Fala Fióti!

, por Alexandre Matias

fioti

Conheci o Evandro Fióti quando seu irmão Emicida ainda estava na fase das mixtapes, vendendo CDs e camisetas baratinho logo após seus shows. O rapper descia do palco para cumprimentar os fãs e seu irmão vinha logo em seguida, mostrando os produtos à venda. Aos poucos ele assumia o papel de empresário de Emicida para liberá-lo das funções burocráticos, mas o convívio com os dois mostrava que a carreira do MC era administrada pelos dois, numa clara divisão estratégica para conseguiver viver de música.

Os anos foram passando e a dupla de irmãos hoje é dona do Lab Fantasma, que administra tanto a carreira de Emicida como de seu comparsa Rael, além de funcionar como uma distribuidora de música digital e agendar shows no Brasil e no exterior. Mas o progresso profissional aos poucos deixou Fióti mais à vontade para voltar ao violão, seu instrumento de vocação, onde aos poucos burilava clássicos da MPB em vídeos que postava sorrateiramente nas redes sociais.

Talvez só ele soubesse, mas era o início de sua carreira artística. Ao violão pode descobrir-se músico, compositor – a princípio ao lado do irmão – e finalmente cantor, deixando sua personalidade musical revelar-se em seu EP de estreia, o impressionante Gente Bonita, em que canaliza diferentes autores brasileiros – Djavan, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Edson Gomes, Luiz Melodia, Jorge Ben – para criar um cânone particular de uma musicalidade híbrida, nascida com pés no samba mas que flerta com o soul, a MPB e até com o reggae (“Leve Flores”, que encerra o disco, é a minha favorita).

O disco é apresentado com o clipe de “Obrigado, Darcy”, que conta com a participação de Caetano Veloso lendo uma máxima do velho antropólogo saudado na canção. “Fui gravar o clipe no Rio e a Paula (Lavigne, esposa e empresária de Caetano) estava voltando de Nova York e me chamou no WhatsApp para eu ir à casa dela”, ele me conta em entrevista por email. “Há tempos não nos víamos, eu mostrei um primeiro corte para ela do vídeo, e ela achou bonito. Aliás, a Paula é uma das pessoas que mais me incentivaram nos últimos anos a fazer esse projeto, aí tinha aquela parte do vídeo em que eu estou caminhando. Eu iria colocar a foto de Darcy e a frase escrita, mas pensei: ‘Pô, será que Caetano topa ler isso? Seria tão lindo e importante nesse momento’. Eu sou tímido, mas sou cara de pau! Vou te falar que até agora ainda não acreditei. Tive noites de insônia reouvindo a gravação de voz dele para saber se isso estava de verdade acontecendo, coisas loucas da vida, meu primeiro EP, meu segundo clipe e conto com Caetano Veloso colaborando comigo, é surreal! Só posso agradecer…”

É uma estreia de peso, embora Fióti precise relaxar um pouco mais, deixar tudo soar mais à vontade. Suas composições já são assim, mas sua interpretação ainda tem um certo recato, alguma timidez que com certeza irá soltar-se ao vivo. “Vou começar pensar nisso agora, mas vai ser para o segundo semestre”, ele me explica sobre os shows. “Já tem algumas datas confirmadas, divulgaremos em breve, vou usar meu tempo para fazer preparação vocal, pois eu preciso, fiquei muito tempo parado e nunca fiz show de verdade. Já toquei em bares de São Paulo, mas show mesmo nunca fiz, sempre estive no backstage nesse quesito, então quero me preparar bem e juntar alguns músicos amigos que topem entrar nessa brincadeira gostosa comigo, estou me preparando. E em breve novidades…” Abaixo, mais da conversa que tive sobre seu primeiro disco, um lampejo de otimismo neste momento tão bizarro para a cultura brasileira.

Desde o anúncio de sua carreira ao lançamento do EP, como a vida de artista alterou sua vida de empresário?
Olha, eu acho que ainda vai alterar um pouco, sobretudo na privacidade. Vai ser difícil, acredito eu, ser produtor, empresário nem tanto. Até aqui tudo corre como o planejado, pois optei por fazer esse projeto no começo do ano, quando há menos demandas, e também gravei à noite para não prejudicar o trabalho no escritório. Vamos ver como as coisas vão andar, mas até aqui está tudo sob controle!

“Obrigado, Darcy” foi gravada bem antes de chegarmos a essa situação política bizarra pela qual o país atravessa. Você acha que ela tem uma outra leitura neste momento?
Eu escolhi essa música para o projeto em 2014. Acho que a leitura que ela dá nesse momento é o que a história nos mostra: existe um Brasil elite que não quer largar suas mordomias e seus privilégios e usa todos os seus métodos escrotos para obter o que quer. Darcy dedicou sua vida, até entrou na política para tentar mudar esse quadro, mas realmente o Brasil é um país muito difícil, muita gente gosta mesmo de ver a desgraça toda que aí existe e só pensa em algo quando essa desigualdade lhe bate à porta, seja um assalto, seja um sequestro ou a perda de alguém próximo.
Nosso povo não precisa de muito para se tornar uma grande nação, a gente só pede educação, cultura e saúde para todos. Equilibrando a balança social, dando dignidade às pessoas, todos estarão no mesmo patamar de igualdade para pleitear um emprego, uma boa faculdade, ter uma vida digna de verdade. Mas existe um projeto no Brasil em curso há mais de 500 que favorece os mesmo sempre, esse projeto visa esmagar o povo que vive às margens, e isso é muito triste. Nosso povo já apanhou demais, nossos ancestrais nos guiarão, vamos passar por mais essa fase, vai ter sangue, vai ter morte, vai ser horrível, mas a história vai nos absolver como sempre. É importante se manter na luta, pois a cada passo dado, ao menos a gente não está mais no mesmo lugar, da mesma maneira que a luta hoje é diferente e um pouco “melhor” para mim do que foi para minha mãe e meus avós. Pode ser que meu neto colha os frutos de um país mais justo, então você tem que ir por prioridades.
O momento agora é de resistência para não ter retrocessos. Nem mesmo nosso voto eles respeitam mais. Em pleno 2016, num país como o nosso, uma das maiores nações do mundo, eles estão conseguindo fazer o Brasil passar um vexame sem precedentes. Recebo mensagens dos meus amigos da música de fora do país e está todo mundo estupefato com o que estamos vivendo, é muito triste, mas tenho o maior orgulho das pessoas que estão do mesmo lado que eu. Tem uma parcela da população perdida, a quem a mídia porcamente ilude e engana, aproveitando-se do sistema, que não investe no ser humano. E tem um outro grupo, que é o que sempre mandou no Brasil desde os tempos da colônia, que não quer abdicar de nenhum de seus privilégios, mesmo que pra isso eles precisem jogar a gente ainda mais para a desgraça. O Brasil infelizmente hoje é isso ai…

