Foto: Artofthestate
E essa que o Ruy Castro mandou na semana passada?
“Arte” compulsória
RIO DE JANEIRO – Um museu de Los Angeles inaugurou a maior exposição até hoje de “arte nas ruas”, vulgo grafite. É uma retrospectiva cobrindo a história da coisa, dos anos 60 até hoje. Sou a favor dessa exposição: lugar de grafite é mesmo no museu. Ou nas galerias de arte, nas paredes internas da casa do “artista” ou dos críticos, ou em qualquer lugar. Menos nas ruas.
Não gosto de ser obrigado a consumir “arte” quando não estou a fim. Se abre uma fabulosa exposição de Miró ou Hopper no Rio ou em São Paulo, posso escolher o dia em que irei visitá-la. Ou em que não irei. Enfim, se há um Miró ou um Hopper na cidade, posso exercer meu direito de vê-lo ou não. Mas, se preciso passar todo dia por uma série de muros emporcalhados com grafite, não me dão esse direito. Tenho de vê-los, queira ou não.
Às vezes, leio que a polícia prendeu grafiteiros atuando em algum muro, viaduto ou fachada de prédio abandonado. Eles se ofendem, alegam que estão dando “um presente à cidade” e logo são soltos. A própria imprensa dá a notícia sob a rubrica “Arte incompreendida”. Mas há cidadãos conservadores, que dispensam tais presentes e preferem que a prefeitura se encarregue de limpar os quarteirões depauperados -que, quanto mais grafitados, mais hostis.
Uma das “instalações” na retrospectiva de Los Angeles mostra um beco escuro e grafitado, com lixo espalhado pelo chão. Deve ser fascinante num museu. Mas, na vida real, a cena indica um território fora do controle do poder público, impróprio para habitação e sujeito a marginais. Não por acaso, os grupos de grafiteiros se definem como gangues -quadrilhas.
Nos EUA, com ou sem exposição, grafite é vandalismo e dá cadeia. No Brasil, já que a tolerância é maior, por que as prefeituras não liberam seus galpões ociosos para que os grafiteiros os rabisquem à vontade -pelo lado de dentro?
Tudo bem que o cara tem um texto ótimo (escreva por 40 anos seguidos e tente não ter) e é um senhor biógrafo, mas perdeu uma ótima oportunidade de ficar quieto.
O “jornal do futuro” esqueceu de publicar em sua versão online ao cartum que o Rafael Campos da Rocha reagia à descrição que eu fazia de seu trabalho num post natalino do fim do ano passado (essa eu curti, Rafael, ficou engraçado). Tive de esperar a publicação no blog do artista para não ter que reproduzi-la numa foto tirada com celular (Helô até sugeriu tirar foto com Instagram, mas eu sou menino, uso Android). Irônico esse lapso acontecer na edição em que o caderno que publica a polêmica sobre o livro do Nicholas Carr, que outro Rafael, o Cabral, entrevistou no Link no ano passado (e também publicamos o artigo de Steven Pinker citado no texto do caderno da “concorrenssa”).
Lembrei de uma matéria que fiz para a Ilustrada anos atrás, quando o primeiro encontro dos Beatles e de Bob Dylan completou 40 anos – reunião de cúpula que mudou o curso das carreiras dos dois artistas e, com elas, a história da cultura do século 20. Segue o texto abaixo:
Encontro entre Bob Dylan e os Beatles faz 40 anos
“Olhando em retrospecto, eu ainda vejo aquela noite como um dos grandes momentos da minha vida. Na verdade, eu tinha a consciência de que estava dando início ao encontro mais frutífero na história da música pop, pelo menos até então. Meu objetivo foi fazer acontecer o que aconteceu, que foi a melhor música de nossa época. Eu fico feliz com a idéia de que eu fui o arquiteto, um participante e o cronista de um momento-chave da história.”
Assim o jornalista norte-americano Al Aronowitz se refere ao clássico encontro que, exatamente há 40 anos, mudou a cara da música pop e da cultura popular, quando, no dia 28 de agosto de 1964, os Beatles foram apresentados a Bob Dylan e este os apresentou à maconha. O encontro, ocorrido no Delmonico Hotel, em Nova York, fez com que ambos artistas começassem a se enxergar como partes de um mesmo universo, cedendo atrativos musicais entre si –não havia mais consumismo infanto-juvenil de um lado e cabecismo adulto do outro, tudo era a mesma coisa. Nascia a música pop moderna.
O que a princípio parecia se tornar um breve alô entre jovens ícones se tornou um acelerador para novas certezas que ambas as carreiras vinham desenvolvendo. Fenômeno de mercado, os Beatles eram uma banda elétrica adolescente, cantando baladas de amor e petardos dançantes com maestria inigualável. Já o acústico Dylan nascera na mesma cena folk pacifista que habitava o bairro boêmio do Village e glorificava autores beat e músicos do povo.
Mas logo a seguir as coisas mudariam de figura. Dylan abraçaria a guitarra como um violão de maior alcance, ferindo seus próprios fãs puristas com decibéis de eletricidade distorcida, ao mesmo tempo em que deformava a própria lírica das canções de protesto para um panteão bíblico-pop que buscava a pureza da alma americana ao mesmo tempo em que se perdia em seus próprios pecados. Já os Beatles deixariam de lado o iê-iê-iê para mergulhar fundo em si mesmos, emergindo de seu experimentalismo intuitivo –parte nostálgico, parte ingênuo– com o melhor legado que o formato canção conheceu.
Aronowitz havia entrevistado John Lennon e descobriu que ele considerava Bob Dylan um “ego igual” e, amigo de Dylan, passou a pensar em como aproximar os dois artistas. Até que, naquele 28 de agosto, Al recebe um telefonema –era Lennon, de passagem com os Beatles por Nova York:
“Cadê ele?”.
