítulos curtos, por vezes mínimos, o ritmo do livro choca-se diretamente com o não-ritmo de um coma, o não-movimento contínuo.

Pontuando os capítulos estão 40 xilogravuras feitas pelo pai de Alex, o ilustrador Nicholas Garland, do jornal Daily Telegraph. Escuras, elas são enormes janelas de tinta preta que apontam para o nada e tentam, como Carl, emoldurar alucinações e sonhos para apegar-se à alguma realidade – e saber se o coma, afinal, terminou. A morbidez sóbria das ilustrações, que distorce minimamente o caminho não-linear percorrido, tem um parentesco improvável com os quadrinhos negros do brasileiro Lourenço Mutarelli, este cada vez mais sóbrio e menos mórbido.

Diferente de seu livro de estréia do autor, o aclamado best-seller “A Praia”, “Coma” mergulha num abismo em que até as emoções tornam-se incertas e os olhos nunca parecem estar abertos. Garland, que se envolveu com o mesmo trio dos filmes “Trainspotting” e “Cova Rasa” (o diretor Danny Boyle, o roteirista John Hodge e o produtor Andrew McDonald) na adaptação de seu primeiro livro para as telas, em 2000, pegou gosto pelo cinema e colaborou na adaptação de seu segundo livro, “O Teressacto” (dirigido pelo cineasta de Hong Kong Oxide Pang Chun, em 2003), além de criar uma história original para o filme seguinte de Boyle, “Extermínio”, de 2002.

“Coma”, com suas extraordinárias imagens simples, prova-se uma adaptação um pouco mais difícil, com o risco de perder-se momentos cruciais da leitura, como o vento no parapeito de um prédio, a sensação de transparência, um cômodo “sentido” em vez de visto, o mergulho no vazio, a perda da razão. Percorrer estas passagens dão ao curto livro um ritmo tenso e familiar, que torna possível deschavar o livro em menos de uma hora num sofá de megastore – e esquecer, por completo, tudo ao redor.

No entanto, é na modalidade clássica da atividade leitora (sozinho, de noite, em casa, um abajur) que “Coma” mostra-se forte. Num mundo hiperlinkado, de comunicadores móveis e exibicionismo histérico, o objeto livro pede que seu usuário entre em seu coma pessoal e desconecte-se do dito “real” para mergulhar em si mesmo.

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“Coma”
Autor: Alex Garland
Editora: Rocco
160 páginas
Preço: R$ 24,00

Trainspotting + 10

Resenhinha do Pornô, do Irvine Welsh, na capa da Ilustrada de hoje. Aí embaixo, a íntegra, pré-edição:

Do mesmo jeito que era inevitável que Simon D. Williamson arrumasse um emprego que o mantivesse próximo do sexo, das drogas, dos jogos e da farra de seus anos dourados, também era inevitável que não durasse muito no cargo. E até durou demais, mesmo que mais apresentável e mais experiente que quando deixou sua cidade-natal rumo a Londres, ele ainda era o mesmo Sick Boy que funcionava como o próprio RP de seu bando na pós-adolescência.

Ao lado de Mark Renton, Frank Begbie e Daniel “Spud” Murphy, ele fazia parte do pequeno grupo de junkies sem esperanças que protagonizava “Trainspotting”, série de monólogos psicótico-autistas sobre o underground de Edimburgo, Escócia, no final dos anos 80. O livro, lançado originalmente em 1993, colocou o escritor escocês Irvine Welsh no mapa do mundo pop, especialmente após as adaptações para o teatro (encenada em Londres por Harry Gibson em 1995) e para o cinema (dirigida na Inglaterra por Danny Boyle em 1996).

Dez anos depois do golpe que parecia ter desfeito de vez aquela já esfacelada quadrilha, o acaso reúne os quatro novamente no decadente distrito de Leith que antes se referiam como lar. E eles não estão felizes com o reencontro. Apenas o tímido e inofensivo Spud permaneceu nas ruas de sua cidade, e ainda luta para deixar o vício de heroína no passado, como já aconteceu com os outros três.

Depois de anos na prisão, o psicopata Begbie reza para encontrar o filho da puta que lhe enviava revistas gay anonimamente quando estava na cadeia e para não encontrar Renton, a quem culpa sua estada atrás das grades. Sick Boy tem de engolir o orgulho de ser demitido de mais uma casa noturna em Londres agarrando-se no pub de uma tia para retornar à Escócia, que abomina. Renton é praticamente extraditado de volta para a Grã-Bretanha por Sick Boy, que o encontra dono de uma boate em Amsterdã e o ameaça a entrar em seu novo esquema: pornografia.

