Coube ao Bruno Romani, atual editor do Link Estadão, a tarefa de celebrar o aniversário de vinte anos do antigo caderno do centenário jornal paulistano dedicado à tecnologia e ele convidou alguns ex-editores para lembrar do tempo em que cada um de nós tomou conta da publicação. Liderei esta equipe entre 2007 e 2012, primeiro como editor-assistente e depois, dois anos após minha contratação, como editor e aproveitei para lembrar de um período que funcionou como uma era de ouro da cultura digital e também como uma forma de trazer a cobertura de tecnologia do jornalismo brasileiro para o século 21. Além de mim, a antologia ainda reunia textos do Camilo Rocha, da Claudia Tozetto e do Bruno Capelas, todos ex-editores da seção.
O Rodrigo Ortega me chamou e eu falei sobre o tempo que convivi com o PC Siqueira pro Estadão.
A coluna Direto da Fonte do Estadão trouxe confirmações sobre o próximo festival da Dueto Produções de Monique Gardenberg, que realizava o Free Jazz e o Tim Festival em décadas passadas. O C6 Fest vai acontecer em vários espaços do Parque Ibirapuera nos dias 19, 20 e 21 de maio deste ano e segue a linha dos eventos anteriores da produtora, reunindo novatos e veteranos da música pop mundial. E o primeiro nome confirmado é o de ninguém menos que a minha jovem musa Weyes Blood, dona de um dos melhores discos do ano passado. Aguenta coração!
Pokémon Go é o primeiro contato sério da Nintendo com a internet e seu impacto pode mudar o mundo digital – escrevi sobre isso no Aliás do Estadão:
Sociedade da diversão
Pokemón Go vai transformar o mundo em uma enorme rede socialO jogo que leva multidões às ruas populariza a realidade aumentada e chega para fazer do planeta uma enorme rede social em movimento
Quando os primeiros Pokémons apareceram, há duas décadas, vivíamos em uma sociedade bem diferente da atual. A internet ainda se movia por fios telefônicos, seus primeiros usuários eram programadores, curiosos e jornalistas e ela só podia ser acessada por PCs, que ocupavam mesas. Celulares ainda eram só telefones móveis que nem mandavam mensagens de texto entre si. Videogames não eram jogados em rede. GPS era uma rede de satélites de uso militar começando a ser usada por exploradores. O conceito de realidade aumentada ainda estava no laboratório. Fotografias iam do filme para o papel. Não havia redes sociais.
E foi neste mundo do final dos anos 1990 que se espalhou a sanha para capturar monstros de bolso (Pokémon é uma contração de “pocket monster” em inglês). Era mais um ícone da cultura pop japonesa que invadia o Ocidente e mais uma febre infantojuvenil que se manteve firme nos seus dias de ouro, quando todo tipo de subproduto vinha com a cara dos 150 primeiros monstrinhos, sintetizado no amarelo radiante do apaixonante personagem Pikachu, um perfeito ícone pop.
A chegada da internet de banda larga na virada do milênio aconteceu simultaneamente à corrida do ouro pela música gratuita, aberta pelo pioneiro software Napster. Surgiam também os primeiros blogs – e qualquer um podia publicar na web sem pagar servidor ou entender de programação. A essa altura, a Nintendo, casa dos Pokémon, perdeu o fio da meada do mundo dos videogames, sem nunca apostar na internet.
Enquanto isso, o Google reinventava a rede com sua página de abertura minimalista e começava a crescer rapidamente. Em pouco tempo, compraria um site chamado YouTube, que nos ensinou a publicar vídeos caseiros e a consumir conteúdo em streaming (fluxo contínuo de dados pela internet). Outros tipos de sites abriam a possibilidade de publicar conteúdo e conectar-se com outras pessoas, naquilo que começou a ser chamado de “redes sociais”. Cada país tinha sua principal rede social, que foram fagocitadas no decorrer da primeira década do século pelo que se tornou a maior delas, o Facebook.
Câmeras analógicas foram sendo trocadas pelas digitais, que logo se transformariam em um dos principais acessórios dos celulares. Estes, antes artefatos caros e elitizados, aos poucos se popularizavam ao incluir outras características, até mesmo acessar a internet. Até que a Apple completou sua ressurreição apresentando seu iPhone e o conceito de smartphone. Foi o último suspiro dos computadores de mesa (que já estavam sendo substituídos pelos notebooks) e o início da era da internet móvel.