“Quem?”
“Dylan!”
“Ah, ele está em Woodstock, mas eu posso trazê-lo!”
“Do it!” (Faça!), mandou John do outro lado da linha, e o jornalista percebeu que podia dar ignição na própria história. Aronowitz combinou com Dylan, que veio acompanhado do roadie Victor Maimudes, ao volante. Com Al no carro, foram em direção a Manhattan, chegando logo ao hotel na Park Avenue. Lá, os três alcançaram o andar em que os Beatles estavam, sendo recebidos por um amontoado de artistas, radialistas, policiais e jornalistas, bebendo cerveja e conversando, que esperavam a vez de entrar na suíte para conversar com os Beatles, que estavam na capa da revista “Life” daquela semana.
Dylan entrou rapidamente, e a recepção foi feita pelo empresário do grupo, Brian Epstein, que, ao perguntar, entre champanhe e vinhos franceses, o que Dylan gostaria de beber, ouviu o pedido por “vinho barato” –para despachar o roadie dos Beatles, Mal Evans, em busca da tal garrafa. O encontro vinha frio, e os Beatles ofereceram pílulas para Bob, que sugeriu que eles fumassem maconha. Os ingleses responderam que nunca haviam fumado –consideravam a maconha uma droga pesada como a heroína, restrita a músicos de jazz e escritores malditos.
Pasmo, Dylan perguntou sobre aquela música que eles compuseram sobre estar chapado. Sem entender o que ele queria dizer, o cantor folk citou uma passagem em que os Beatles cantavam “I get high! I get high! I get high!” (“Eu fico chapado”), e Lennon esclareceu que era “I Want to Hold Your Hand”, cuja letra, na verdade, dizia “I can’t hide! I can’t hide! I can’t hide!” (“Eu não posso esconder!”). Desfeito o mal-entendido, Dylan sugeriu que todos fumassem um baseado.
Os Beatles, Dylan, Mal, Victor, Brian, Al e o assessor de imprensa Derek Taylor se dirigiram ao fundo da suíte do hotel, onde se trancaram e fecharam as cortinas. Bob Dylan começou a enrolar o cigarro, mas deixou o fumo cair por duas vezes, deixando que seu roadie terminasse o serviço. Aceso, o cigarro foi passado para Lennon, que passou a vez para o baterista Ringo Starr, que, por desconhecer os rituais canábicos, fumou-o inteiro, sem passá-lo adiante. Isso fez com que Al incentivasse a produção de mais cigarros –e logo cada um tinha o seu.
“Foi muito engraçado!”, lembra Paul McCartney em suas memórias, “Many Years from Now”, “o negócio dos Beatles eram humor, tínhamos muito humor. Havia um lado do humor que usávamos como proteção e, com aquilo ainda por cima, as coisas ficaram mesmo hilárias”.
“Virou uma espécie de festinha”, continua Paul, “voltamos todos para a sala, bebemos e coisa e tal, mas não acho que alguém precisasse de mais fumo depois daquilo. Passei a noite toda correndo para lá e para cá, tentando achar papel e caneta porque, quando voltei para o quarto, descobri o sentido da vida. Queria contar ao meu pessoal como era aquilo. Eu era o grande descobridor, naquele mar de maconha, em Nova York”.
“Até a vinda do rap, a música pop era largamente derivada daquela noite no Delmonico. Aquele encontro não mudou apenas a música pop, mudou nosso tempo”, lembra Al Aronowitz, em sua coluna on-line “The Blacklisted Journalist”. Logo depois, Dylan lançaria, em seqüência, os discos “Bringing It All Back Home”, “Highway 61 Revisited” e “Blonde on Blonde”, enquanto os Beatles trariam “Rubber Soul”, “Revolver” e “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”. Pura história.
Mais uma matéria desenterrada: este foi o primeiro frila que fiz pro falecido caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, uma entrevista com a Diane Coyle, publicada no dia 18 de julho de 2004. que lançava seu Sexo, Drogas e Economia no Brasil, na época. E escolheram essa foto aí embaixo pra ilustrar o bate-papo.
Economia das trocas simbólicas
Para a teórica e apresentadora da BBC Diane Coyle, empresas pontocom não perceberam a tempo as diferenças entre mercados real e virtual
No primeiro capítulo, depois de incluir modelos seminuas das páginas três dos tablóides ingleses e o porta-voz do primeiro-ministro britânico (por ter escrito contos para uma revista erótica) como integrantes ativos da indústria do sexo, Diane Coyle afirma que “a internet mudou o mercado de sexo”, que “a pornografia é, tecnicamente, um artigo de luxo” e que “o sexo ainda é um mercado em crescimento”, além de teorizar sobre o porquê de mais mulheres não trabalharem como prostitutas, devido à rentabilidade do negócio.
Traçando paralelos improváveis e analisando o jogo econômico dentro de universos cognitivos que fazem sentido ao cidadão comum, Diane Coyle explica conceitos básicos de sua área para tirar o ar de “ciência funesta” que a economia assumiu desde seus primeiros anos. Colunista do jornal “The Independent” (onde chefiou, entre 1993 e 2001, a equipe de economia) e apresentadora do programa da BBC “Analysis”, a inglesa é autora de “Sexo, Drogas e Economia” (ed. Futura, 320 págs., R$ 39,00), em que apresenta a economia sem os vícios do meio ao tratar temas corriqueiros como reflexos específicos de diferentes situações econômicas.
“Tenho tentado explicar o assunto a não-especialistas de formas diferentes por toda minha vida profissional -como professora em Harvard, para políticos, quando trabalhei no tesouro do Reino Unido, e para leitores, quando trabalhava em jornal diário. Então, em certo sentido, é o trabalho de uma vida!”, explica Coyle em entrevista por e-mail. “Eu espero que ele ajude as pessoas a superarem quaisquer tipos de medos que possam ter em relação à economia -que é tão divertida quanto importante”, diz.
O livro continua esmiuçando panoramas não muito caros à rotina da mídia econômica, mas deliciosamente ricos em possibilidades reais e inter-relações cotidianas. No capítulo sobre drogas, ela prova que a legalização destas pode ser rentável em diversos aspectos -do econômico ao humano-, enquanto explica o conceito de análise de custo-benefício. Didaticamente, Coyle analisa o consumo entre adolescentes para falar de mercado de riscos, compara a indústria fonográfica aos barões ladrões que construíram as ferrovias norte-americanas no século 19 e, no capítulo sobre tributos, não faz rodeios para dizer que “apenas as pessoas pagam impostos”.
Na paleta de Coyle, temas como ecologia, biotecnologia, governo, imigrações, inflação e macroeconomia são vistos por prismas pouco ortodoxos, como moda, cinema, computação, mercado de arte, telefonia, esportes, o que torna “Sexo, Drogas e Economia” convidativo principalmente para aqueles que vêem a economia com maus olhos. A autora falou ao Mais! sobre alguns desses assuntos na entrevista a seguir.
Por que a cultura popular parece ser um termômetro tão eficaz para as leis da economia, como a sra. mostra em seu estudo?
A economia é apenas uma forma de estudar a sociedade humana -sociólogos e antropólogos lidam com o mesmo assunto, mas com diferentes abordagens. Qualquer questão que envolva muitas pessoas -incluindo qualquer aspecto da cultura popular ou de política pública ou dos mercados de finanças- pode ser analisada do ponto de vista da economia. Para o livro, tentei escolher assuntos que poderiam interessar aos leitores, para não fazê-los desviar do caminho, como a maior parte dos livros de economia faz.
Por que mesmo os mercados como o do narcotráfico, obedecem de forma rígida às regras da economia, mesmo quando agem fora da lei?
As regras da economia são controladas pela mais rígida de todas as leis -a da natureza humana. Na verdade, uma das frentes mais empolgantes nesse assunto atualmente vincula a economia às biologias psicológica e evolucionária. A natureza humana opera em mercados ilegais -talvez até mesmo de forma mais forte do que em mercados legais- porque a questão do lucro é muito mais importante no negócio do crime.
Há algum evento recente que a sra. gostaria de ter incluído em seu livro?
Sim, eu gostaria de ter incluído algo sobre a Enron, a Parmalat e outros escândalos. Esse capítulo poderia falar sobre a importância da informação no funcionamento dos mercados, o papel dos incentivos nos pagamentos aos executivos e os sinais de perigo para que se fique atento à contabilidade das empresas.
Sobre a internet: por que algumas estratégias deram origem à bolha das empresas pontocom ao mesmo tempo em que comunidades auto-organizadas -como as de trocas de arquivos on-line de ponto a ponto (P2P), grupos e fóruns de discussão, grupos criados ao redor de programas de mensagem instantâneas (como ICQ e MSN Messenger)- são tão bem-sucedidas?
Os fracassos das empresas pontocom são decorrentes de três tipos de erro. Um foi pensar que os mercados na internet eram como os mercados fora dela, por isso as mesmas estratégias funcionariam. A indústria da música cometeu esse erro e não se adaptou ao modelo de negócio.
O segundo foi pensar que a internet era um veículo de transmissão como a TV ou o rádio -quando na verdade o conteúdo é menos importante para os usuários do que a habilidade de se comunicarem uns com os outros. As pessoas gostam de se comunicar, por isso o e-mail, as redes de P2P etc. são os vencedores -como os sistemas de mensagens eletrônicas SMS nos telefones celulares.
O terceiro erro foi recorrer a muito financiamento logo de início, quando a difusão via internet segue uma espécie de curva em “S”- devagar no início, se espalhando aos poucos pelo boca-a-boca e então explodindo algum tempo depois. Os custos têm de seguir esse mesmo padrão!
Gostaria que a sra. traçasse a relação entre os milhões de downloads de músicas feitos em programas como Napster ou Kazaa (de troca de arquivos via internet) e a falência do modelo “astro pop”.
Não sei se a era do astro pop terminou -alguns hoje têm o potencial de alcançar mercados verdadeiramente globais. Mas a tecnologia permite que tenhamos estrelas de “nicho”, pois os custos são mais baixos e é possível atingir um segmento específico dentro de um mercado muito maior.
Assistiremos a uma variedade muito maior dos tipos de música que são comercialmente viáveis.
Por que a música parece ser a área em que as novas tecnologias se saem melhor?
Não apenas música, mas também pornografia, jogos, remédios. Tudo aquilo que entope sua caixa postal de e-mails! Sexo, entretenimento e estratégias de enriquecimento rápido: voltamos à natureza humana.
E qual é o papel da genética em termos econômicos?
A tecnologia genética está se tornando largamente importante -será um mercado vasto. É baseada em ciência da computação -pois não é possível seqüenciar genes sem computadores baratos e poderosos-, mas irá envolver questões que dizem respeito às nossas vidas. Eu estou muito preocupada com o conceito de propriedade intelectual, por meio do qual as empresas de biotecnologia estão garantindo seus lucros. O benefício social de algumas descobertas será muito maior que o benefício privado -os remédios contra a Aids são um exemplo-, e precisamos descobrir um modelo melhor que o sistema de patentes vigente para tornar a tecnologia amplamente disponível, encorajando, ao mesmo tempo, a inovação.
Como o “economês” e recentes desastres financeiros ajudaram a derrubar a reputação da economia como ciência?
A economia acadêmica é por vezes é muito específica. Há muito jargão e muitos economistas ruins falando bobagens na TV. Eu queria que os entrevistadores desafiassem o jargão vez ou outra e pedissem para que o economista renomado explicasse o que ele quer dizer. Meu livro mostra que é possível explicar economia em termos diretos.
Existe um outro fator, no entanto. A reputação da economia também sofreu devido ao fato de outros tipos de intelectuais não acreditarem ser possível aplicar métodos da ciência à sociedade. Eles preferem uma abordagem mais literária ou cultural.
O mercado realmente age como um ser vivo ou isso é apenas uma boa metáfora?
Pode ser elucidativo pensar no mercado como uma estrutura social, como um formigueiro. Na verdade, isso nos afasta de conversas a respeito do “mercado” na forma abstrata. Mercado é o sistema de relações entre as pessoas, e as regras sociais dos mercados são muito importantes para que ele funcione.
Já que a sra. se refere à economia como sendo uma filosofia, acreditaria que possibilidades utópicas ou distópicas, como sociedades sem classes ou o colapso financeiro mundial, são apenas ideais e intangíveis?
O século 20 foi uma demonstração dos perigos da tentativa de aproximar a sociedade de um ideal abstrato, de qualquer forma. Meu tipo de economia é uma filosofia bem pragmática, que não almeja um mundo ideal, e sim fazer melhorias neste em que vivemos a partir das evidências disponíveis.
John Maynard Keynes é famoso por ter dito que, quando as evidências mudassem, ele mudaria de idéia -e por isso era um economista formidável.
Esta não é, no entanto, a primeira vez que entrevisto Sterling – apenas a primeira vez pessoalmente. Certa feita já havia entrevistado o sujeito, mas para a Folha de S. Paulo, no falecido caderno Mais, à época do centenário de Júlio Verne, em 2005. Ó só:
O pai da matéria
O escritor cyberpunk Bruce Sterling fala sobre o papel de Júlio Verne, cuja morte completa 100 anos, como fundador da ficção científica
Bruce Sterling animou-se para conversar sobre Júlio Verne. Um dos pais do último grande cânone da ficção científica no século passado, o gênero chamado de cyberpunk, Sterling não é apenas um dos inúmeros frutos da árvore genealógica que o escritor francês, autor de livros como “20 Mil Léguas Submarinas” e “Cinco Semanas Num Balão”, plantou no final dos 1800. Mais do que isso, Bruce é um entusiasta fervoroso do papel de Verne como pai da matéria.
“Quando Júlio Verne inventou a ficção científica”, disse Sterling em sua palestra no sexto Simpósio Internacional de Arte Eletrônica (o ISEA), em 19 de setembro de 1995, em Montreal, no Canadá, “ele descobriu quase acidentalmente que a França do século 19 era um grande mercado para tecno-romances. Ele encontrou e alimentou o enorme apetite cultural da época por tecnologias futuristas como o balão de ar quente, o submarino elétrico, o navio de guerra equipado com aeronaves, o canhão lunar”.
“Hoje, ao fim do século 20”, continuou, “eu sinto uma grande senso de solidariedade para com meu ancestral espiritual quando falamos de assuntos como realidade virtual, telepresença e vínculos diretos entre nosso cérebro e o computador. Mesmo quando estou aqui, em frente de vocês, eu mal consigo esconder minha gana natural em inflar estes enormes balões hi-tech prateados com o ar quente da imaginação”.
O paralelo que Sterling traça entre sua própria obra e a de Verne não almeja a autocelebração – é quase como um exercício dos limites que qualquer escritor que lide tanto com ficção científica quanto com as transformações da tecnologia atual em nossa sociedade deveria fazer consigo mesmo. Autor de livros como “Piratas de Dados”, “Tomorrow Now” e da coletânea “Mirrorshades: The Cyberpunk Anthology”, Bruce, tecnófilo e enciclopédico, briga para que um autor francês seja considerado o pai de um gênero cujas grandes obras foram escritas em inglês.
Verne, cuja morte completou 100 anos no último dia 24 de março, foi celebrado por Sterling nos prefácios que este escreveu para novas edições de “Volta ao Mundo em 80 Dias” (Around the World in Eighty Days, Random House, 2003) e “A Ilha Misteriosa” (“The Mysterious Island, New Amer Library Classics, 2004), e no já clássico ensaio “Midnight on the Rue Jules Verne, em que repassa a biografia do francês de forma a enaltecê-lo. “Uma espécie de tradição popular na ficção científica circunda seu pai fundador Júlio Verne. Todos sabem que ele era o cara quando a megalópole moderna da FC era apenas uma vila do século 19. Há um monumento em bronze em sua homenagem na parte velha da cidade, o Vieux Carre. Vocês sabem, aquela parte que foi construída pelos franceses, antes de existirem os carros”.
Qual é a principal contribuição de Júlio Verne neste primeiro século após sua morte?
Ele inventou um novo tipo de romance, que tornou-se tão conhecido e lucrativo a ponto de pavimentar o caminho para um gênero inteiro que existe até hoje.
Pode-se dizer que ele era um escritor de literatura fantástica que gostava de tecnologia?
Acho que é mais apropriado dizer que Júlio Verne escrevia sobre tecnologia, ainda que se permitisse algum exercício de literatura fantástica.
Suas idéias ajudaram no desenvolvimento da ciência e da tecnologia que veio depois da publicação de seus livros ou ele apenas estava a par do que acontecia na época?
Verne tinha conexões muito boas com o mundo científico, especialmente entre geógrafos e exploradores. Ele pôde tornar públicas muitas tecnologias ainda incipientes, como a energia elétrica, que eram apenas curiosidades de laboratório em sua época. Muitos de seus jovens leitores ficaram tão intrigados por seus livros que se profissionalizaram em campos técnicos – desta forma, ele também agia como recrutador de profissionais técnicos.
Não é interessante o fato de o principal escritor da Revolução Industrial ser francês?
Não, de forma alguma. A França era um centro de poder científico e industrial com alcance global. Se a França não tivesse saído tão ferida nas guerras da Europa continental, provavelmente estaríamos falando em francês agora. Na época de Verne, a memória de um conquistador mundial como Napoleão ainda era muito recente, enquanto os revezes assustadores da Guerra Franco-Prussiana, da Primeira Grande Guerra e da Segunda Guerra Mundial ainda iriam acontecer no futuro. Os franceses são um povo ótimo, mas sua condição geográfica não foi justa com eles.
O que você acha da obra de Verne em termos literários?
Bem, ele não é de forma alguma um literato elegante, mas acho que Verne é melhor escritor de prosa do que o que seus críticos dizem. Ele é muito bom ao construir cenas dramáticas com reviravoltas surpreendentes. Mas sua grande virtude era sua pesquisa meticulosa. Eu não consigo lembrar de outro escritor de histórias fantásticas que o consiga equipará-lo neste quesito. Ele era capaz até mesmo de escrever enciclopédias, o que ele, na verdade, também fez.
Qual era a importância política de um escritor de ficção científica tão popular em sua época?
Verne é um autor lembrado por todo o planeta e não há dúvidas de seu orgulho de ser francês, mas poucos livros seus se passam na França. Ele era um escritor europeu que não temia olhar para além da fronteira. Se uma Europa futura quiser assumir um papel de líder global, ele pode ser um interessante exemplo a ser seguido. Ele seria um exemplo ainda mais interessante a ser seguido por novos escritores de ficção científica que tentem trabalhar com os grandes poderes em desenvolvimento de países emergentes como Índia, China e Brasil. Imagine uma “Volta ao Mundo em 80 Dias” moderna, em que Aouda é o personagem principal e todo o livro seja indocêntrico. Seria uma obra bem interessante.
Antes de ser publicado, Júlio Verne foi descartado por diferentes editores como sendo “científico demais”.
Escritores recebem críticas e são rejeitados pelas razões mais improváveis. Eu acho que o verdadeiro motivo pelo qual Verne era dispensado com freqüência é que ele simplesmente não era um praticante literato convencional. Ele nunca passou muito tempo discutindo romances com escritores; as raízes de sua literatura estão no teatro. O status quo literário não é muito agitado, mas se você o ignorar, é muito provável que eles lhe paguem na mesma moeda. E eles não sabiam o que fazer com Verne. Ele deixou Paris, que era a capital da vida literária, para trabalhar em Amiens. Ele se marginalizou por opção.
Mesmo sendo contemporâneo de autores como Alexandre Dumas e Victor Hugo, Júlio Verne é o autor mais traduzido de todos os tempos. Qual é o motivo de sua popularidade?
Acho que você deveria perguntar porque Dumas e Hugo são menos populares hoje em dia. E eu acho que é porque suas obras estavam envolvidas com as tensões culturais de seus tempos que cada vez mais tornam-se parecidos com artefatos do passado. Verne tinha uma visão mais remota e abstrata dos assuntos da pauta de sua época, por isso seus livros envelheceram melhor.
Ele pertence a uma geração de escritores que viu o declínio da dominação mundial francesa e a ascensão do Império Britânico. Suas obras refletem esta mudança de poder?
Acho que a grande mudança no trabalho de Verne acontece logo após que ele se torna um político eleito. Uma vez que ele se tornou uma autoridade local e estava envolvido com o governo diário de uma cidade, ele passou a entender que o mundo não dá margem para super-heróis fantásticos como o Capitão Nemo. É quando seu trabalho torna-se mais quadrado e pessimista – como se alguém o levasse para trás das cortinas, onde ele pudesse ver as alavancas e as engrenagens. Isso pode ser um pouco desapontador.
Quais são seus livros favoritos de Júlio Verne?
“Vinte Mil Léguas Submarinas” é sua obra-prima. Mas meu livro preferido é “Paris no Século 20”. É uma obra de texto fragmentado, mas ao mesmo tempo é uma das visões mais impressionantes do futuro jamais imaginada por um romancista.
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Júlio Verne no Brasil
Algumas obras do autor francês que estão em catálogo no país
Volta ao Mundo em Oitenta Dias (Ed. Ática, 2000, 248 págs. R$ 19,90)
Cinco Semanas Num Balão (Ed. Ática, 1998, 304 págs. R$ 19,90)
Paris no século XX (Ed. Ática, 1995, 224 págs. R$ 20,00)
Viagem ao Centro da Terra (Ed. Ática, 2000, 232 págs. R$ 19,90)
A Jangada – 800 Léguas Pelo Amazonas (Ed. Planeta, 2003, 371 págs. R$ 38,00)
20 Mil Léguas Submarinas (Ed. Ediouro, 2004, 184 págs. R$ 24,90)
Da Terra À Lua (Ed. Melhoramentos, 2004, 128 págs. R$ 19,90)
O Raio Verde (Ed. Melhoramentos, 2005, 128 págs. R$ 19,90)
Depois de se candidatar a alguma coisa, ela segue sua franca decadência. Da Monica Bergamo de hoje:
Chapa quente
Uma caminhada pelo shopping Aricanduva, na zona leste de SP, anteontem, ao lado do candidato a governador Celso Russomanno (PP) provocou uma briga entre a cantora Simony, candidata a deputada estadual pelo PP, e Roberta Maia, filha de Reinaldo Maia, candidato ao mesmo cargo pelo PTC. Roberta acusa Simony de a ter “unhado”. No Twitter, Simony escreveu que foi “ameaçada de morte” por assessores de Maia. A assessoria de Celso Russomanno diz que “não está autorizada a falar sobre o episódio”. A coluna conversou com Simony:
Folha – O que aconteceu no shopping Aricanduva? A Roberta diz que você a unhou.
Simony – É melhor eu te passar pro meu assessor. Mas vou te falar que eu faço várias agendas com vários candidatos, faço direto com o doutor Paulo [Maluf]. E ontem [anteontem] fui chamada pelo Celso. Ele tem meu rádio, meu avô trabalha com ele há 16 anos. No dia anterior eu fui à Festa do Morango de Atibaia com ele e fui bem recebida por outros candidatos, ganhei até caixa de bombom. O Celso me disse que iríamos caminhar eu, ele e Ronaldo Esper [candidato a federal pelo PTC] pelo shopping.
Achei ótimo, porque é um shopping lotado. Eu nasci na zona leste e a Dirce, minha amiga, mora atrás do shopping. Quando cheguei, vi que ele [Reinaldo Maia] era candidato a deputado estadual, mas vou a vários lugares e nunca tive problema. E só vou quando sou solicitada.Você discutiu com a Roberta?
Ela me disse que eu não podia ficar lá, porque ela tinha fechado o shopping. E eu disse que não iria sair porque o shopping é lugar público.A Roberta diz que você a agrediu neste momento.
Ela me agrediu, e eu chamei a polícia. Ela apertou o meu braço, e os seguranças deles ameaçaram meu assessor de morte. Ela me apertou, e eu me defendi. Imagina, nunca fiz esse tipo de baixaria. Aí pedi pelo amor de Deus para pararem com aquilo, que era uma campanha. Eu falei pro Celso dizer que ele havia me convidado, e ele falou que havia lugar pra todos. Depois meu assessor chamou a polícia, mas decidimos não fazer B.O. pra não prejudicar o Celso. Eles falaram que “iam pegar o meu assessor e o meu avô lá fora”. Tivemos que andar com quatro seguranças.
A íntegra da “polêmica” aqui.
Enquanto o Bruno filma a Marcha da Maconha no Rio de Janeiro, a Folha noticia a recente seca de maconha em São Paulo.
Como bom brasiliense, fica aqui a minha lembrança e meu salve ao João de Santo Cristo original, o retirante carioca que legitimou a cultura da minha cidade-natal em forma de canção. Aproveitei a data para desenterrar uma entrevista que fiz com o Renato Russo em 1994 e que foi capa da Ilustrada em 2001, quando completaram cinco anos da morte do cara. Segue:
Em entrevista inédita, Renato Russo fala de drogas e da Legião
Há exatos cinco anos o pop brasileiro perdia o pouco de senso crítico que tinha, acelerando a escavação do atual abismo cultural em que se encontra. Com a morte de Renato Russo, acabava a Legião Urbana, uma das duas bandas de rock mais importantes do Brasil, funcionando no imaginário nacional -ao lado do experimentalismo dos Mutantes- como os Beatles para o do planeta.
O fim do grupo coincidiu com a aceleração da idiotização do pop brasileiro, hoje composto por discos de regravações, muitos deles subprodutos da própria Legião.
No dia 21 de maio de 1994, Renato Russo e a banda viajavam pelo interior de São Paulo com a turnê do disco O Descobrimento do Brasil. O show daquela noite havia sido no ginásio municipal de Valinhos (a 88 quilômetros da capital) e problemas com a acústica do lugar fizeram o grupo convocar uma reunião de emergência na beira da piscina do hotel Royal Palm Plaza, em Campinas. Leia trechos da entrevista concedida por Renato Russo, após a reunião.
Qual seu disco favorito da Legião Urbana?
O V, que eu acho o disco mais difícil. Gosto muito de O Descobrimento do Brasil. Agora, que encontrei a programação dos 12 passos -parei de beber e de me drogar-, tudo está mais tranquilo. Esse show de hoje, por exemplo: o som estava um caos, tudo estava um horror, e o público, superlegal. O lugar tinha uma reverberação brutal. O público berrava muito, e o engenheiro de som teve de aumentar tudo, desequilibrou. No começo era só “bum-bum-bum” e eu berrando, não dava para ouvir os detalhes. Mas, se fosse em outra época, eu teria ficado tão preocupado que ia beber, tomar um porre, falar: “Nunca mais vou fazer show”, nhem-nhem-nhem… Isso agora não existe mais. Há uma tranquilidade, uma serenidade que esse disco trouxe, e acho que as músicas refletem isso.
Como foi sair dessa fase?
Eu estava me destruindo e, em vez de me matar com um tiro na cabeça, preferi procurar ajuda. Isso vem desde os 17 anos, mas no V foi a primeira vez que coloquei na música essas questões. “Montanha Mágica” é sobre isso. Eu era jovem e acabei entrando num beco sem saída.
Isso foi me consumindo, eu ficava deprimido e não sabia o porquê. Achava que o mundo era horrível, igualzinho ao Kurt Cobain, nada mais valia a pena. E isso é estranho porque, se eu achar um dia que as coisas não valham a pena, quero estar com a cabeça no lugar, e não com o corpo cheio de toxinas. Parei com todo tipo de droga e vi que as coisas não eram tão ruins.
Isso se refletia na sonoridade da banda?
Isso a gente decide. Todo disco a gente tenta fazer uma coisa diferente, até porque é mais divertido. E para não ficar na obrigação de repetir o mesmo trabalho. Não achávamos que o Quatro Estações fosse estourar, porque é um disco bem difícil, mas todo mundo gostou. As letras são complicadíssimas e não é tão pra cima quanto acham. É tão depressivo quanto o V.