Assim começa “Pornô”, último livro lançado por Welsh, em 2002, que agora ganha edição brasileira. Depois da traição final de “Trainspotting” seus protagonistas (se é que podemos chamá-los assim) voltam a habitar a mesma sociosfera, seus reencontros sendo antecipados no mesmo tipo de monólogos atordoados do livro inicial.

Três deles têm filhos, todos estão sempre se ajeitando no espelho, fingindo não aceitar a velhice que começa a despontar no horizonte. Estão mais reflexivos, mas isso não quer dizer que a quantidade de sexo, drogas e violência diminuiu – pelo contrário, ela continua presa às suas personalidades como particularidades físicas.

Sexo casual, baseados, lugares imundos, garrafas de vinho, muito sangue, linhas de cocaína, estupros, muita cerveja, ameaças de morte e trambiques – o underground continua o mesmo. Mas a lenta realização de que os quarenta anos estão na próxima esquina e um balanço sobre a primeira metade da vida os torna menos impulsivos e sem tanta sede de vida.

Este lado é compensado no personagem de Nicola Fuller-Smith, a estudante de cinema Nikki, dez anos mais nova que o grupo e, portanto, com a idade que seus pares tinham em “Trainspotting”. A ela cabe o tesão pela vida e a lenta e deliciosa autodestruição do livro anterior. Manipuladora de homens e pseudo-intelectual, tem uma empáfia sensual típica das meninas que se consideram no controle da situação, provocando combustão com a química ao lado de Sick Boy. Os dois – ególatras, sexcêntricos, arrogantes – formam um casal perfeito, cínico e mau caráter.

Mas toda barra pesada e desilusão é bem diluída no humor peculiar de Welsh, que vai da ultraviolência ao sadismo de desenho animado, de perversões intelectuais a egotrips mirabolantes – se perde em relação a “Trainspotting” em ritmo e energia, “Pornô” ganha em acidez e meticulosa crítica comportamental. Os delírios de Sick Boy sobre empreendedorismo, tanto no mercado de “entretenimento adulto” quanto na “revitalização do centro de Leith” aludem tanto à megalomania neoliberal quanto ao novo-riquismo – e são hilários. A tradução de Daniel Galera e “Mojo” Pellizzari abranda felizmente o inglês tosco de alguns dos personagens – tornando os livros de Welsh difíceis até para quem lê em inglês – em prol do ritmo da leitura.

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“Pornô”
Editora: Rocco
Páginas:568
Preço : R$ 62,50

Literatura: Humor de “Mochileiro” decai no 4º volume

Na Folha de hoje, o SLATFATF:

“Eu amo prazos”, disse certa vez o escritor inglês Douglas Adams (1952-2001), “adoro o som apressado que eles fazem quando voam”. O barulho deve ter ficado insuportável quando ele escrevia o material do quarto volume da série “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, “Até Mais, e Obrigado Pelos Peixes”, que chega pela segunda vez às prateleiras do Brasil. Afinal, foi preciso que o editor original de Adams, Sonny Mehta, se trancasse em uma suíte de hotel com o autor para garantir que o livro saísse dentro de seu cronograma em 1984.

“Até Mais…” já havia sido publicado no Brasil com o título de “Até Mais, Valeu o Peixe” em 1988 pela editora Brasiliense, na primeira vez que o clássico de Adams foi vertido para cá – e foi justamente o livro em que a editora original parou de publicar a “trilogia em cinco volumes” idealizada inicialmente como uma série de rádio transmitida pela BBC 4, em Londres.

Com a nova edição, a atual detentora dos direitos da obra, a Sextante, equipara-se à primeira aparição do “Guia do Mochileiro” por aqui, além de prometer a publicação do ainda inédito volume de conclusão da saga de Harvey Dent e Ford Prefect pelos confins do espaço, “Mostly Harmless”, para maio de 2006. A editora trabalha com o título provisório de “Praticamente Inofensiva”, que é a sucinta descrição do planeta Terra no próprio “Guia do Mochileiro das Galáxias” que acompanha os dois protagonistas da série.

Com um ótimo equilíbrio entre comédia de costumes, surrealismo sci-fi, ácida crítica ao comportamento humano e a todos os níveis de burocracia, “O Guia do Mochileiro das Galáxias” não pode ser resumido em uma frase para ser colocada na contracapa de um livro. Com passagens pela equipe de redatores da série cult inglesa “Doctor Who” e do “Flying Circus” do grupo Monty Python (em que chegou a atuar, em pontas-relâmpago), Adams bolou uma viagem interplanetária em que um típico inglês, Arthur Dent, é salvo da destruição da Terra por um de seus melhores amigos, Ford Prefect, que se revela um alienígena pesquisando sobre o nosso planeta para a publicação mais popular do universo: o “Guia do Mochileiro das Galáxias”, um livro eletrônico interativo com a frase “Não Entre em Pânico” escrita em suas costas e que traz respostas para todas as perguntas sobre culturas, costumes e hábitos dos povos siderais.