A violenta transformação pela qual o mundo vem passando graças a esses inventos dos últimos vinte anos não foi acompanhada pela Nintendo. Por muito tempo, cogitou-se a possibilidade de o encanador Super Mario ter suas aventuras transferidas para smartphone ou para aplicativos via redes sociais. O sucesso da franquia Angry Birds, por exemplo, é claramente devido à lacuna deixada pela empresa japonesa nestas plataformas.
Até que os monstrinhos saíram do estado de hibernação, há menos de um mês. Em parceria com uma empresa subsidiária do Google, a Nintendo soltou os Pokémon na rede exatamente no momento em que a internet parece ter consolidado seu ciclo de dominação e não haver mais fronteiras entre o virtual e o offline. Se antes a internet parecia ser “um lugar” para onde “íamos”, hoje ela está em toda a parte.
O bote final parece estar sendo dado com a captura desses monstros, que podem estar em qualquer lugar. Aponte a câmera do seu celular ao redor para descobrir simpáticos monstros imaginários à solta, esperando serem caçados. Monstros que não existem podem ser colocados em lugares de verdade. É uma forma de tornar a realidade mais divertida, a continuação de um movimento que surgiu no final da década passada chamado de “gameficação”. Originalmente, a gameficação da realidade tem motivos nobres: comparar a evolução de seu desempenho durante a realização de uma atividade física, fazer que a criança encontre motivação para escovar os dentes todo dia, incentivar o motorista a avisar quando ele está num engarrafamento para melhorar um mapa colaborativo de trânsito.
Essa transformação da vida em jogo é uma tendência natural do ser humano, vide o clássico Homo Ludens (1938), de Johan Huizinga, que falava na “alegria” de jogar, em busca de uma “consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’”. Sem perceber, transformamos tudo em jogo, e isso vale para os programas que assistimos no Netflix, a forma como batizamos os grupos no WhatsApp ou nossas redes domésticas de Wi-Fi, a forma como escolhemos as fotos a expor nas redes sociais ou o nome que colocaremos em nossos e-mails. A vida digital nos coloca para jogar continuamente.
Pokémon Go vai além desses conceitos ao trazer o jogo para a atividade online e offline simultaneamente. Além de micos coletivos e situações perigosas, o jogo – que já é um dos maiores fenômenos de popularidade da década – também nos ensinará a utilizar a realidade aumentada que vem sendo prevista há alguns anos. Em algum momento – seja com o celular, óculos hi-tech ou algum outro dispositivo (uma lente de contato?) –, começaremos a ver dados online se superporem às imagens e aos sons do mundo “real”, transformando a sociedade numa enorme rede social em movimento, privacidades vasculhadas para vender anúncios de produtos. E esse momento parece estar começando agora, com a febre Pokémon Go. Que, pelo visto, está ainda em seus primeiros dias – sem mesmo ter chegado ao Brasil, país tradicionalmente voraz consumidor de novidades online. Imagina quando ele chegar no meio dos Jogos Olímpicos…
Quando isso começar, toda a transformação a que assistimos de 20 anos para cá parecerá pequena. Prepare-se.
A pedidos da redação, escrevi um artigo para o Aliás do Estadão sobre como a inaptidão da classe política brasileira com os meios digitais pode nos levar a um estado de vigilância típico de ditaduras.
Enterrados no passado
Proibir o WhatsApp ou tentar limitar a navegação na rede pode até render piadas. Mas mostra como políticos brasileiros ainda não entendem a internet
Nas últimas semanas, a internet voltou ao noticiário quando se começou a falar sobre o limite de consumo de acesso à rede em pontos fixos e devido à proibição do aplicativo de troca de mensagens WhatsApp. Duas questões aparentemente distintas, mas que têm uma base comum apoiada sobre dois preceitos atrasados: a distância etária de nossos representantes eleitos do funcionamento prático das novas tecnologias e como essas mesmas tecnologias podem ser fortes ferramentas de controle da sociedade.
O desnível etário entre as autoridades políticas e a realidade digital do século 21 é rotineiramente noticiado quando legisladores são flagrados visitando sites pornôs ou trocando imagens por WhatsApp nas assembleias. Até o áudio do discurso de posse do hoje presidente em exercício Michel Temer (dono de ótimo 4G, para vazar 14 minutos de áudio “sem querer”) ou o vídeo em que a deputada Jandira Feghalli flagrou o ex-presidente Lula exaltando-se ao celular são exemplos de que não importa o espectro ideológico, os representantes políticos ainda estão aprendendo a lidar com a tecnologia. Qualquer adolescente sabe da importância de observar o que se fotografa, mesmo num simples selfie, de reler algo antes de enviar e da existência da navegação anônima.
Claro que não é um problema só das lideranças brasileiras. O presidente americano Barack Obama, num jantar mês passado em Washington, comparou Hillary Clinton, de seu próprio partido, com um parente velho que acabou de entrar no Facebook. “Cara América, você recebeu meu cutucão?”, disse Obama, fazendo voz de senhora de idade. “Está aparecendo na sua timeline? Não sei se estou usando isso direito. Com amor, tia Hillary.”
Só agora a geração que dava as cartas no mundo até metade dos anos 90 começa a entender a internet. E não apenas políticos. Empresários, acadêmicos, artistas, agentes do terceiro setor (e, triste dizer, jornalistas) que nasceram entre o fim da Segunda Guerra e o início da Guerra Fria até há alguns anos tratavam a rede como moda passageira, novidade adolescente, bobagem descartável como o bambolê ou o chá-chá-chá. A geração que viu a TV engolir o rádio recusava-se a crer que nos computadores havia algo tão revolucionário.
Até que a geração seguinte, que cresceu ciente do potencial dos novos meios, começou a dar certo. E empresas como Google e Facebook passaram a dominar a rede de forma avassaladora. A transposição da internet dos PCs para os celulares acelerou exponencialmente a inclusão digital, e até os pais desses políticos e empresários já trocavam memes e vídeos dos anos 90 em grupos de WhatsApp – mesmo assim, eles ainda achavam que não passava de moda passageira.
Não é. E a tão festejada disrupção proporcionada pela internet já reinventou mercados, negócios e políticas. Da mesma forma que algumas das maiores empresas do mundo hoje não têm nem vinte anos de idade, há pequenos grupos de jovens empresários desconstruindo impérios inteiros a partir de aplicativos para celulares ou serviços online. Não é só o Netflix matando as locadoras, o Spotify substituindo o rádio ou o Uber deixando os táxis no passado. É um novo sistema de funcionamento da sociedade a partir da concentração da população mundial em cidades (um fenômeno recente) e das novas tecnologias. O NuBank e o Bitcoin podem reinventar as finanças, enquanto o fundador do PirateBay quer virar a publicidade do avesso como fez com o mercado de entretenimento, desta vez associando seu sistema de micropagamentos Flattr com o sistema de bloqueio de anúncios Adblock Plus. Bloqueio de anúncios? Sim: esses dispositivos estão cada vez mais populares e podem até matar a fonte de renda de Google e Facebook, detentores de imensa parte da publicidade digital.
E qual a reação dos CEOs e políticos do planeta a esse novo funcionamento das coisas? A proibição. A censura. O controle. Embora as suspensões do WhatsApp gerem piadas engraçadinhas sobre não ter que responder mensagens o tempo todo, muita gente, que usa o aplicativo para seus negócios, perdeu dinheiro com isso. E as piadas perdem a graça quando não é o WhatsApp suspenso por uns dias, mas o Facebook fora do ar.
Rimos quando soubemos, há dez anos, da vontade da modelo Daniela Cicarelli de tirar o YouTube do ar por causa de um vídeo comprometedor que havia caído na rede. Hoje não dá mais pra rir – isso é uma possibilidade. Basta uma decisão judicial feita em qualquer uma das comarcas coloniais que tomam conta do País para que nosso acesso à internet seja cortado. Imagine você suspender a transmissão da televisão por causa de um programa de uma emissora? Ou cortar a linha telefônica de alguém cujo filho passou um trote? É uma decisão tão arbitrária quanto essa, que não é percebida assim justamente por causa dessa descompensação de entendimento entre quem regula as leis digitais e quem as utiliza. Os primeiros rascunhos de legislação digital brasileira exigiam que se digitasse o CPF toda vez que a internet fosse acessada, e que o histórico de navegação fosse guardado por meses. Imagine o dinossauro burocrático que estaria nascendo…
Associe isso a um Congresso Nacional e a assembleias legislativas comprometidas com empresas interessadas só no lucro e você tem um país dando um cavalo de pau de volta ao início do século 20. Época em que uma providência desse tipo também foi tomada de forma abrupta. O rádio era tão universal quanto a internet, qualquer um com transmissor falava de casa com o mundo inteiro. O Estado percebeu o poder mobilizador desse meio e determinou que só o governo poderia dizer quem podia utilizá-lo. Emissoras de rádio foram concedidas a grupos políticos ou familiares que o usaram também como curral eleitoral, transformando celebridades radiofônicas em políticos e distorcendo notícias. Não por acaso grande parte de nossos legisladores são descendentes dos primeiros donos de rádios, pouco interessados em compartilhar seu poder.