Tentamos fazer músicas mais pra cima porque era natural, mas não ficava bom. O Descobrimento do Brasil não é um disco pra cima, é como o Power, Corruption and Lies, do New Order. É a coisa mais gloriosa do mundo, mas, se prestar atenção, é pesado.
Como o Quatro Estações…
No geral, as pessoas acharam que aquilo foi a coisa mais alegre que já foi feita. Enquanto o V, não. A gente tentou fazer uma música alegre pelo menos, de tudo quanto foi jeito, e não saía. “Vento no Litoral” só tocou porque tem uma melodia bonita. Acho “Metal contra as Nuvens” uma música superacessível. O problema é que o disco falava de coisas que as pessoas não estavam querendo ouvir na hora. Foi quando estourou a axé music, a gente veio na contramão. Mas o disco tem as melhores letras, de longe. Consegui falar tudo o que eu queria. Mas as pessoas não queriam ouvir aquilo. Por exemplo, “Metal contra as Nuvens” é uma música sobre o Collor, mas nunca ninguém falou sobre isso.
Como você vê a crítica?
Eles usam os motivos errados. Eu não sou o dono da verdade, mas, para mim, o que motiva esses caras é um rancor e uma incompreensão do que é o nosso país e de como as coisas funcionam. Existem iniciativas maravilhosas no Brasil e a gente não sabe. Aí a gente fica oprimido, achando que tudo não presta, que tudo é horrível. Gostaria de poder apresentar um bom trabalho para as pessoas que gostam da gente. Acho sacanagem, na posição que a gente está, não tentar se esforçar o máximo para apresentar o melhor que a gente pode fazer.
E o futuro do Legião?
Não tenho idéia. Eu não vejo como a gente vai seguir o que está fazendo sem se repetir. Depois de “Perfeição”, eu vou escrever o quê? Depois que você fala “vamos celebrar a estupidez humana”, o que você vai falar? Então talvez a gente faça uma coisa parecida com o que o The Cure faz, para depois, com o tempo, a gente fazer uma mescla. Ou virar uma banda de trabalho, como o New Order. Eu não quero ficar falando como eu acho tudo horrível como está. Se a gente cansar, a gente pára. Se a gente achar que ainda vale a pena fazer alguma coisa, a gente continua.
Vimos grandes homenagens devido à passagem de Glauco pro outro lado na última sexta. O JT dedicou quase toda sua capa ao Geraldão, personagem-síntese do cartunista. A Folha, por sua vez, fez um bom especial com diversos tributos ao cara (a bela ilustração abaixo feita pelos Dos Amigos restantes, Angeli e Laerte, inclusive), mas matou a pau traduzindo o respeitoso minuto de silêncio em imagens, ao tirar todas as ilustrações da edição de sábado, deixando apenas espaços em branco em memória.
Foto: tim2ubh
Em 2005, entrevistei o mestre por fax, pra Folha. Até nos falamos por telefone, mas ele preferiu responder a entrevista em sua máquina de escrever, no papel timbrado de seu escritório. Pelo telefone, ele elogiou algumas perguntas que fiz, mas guardo até hoje o papel enviado à distância, com um “good luck” e a assinatura do mestre no pé do papel. Um dia, quem sabe, enquadro.
Em “Terroristas do Milênio”, J.G. Ballard descreve a revolução da classe média para elucidar questões sociopolíticas atuais
Apesar de não se considerar mais um escritor de ficção científica (“A ficção científica morreu quando o homem pisou na Lua, em 1969”), J.G. Ballard, 74, ainda navega pelo gênero que o consagrou. Seu mais novo livro, “Terroristas do Milênio”, não cogita as destruições apocalípticas de suas primeiras obras, embora continue lidando com um dos principais aspectos da ficção científica: futurologia como laboratório de ensaio para idéias.
Em “Terroristas…”, à moda de seus livros mais recentes (como “Super-Cannes”, 2000), Ballard cogita previsões imediatistas para tentar elucidar charadas sociopolíticas do presente. Pelos olhos do psicólogo desiludido David Markham, ele nos apresenta uma revolta elitista de um condomínio fechado londrino como uma nova versão para a revolução.
Descreve a classe média como um novo proletariado que se rebela contra a força opressora da mesmice inventada para mantê-la em seu lugar. Liderada pelo esguio e carismático pediatra Richard Gould, esta nova revolução desordena a estrutura da rotina com pequenos atentados ao dia-a-dia -em paralelo a outro tipo de atentado, como uma bomba que explode no aeroporto de Heathrow logo no início do livro. Leia a seguir a entrevista que o escritor concedeu à Folha.
Como em seus últimos livros, “Terroristas do Milênio” parece funcionar ao mesmo tempo como uma profecia sombria e um sonho esperançoso. O sr. se considera um otimista?
Sim, mas temos de ser realistas a respeito do mundo em que vivemos. Acho que vivemos uma época muito perigosa. A velha ordem mundial -o Ocidente contra o bloco soviético- acabou, e ninguém sabe quem são seus verdadeiros aliados. Tanto o Islã quanto os Estados Unidos são vistos como uma ameaça. Nossa cultura de entretenimento deixa as pessoas entediadas. A política, a monarquia e a religião fracassaram. Será que o consumismo consegue manter tudo junto? Talvez o esporte, especialmente o futebol, seja o único cimento que previne toda a estrutura de desabar.
As questões políticas estão se tornando parte da textura do século 21? Como o sr. relaciona isso com o fracasso dos sistemas políticos do século passado?
A política fracassou completamente no mundo inteiro e não é mais capaz de resolver nossos principais problemas -intolerância étnica e racial, desigualdades de renda, epidemias globais, a destruição do ambiente, o aquecimento global, ajudar o Terceiro Mundo e tantos outros. Onde a política falha, soluções mais perigosas e radicais tendem a aparecer -como a Alemanha nazista, uma cruzada religiosa e racial fingindo ser um movimento político.
A classe média está ficando entediada consigo mesma?Acho que sim. Todas as pessoas, mesmo as mais bem-sucedidas da classe média, têm necessidades espirituais e criativas profundas, que não podem ser satisfeitas com uma bolsa da Gucci, uma viagem para Miami ou um BMW novo. Precisamos achar significado para nossas vidas. Hoje vivemos como crianças que podem comer o quanto quiser dentro de uma fábrica de chocolates.
À medida que o novo século começa, as pessoas tornam-se mais individualistas devido à desilusão para com as instituições ou começam a agir de uma forma mais coletiva? Isso é consciente?
As pessoas de hoje são muito menos individualistas do que eram há 50 anos. Nós vivemos uma época muito conformista. Um número enorme de regras e convenções sociais domina nossa vida -limites de velocidade, como educar os filhos, quando e onde eles devem ir à escola, como tratar nossas mulheres e maridos, que drogas podem ser tomadas ou não, e por aí vai. A maior parte das grandes decisões econômicas de nossas vidas hoje são decididas por companhias multinacionais, pelo Banco Mundial e pelo FMI. Mas as pessoas são incansáveis, e vemos isso em crimes sem sentido; o ataque do 11 de Setembro foi um protesto contra o modo de vida ocidental e sua cultura de entretenimento corrupta, que aplaca nosso impulso religioso.
Qual é o papel do terrorismo atualmente? É uma questão de desestabilizar o status quo ou são as Forças Armadas dos fracos?
Ambos. Atos terroristas espetaculares, como o 11 de Setembro, podem desestabilizar nações inteiras e até mesmo o mundo, a ponto de os Estados Unidos atacarem o Iraque como uma resposta cega e movida por emoções. Quando as pessoas se sentem enfraquecidas, elas voltam-se para suas emoções, como fizeram Bush e os novos conservadores depois do 11 de Setembro, e as emoções são muito mais perigosas do que ambição fria.
Revolução e crise são sinônimos para a mesma coisa, vistas por ângulos diferentes?
A maior parte das revoluções fracassou, e aquelas que foram bem-sucedidas tenderam a esmaecer, deixando apenas rastros ou continuaram fluindo, como rios por baixo da terra.
O entretenimento matou o sonho?
Nossa cultura de entretenimento atual sufoca tudo e redefine a realidade, ao, com efeito, provar que a cultura de entretenimento é a nova realidade.
Por que sempre parecemos viver em um momento crucial da história?
A mudança acontece tão rapidamente hoje que nós podemos sentir as variações no terreno. Mas é uma época genuinamente desafiadora. Em contraste, os anos 70 e 80 foram épocas mais calmas, até a queda do Muro de Berlim e a derrota do comunismo global.
Qual é a sua opinião sobre a era eletrônica?
A internet é um fenômeno impressionante, com o mesmo potencial de mudar o mundo que o rádio e a TV. Ela já começou a expandir a consciência humana. Tudo pode acontecer. Surgirá a primeira religião da internet, a primeira aldeia, o primeiro movimento político. Percebo uma mudança na consciência humana.
O sr. ainda se considera um escritor de ficção científica?
Não. Parei de escrever ficção científica nos anos 60. A ficção científica morreu quando o homem pisou na Lua, em 1969. Mas, de muitas formas, a ficção científica venceu, foi bem-sucedida ao atingir seus alvos e foi absorvida pelo mercado comercial.
O sr. usa a internet?
Uso o computador da minha namorada -adoro a poesia acidental que se encontra na rede. No site do litoral da Califórnia, em que você pode flutuar como um pássaro por horas. Você pode explorar silos nucleares em desuso. Acompanhar a migração de aves equipadas com rádio em viagens enormes entre a Europa e a África.
“Terroristas do Milênio” poderia acontecer nos EUA?
Já está acontecendo nos EUA. Cultos religiosos estranhos, movimentos antiaborto, hostilidade para com a evolução darwiniana. Esse grupos de protestos são, em sua maioria, da classe média, insatisfeitos com a ordem atual.
Com qual personagem o sr. melhor se relaciona, Richard Gould ou David Markham? O intelectual em dúvida é o par perfeito para o revolucionário carismático?
Acho que Richard Gould está mais próximo de mim; concordo com suas idéias, mas não com suas ações. Como reconciliar ambas as coisas é o grande problema.
Quais são os melhores e piores legados do século 20?
O melhor: liberdade individual, a dedicação da ciência em fazer um mundo melhor e o sentido que somos um mesmo planeta e uma mesma família humana. O pior: a facilidade com que um ditador ambicioso pode escravizar as pessoas, seja fisicamente como Stálin, ou mentalmente, como Hitler. É triste, mas as duas coisas devem ocorrer novamente.
Como o sr. vê o declínio da Europa e dos Estados Unidos enquanto faróis culturais dos séculos passados? Quem deverá sucedê-los?
A Europa e a América são lugares muito diferentes. Os Estados Unidos têm uma cultura de entretenimento popular que é atrativa, mas que não satisfaz, como um hambúrguer ou um pacote de chicletes. A Europa tem uma cultura mais elitista, que não é simples de ser compartilhada, mas que satisfaz muito melhor. Mas a nova supereconomia chinesa mudará tudo.
E o Brasil?
Eu visitei o Rio em 1969 e fiquei muito surpreso com sua vitalidade, charme e as mulheres mais lindas do mundo. O Brasil sempre ocupou um lugar especial na imaginação ocidental, graças em parte ao Rio, em parte à nossa imagem da Amazônia e suas florestas imensas, que representam um sonho profundo do coração primevo da humanidade. Desejo-lhes tudo de bom!