Viajando pelo espaço e pelas páginas de livros como “O Restaurante no Fim do Universo” e “Vida, Universo e Tudo Mais”, os protagonistas encontram máquinas deprimidas, naves inusitadas, raças bizarras e alienígenas egocêntricos que apenas servem de veículo para o humor cáustico e elegante de Adams. Como Philip K. Dick, o autor inglês não quer fazer previsões sobre o futuro ou elocubrar sobre universos alien; ele usa a ficção científica como um gancho para filosofar sobre a natureza humana e divagar sobre a existência. No caso de Douglas, saem a pressa e a paranóia para entrarem jogos de linguagem e sutis ironias, sempre temperados com a característica fleuma do humor inglês – ela mesma ridicularizada diversas vezes no decorrer da série.

Devido justamente à questão dos prazos (e por sua história central ser um romance entre Dent e a paranóica Fenchurch, única terráquea a lembrar-se da destruição original do planeta), “Até Mais…” é o livro mais fraco dos cinco – o que não deixa de lhe dar léguas de vantagens sobre grande parte da atual literatura de humor. A frase que batiza o livro é uma estranha mensagem recebida por algumas pessoas na Terra, para onde Arthur volta, mesmo achando que ela tivesse sido destruída – a pequena diferença diz respeito ao completo desaparecimento dos golfinhos do mar, ligado diretamente à frase do título. Ela também é o tema para a fantástica abertura do filme hollywoodiano baseado na série, lançado este ano, com Martin Freeman (da série “The Office”) e o rapper Mos Def nos papéis principais. O filme não foi absorvido pelo público de cinema atual e fracassou nas bilheterias, não havendo projetos para possíveis continuações.

Mas, ao ser publicado no ano que vem, “Mostly Harmless” não esgota o “Guia do Mochileiro das Galáxias” por aqui – ao menos na galáxia de Gutenberg. Ainda há o póstumo “The Salmon of Doubt” (“O Salmão da Dúvida”) com contos aleatórios e um começo de livro, inicialmente bolado para outra série de Adams, a do “detetive holístico” Dirk Gently, mas que foi redirecionado para os universos do “Mochileiro”. Além do ótimo guia sobre a saga (“Don’t Panic: The Official Hitchhikers Guide to the Galaxy Companion”), escrito por Neil Gaiman, autor da série de quadrinhos “Sandman”, que esmiuça a saga no mesmo tom ácido e elegante do texto de Adams.

“Até Mais, e Obrigado Pelos Peixes”
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Sextante
224 páginas
R$ 19,90

Cinema: São Paulo sedia festival do polêmico Cine Falcatrua

Íntegra do texto sobre o Cine Falcatrua que saiu na Folha de hoje. Só que nego viajou na edição e, sem querer, tranformou as aspas do entrevistado em texto meu, no terceiro parágrafo. Normal, acontece…

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Imagine um festival de cinema sem pré-seleção. Sem curadoria. Em que todos os filmes inscritos são exibidos, independente de formato, época de produção, duração, tema ou outro tipo de classificação a que possam ser submetidos. Em que ordem e que trechos dos filmes – se a íntegra, se uma cena inteira ou alguns frames – irão ser exibidos, isso depende do humor do projecionista e de sua química com o público daquela sessão. Assim é o festival CortaCurtas, idealizado pelo coletivo capixaba Cine Falcatrua ao lado do instituto Itaú Cultural, que recebe inscrições até o dia 20 de janeiro de 2006, com suas exibições acontecendo entre os dias 21 e 28 de março, em São Paulo.

“Uma das idéias é mostrar que o cinema digital não implica necessariamente na instituição de um controle rígido, como algumas fantasias paranóicas podem levar a pensar – a MGM controlando os cineminhas de Taubaté à distância, lançando propagandas entre as trocas de rolos, como se fossem canais de TV”, explica o grupo capixaba que surgiu no campus da Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória.

“E também não significa a misantropia final, onde cada espectador, de posse do seu DVD pirata – ou cópia-doméstica-lançada-simultaneamente -, vai se trancar em casa para ver o filme no seu próprio home theather”, continua o grupo, respondendo coletivamente sob o codinome de Gilbertinho, “como qualquer outra tecnologia, por mais ideológica que seja, a sala de cinema pode ser cooptada e utilizada de forma criativa e criadora. Como festival, o CortaCurtas se propõe a promover uma nova forma de consumo audiovisual, definida menos pela vontade dos curadores/ patrocinadores/ realizadores, e mais pela relação momentânea entre projecionista e público. É uma forma de celebrar a sala de cinema enquanto local de diálogo e convívio”. Maiores informações podem ser conseguidas pelo site www.itaucultural.org.br ou pelo email cortacurtas@gmail.com.

O improvável festival talvez não fosse impossível sem a transição do analógico para o digital, mas a mudança é crucial para sua realização – como é o próprio Falcatrua. O coletivo começou há dois anos, em janeiro de 2004, como um projeto de extensão de estudantes da UFES, de diferentes cursos (psicologia, comunicação, artes, arquitetura). “Chegaram uns datashows na universidade e a gente resolveu utilizá-los para projetar filmes. Daí, seguimos nessa vontade de fazer e ver cinema”, explica Gilbertinho, “o Falcatrua organiza-se de maneira místico-anarco-punk-banda-larga e atua não só exibindo filmes, mas também publicando e pesquisando idéias ligadas a utilização de novas mídias aplicadas ao cinema”.

Assim, começaram exibições gratuitas de filmes em locais públicos. Baixados via internet, raridades, lançamentos e curiosidades desfilavam pela tela do cineclube. “As exibições sempre foram gratuitas, mas nunca primamos por um público especifico. Como priorizamos a diversidade tanto dos locais de exibição, quanto do produto audiovisual exibido, acabamos tendo uma diversidade de público constante”, explica o grupo, “exibimos esde seriados de TV até curtas metragens em película: tudo encontra seu denominador comum no cineclubismo gambiarra. Sempre utilizamos equipamentos digitais”.

O cineclube teve problemas com a lei na metade do ano passado, quando foram notificados por exibirem filmes como “Kill Bill”, de Quentin Tarantino, e “Farenheit 11 de Setembro”, de Michael Moore, antes de suas estréias oficiais no Brasil. “Culpa da primeira matéria veiculada na Folha”, ironizam, “claro que depois também veio uma onda de moções de apoio: o movimento cineclubista nacional e internacional, cineastas, produtores, festivais, jornalistas, intelectuais – enfim, uma galera se manifestou pela continuidade do videoclube, e botou lenha no debate sobre os cruzamentos entre cinema e internet. Foi aí também que muitos realizadores começaram a enviar filmes espontaneamente para o Falcatrua”.

Assim, saíram pela esquerda, adotando a transparência e a generosidade intelectual como ferramentas de trabalho. Passaram então a exibir filmes publicados em Creative Commons e copyleft, além de entrar em contato com os próprios realizadores para obter autorização de exibição – tudo mais barato, mais perto do Brasil, longe de Hollywood e dentro da lei. “Freqüentemente, o Falcatrua faz sala para filmes inéditos. São lançamentos nacionais que acontecem no Falcatrua e contam, por vezes, com a presença dos realizadores”, como o documentário “Sou Feia Mas Tou na Moda”, de Denise Garcia.

“A gente vê no Creative Commons uma forma de conformar o direito constituído à economia inevitável da rede. Por enquanto, é a saída mais viável para quem quer aproveitar determinados potenciais de difusão e criação propiciados pelas novas tecnologias e virar as costas de forma limpa a uma economia que perde cada vez mais o sentido”, explica o coletivo. “Daí buscamos difundir as vantagens desse tipo de licenciamento para quem está envolvido com o trabalho realmente criativo – escritores, cineastas, artistas plásticos, músicos, etc. -, como uma forma de compartilhar conhecimento livremente e construir subjetividades coletivamente. Uma forma de aproximar a produção cultural da cultura real”.

Dentro desta lógica, o Falcatrua realiza programações que contam apenas com filmes publicados de acordo com este pensamento open source, as Mostras de Conteúdos Livres. “Levamos para exibir quando somos convidados a participar de algum evento. Junto dessas mostras, programamos bate-papos sobre cinema, internet e direito autoral”.

Aos poucos, o Falcatrua vai se expandindo – além do CortaCurtas que acontece em São Paulo, eles também participaram da XXV Jornada Internacional de Cineclubes e do festival de mídia tática Digitofagia, que aconteceu na Unicamp em novembro passado. E já se tornou exemplo. “Desde as primeiras sessões ensinamos a quem quiser como montar seu próprio cineminha utilizando eletrodomésticos de última geração, através de cartilhas xerocadas e e-zines”, explica o grupo. “A gente até fazia uma piada dizendo que, enquanto outros cinemas itinerantes queriam formar público, nós queriamos é formar exibidores”.

“Claro que teve um momento que a coisa saiu do controle – e nem podemos nos orgulhar e dizer que foi fruto do nosso trabalho, porque não foi. Aconteceu espontaneamente. Quando menos esperamos, descobrimos sessões de ‘Cine Falcatrua’ na PUC-RS e do Cine FalcaTróia, em um espaço chamado Tróia, em Florianópolis. Falcatrua acabou virando uma modalidade de consumir cinema”, comemoram.