E isso é muito perigoso. Não bastasse a crise institucional na política do País, ainda começamos a conviver com um fantasma que pode tirar nossa capacidade de mobilização, formas de interação digital, velocidades de conexão. A suspensão de serviços digitais fere diretamente a base da teia mundial de dados, a chamada neutralidade de rede, e transforma a internet não em canal de comunicação, mas em central de vigilância. Não é exagero comparar essas decisões com a natureza de ditaduras herméticas e descoladas da realidade mundial. Quem protestar pode ficar sem acesso à internet, o que funciona hoje como exílio forçado. Dormimos no Brasil e acordamos na Coreia do Norte.
Isso não é brincadeira. Não é motivo de piada. É uma das situações mais sérias que um País pode passar, um controle sofisticado das comunicações tocado por pessoas com a cabeça enterrada no século passado. E isso não mudou com saída de um presidente e a entrada de outro, interino. Então, quem não quiser fazer parte disso, muda de país? Forja a própria morte e deleta-se da internet? Entra no modo “radio silence” para fugir do controle?
A vitória dos taxistas de São Paulo contra o Uber na semana passada é apenas passageira, como escrevi no artigo que o pessoal do Aliás me pediu para sua edição de domingo, que reproduzo abaixo:
Os taxistas que comemoraram a proibição do aplicativo Uber em São Paulo na semana passada podem ir tirando seu cavalinho da chuva. Queimem os fogos de artifício enquanto é tempo, pois mesmo que o próprio Uber venha ser proibido no mundo inteiro (algo pouco provável), ele aponta para o futuro inevitável. A era eletrônica começou a engatinhar nos anos 50 e desde seus primeiros passos nos anos 80 pelo menos a cada cinco anos nos apresenta a uma novidade faceira que parece ser transitória, mas se embrenha cada vez mais em nossos dias.
Faça as contas: videogame, computador pessoal, web, sites, banda larga, redes sociais, smartphone, internet móvel, aplicativos, tablet. Cada uma dessas novas invenções impulsionou ainda mais a próxima sem necessariamente anular as anteriores. O dispositivo móvel de acesso à internet que carregamos no bolso (e por pura conveniência linguística ainda chamamos de “telefone”) talvez seja o primeiro a começar a anular alguns dos anteriores, mas ainda vai demorar um tempo para que desktops e laptops desapareçam da paisagem como máquinas de escrever, videocassetes, mapas de papel e listas telefônicas já desapareceram.
Lembra do tempo em que você tinha que chegar em casa na hora em que o telejornal começasse senão você o perdia? Ou da época em que você esperava ansiosamente que determinada música tocasse no rádio pra que você conseguisse gravá-la? E quando você tinha que comprar um disco de plástico prateado com 12 canções quando queria ouvir apenas uma? Pois é, felizmente esse tempo acabou.
Muita gente ainda vê a era digital como uma fase passageira, um modismo histérico ou uma bobagem de adolescente. Mas essas mesmas pessoas conversam com a família inteira pelo WhatsApp (pais, primos, filhos, netos, tios, avós), matam a saudade de amigos distantes pelo Skype, brigam sobre política com reaças e comunas e postam fotos dos próprios filhos no Facebook e tiram foto e fazem vídeos que nunca cogitariam fazer na época do filme.
Ainda falamos em “entrar na internet” por resquício de comunicação. Estamos online o tempo todo, mesmo quando não estamos olhando pra um de nossos monitores (o “espelho negro” como tão bem definiu o autor inglês Charlie Brooker na série da BBC que leva essa nova era a extremos bem pessimistas). Duas das maiores empresas do mundo – Google e Facebook – não existiam há vinte anos. As profissões da vez em 2015 não existiam em 2005, algumas delas nem em 2010.
Quem nasceu no século 21 não faz essa distinção, que é o futuro inevitável. Você alguma vez pensa em acionar a rede elétrica da sua casa quando precisa iluminar um cômodo? Quando dispara o mecanismo de evacuação de seus dejetos orgânicos? Quando se conecta à rede hídrica para ter acesso à água? Não, você simplesmente acende a luz, dá descarga ou abre a torneira (que, em 2015, às vezes não “liga” a água). A geração nascida depois da internet sabe que está na internet, ponto. Não escreve um e-mail, não manda mensagem, não envia um “torpedo” (ugh) ou um “zap-zap” (argh). Simplesmente fala, escreve, chama.