Como você está vendo essa mudança radical de rumo do governo interino, sobretudo no que diz respeito à cultura?
Rapaz, tirando meu EP e os projetos que me empolgam aqui na Lab, esse ano de 2016 está sendo uma lástima. Esse momento político é horrível, o povo foi para a rua “contra a corrupção” num movimento elitizado, bancado pela grande mídia, que não representa o Brasil em sua pluralidade e sua diversidade. Pode pegar as fotos aí, você não vê negros, não vê mulheres negras, não vê gays, não vê índios nas manifestações que aconteceram pedindo o impeachment. Eu acho que a Dilma cometeu erros, mas daí a tirar uma presidenta honesta, rasgar a Constituição, meu voto e o voto de 54 milhões de pessoas é uma bizarrice. Tudo foi muito bizarro, até hoje não acredito que estamos vivendo isso e tenho medo do futuro, de verdade.
Depois da votação na Câmara dos Deputados, chefiada pelo Eduardo Cunha, eu fiquei chocado com amigos que ainda assim continuaram apoiando o processo. Teve Bolsonaro atacando a Dilma, louvando torturador , deputado pedindo a volta da ditadura… Mas também não me conformo de Dilma e o PT terem jogado esse jogo até aqui, os caras são bandidos, mano, bandidos de gravata, desses que o Brasil nunca prende, eles foram até o fim emparelhados com a mídia para defender seus nojentos interesses, ficou muito claro isso depois do fatídico 17 de abril. O Temer estava na chapa de Dilma como vice. Eu concordei com isso? Sim, aliás votei na Dilma e votaria de novo hoje se do outro lado tivesse o Aécio, mas o Temer estava ali para uma função, buscar governabilidade, todo mundo sabe que o PMDB manda nesse país desde sempre. Dilma precisava, sim, de aliados no Congresso, mas a coisa foi ficando cada vez mais dificil para o governo, aquela bancada da Bala, da Bíblia e dos Bois, aqueles caras são nojentos, não tem como dialogar com aqueles seres desumanos, são nefastos, podres, querem mais que o povo morra na merda, que mais mães percam seus filhos na guerra contra a polícia, que no Nordeste muita gente volte a passar fome, que o Brasil volte a ser aquele país das maravilhas, onde tudo, inclusive a corrupção, vá para debaixo do tapete. Quem bancou esse golpe foram os corruptos chefiados por Eduardo Cunha, emparelhados com a mídia, são golpistas. Eles só precisam assumir isso, e quem os apoia também. Temer deu um golpe, como o PMDB sempre fez na história aliás! Mas ele deu um golpe, ele não está tocando o projeto de governo para o qual foi eleito, é um governo ilegítimo, que não veio das urnas e retirou uma mulher honesta do seu cargo. Tenho certeza de que as coisas vão se esclarecer, e a história vai mostrar quem estava de cada lado. É nisso que acredito, a gente, nesse quesito, sempre esteve do lado que perde mesmo. É seguir na luta resistindo, e no nosso caso usando a arte para abrir a cabeça dos nossos parceiros. Falei para caralho!
Mas respondendo à sua pergunta: tô vendo tudo e a gente vai continuar nas ruas gritando que não aceita esse governo ilegítimo, não tem diálogo com Temer. Me preocupo com a Cultura, mas me preocupo mais ainda com o Ministério da Justiça, que agora tem em sua liderança Alexandre Moraes, secretário de segurança pública de São Paulo por um tempo, que carrega nas costas várias chacinas na periferia, responsável pela repressão violenta dos protestos que aconteceram nos últimos 2 anos. Enfim, que justiça é essa? Os caras querem mesmo implantar uma ditadura. O que posso te dizer é que estou chateado com isso. Queremos o que é nosso por direito, votamos em um governo e não vamos aceitar retrocessos, o discurso é: volta, Dilma e traz o Brasil de volta rumo ao futuro. Se não for isso, não dá para ser nada, infelizmente…

Como você vai casar o lançamento do disco com esse momento atual? Os shows tendem a soar mais politizados?
Eu ainda não pensei nisso em detalhes, mas não vai ser um show político, não, até porque eu não sou tão expert assim, preciso ler muito mais, aprender muito mais. Essa parte eu deixo pro show do Emicida, ele cumpre bem esse papel mais contundente e político! Claro que vou me manifestar através da arte e expor meu lado e meus sentimentos, até porque não tem muito como separar uma coisa da outra. A arte que fazemos gera transformação, é impossível não dialogar com a política, mas quero um show alegre, pra cima e bem brasileiro, esse sou eu, não consigo fugir.

Tags: