Fiona Apple enfia o dedo na cara e na ferida
“Pegue os alicates”, Fiona Apple canta o refrão da faixa que batiza seu novo álbum como se estivesse capturando a sensação de pressão interna e desespero em relação ao futuro em 2020, “estou aqui há muito tempo”. Ela não está falando da quarentena ou da pandemia – pelo menos não diretamente. Em Fetch the Bolt Cutters ela segue seu papel que mistura a trovadora e a cronista, passando por aquela brecha entre a divindade etérea de Tori Amos, Björk e Kate Bush e a mundanidade rock Patti Smith, PJ Harvey e Cat Power em que poucas – Sharon Van Etten, St. Vincent, Angel Olsen, Lykke Li e Letrux, só pra citar algumas – conseguiram se esgueirar, e segue cantando sobre relações conturbadas, que podem ser, ao mesmo tempo, entre música e celebridade, arte e mercado ou sobre casos e casamentos que tomaram rumos inesperados – muitas vezes drásticos.
Mas ao apressar o lançamento de um disco que vinha sendo prometido há oito anos no meio da quarentena, ela entendeu que havia captado a essência dessa angústia ambígua que marca este 2020 confinado. São canções cujas melodias evidentemente nasceram ao piano, mas no estúdio renasceram percussivas, tornando crucial o ritmo das batidas – sintéticas ou analógicas – para o andamento de todo o disco, que também conversa com o canto cada vez mais falado da cantora nova-iorquina. A estranha mas familiar proximidade de Fetch the Bolt Cutters com o rap torna o disco ainda mais incisivo, mesmo nos momentos mais sutis, embora estes sejam poucos. Quase sempre Fiona canta com um riso no canto da boca e sangue nos olhos, pronta para virar o jogo ao menor deslize do adversário, seja quem ele for: “Pode me chutar embaixo da mesa o quanto quiser, eu não vou me calar”, vocifera em “Under the Table” para depois lamentar à distância “você e eu seremos como alguns cosmonautas, exceto que com muito mais gravidade do que quando começamos” em “Cosmonauts”. E os versos centrais de “Relay” e “For Her” (“O mal é um esporte de revezamento, quando aquele que está queimado volta para passar a tocha” e “Como você sabe que deveria saber, mas não sabe onde é”) parecem comentar especificamente a trágica política deste ano bizarro, acertando em cheio nas caricaturas que deixamos tomar conta de nossas vidas como se mirasse em nós mesmos, sem aliviar nada pra ninguém, enfiando o dedo na cara e na ferida ao mesmo tempo. Um disco tão maravilhoso quanto, desculpem o clichê, necessário.
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