Todos estamos em contatos com todos e a tendência é piorar. Nem George Orwell imaginaria um pesadelo tão paranoico que as pessoas levariam seus próprios rastreadores no bolso e voluntariamente contariam tudo sobre suas vidas para todos. Nem Aldous Huxley cogitaria a quantidade de desdobramento de futilidades e preocupações múltiplas que habitam cada recanto da internet. Mas esta é apenas a visão de copo vazio da história.
O outro lado desinventa a cidade. A Revolução Industrial foi crucial para atingirmos um novo patamar de progresso, mas para isso abrimos mão de nossas individualidades para nos encaixar nas engrenagens do sistema. Para o mundo funcionar, era preciso assumir um papel predefinido e segui-lo à risca – da escolha do emprego à criação dos filhos, do sistema educacional ao mercado financeiro, do núcleo familiar à política internacional.
Isso retirou a humanidade do campo e trouxe a civilização para uma nova realidade, a urbana. Em dois séculos saímos da fazenda e superlotamos as cidades, que estão em seu limite, de diversos pontos de vista.
O século 20 foi o século das multidões (nunca houve tanta gente no planeta), mas também o do modernismo, que expandiu e colocou pra fora a mudança de comportamento que estava presa na caixa de Pandora aberta por Freud. E aos poucos as multidões foram percebendo-se formadas por indivíduos, cada um deles era uma pessoa diferente da outra. Precisamos aprender essa tolerância, mesmo que na marra.
A era digital crava o final da revolução industrial justamente ao começar desatar o grande nó que é a metrópole, engrenagens urbanas criadas para abrigar multidões a partir de uma série de parâmetros preestabelecidos (séculos atrás) que estão sendo implodidos um a um.
Faz sentido esperar debaixo de uma marquise, na chuva, que um táxi passe, quando no quarteirão de trás há um taxista literalmente dormindo no ponto porque não sabe onde o passageiro está? Por que eu tenho que comprar um volume de papel se eu quero ler apenas um artigo? Não posso hospedar um desconhecido quando não estiver usando meu apartamento? Por que preciso esperar uma semana para assistir ao próximo episódio?
As respostas podem divergir, mas apontam para o mesmo lado: o futuro. Acostume-se.
O jornalista norte-americano David Brooks, colunista do New York Times, concorda com o apoio à causa do jornal Charlie Hebdo mas faz questão de enfatizar que os Estados Unidos estão longe de aceitar o tipo de humor da publicação francesa. Reproduzo um trecho de seu texto, com a tradução feita pelo Estadão (o original em inglês pode ser lido aqui, a tradução na íntegra aqui):
A reação ao ataque de Paris revela que grande parte da sociedade se apressa em endeusar os que ofendem o ponto de vista dos terroristas na França, mas é muito menos tolerante com os que ofendem seus próprios pontos de vista em seu país.
Basta olharmos para todas as pessoas que reagem excessivamente a agressões muito menores que ocorrem em um câmpus universitário. A Universidade de Illinois demitiu um professor que dava aula sobre a posição da Igreja Católica na questão da homossexualidade. A Universidade de Kansas suspendeu um professor que usou termos duros em um tuíte contra a Associação Nacional do Rifle. A Universidade Vanderbilt criticou um grupo cristão que insistia que a instituição fosse dirigida por cristãos.
Os americanos talvez elogiem o Charlie Hebdo pela coragem de publicar cartuns que ridicularizam o profeta Maomé, mas, quando a ativista holandesa Ayaan Hirsi Ali é convidada para visitar o câmpus, há frequentes pedidos para impedir que ela fale em público.
Portanto, este deveria ser um momento de reflexão. Embora estejamos profundamente abalados pelo massacre dos cartunistas, nesta hora é importante que tenhamos uma visão menos hipócrita em relação às nossas personalidades controvertidas, provocadores e chargistas.
E se nos Estados Unidos – “land of the free” – as coisas são desse jeito, imagina se um cartum como o que estampa a capa do Charlie Hebdo aí em cima fosse publicado na capa de qualquer veículo impresso no Brasil…
A mordida que o jogador uruguaio Suárez deu no italiano Chiellini já é um dos marcos desta Copa do Mundo, mas o Globo Esporte manchetou a reação do presidente uruguaio Mujica sobre a mordida dando a entender que ele concordava com o comportamento animalesco do jogador. Mas a entrevista em vídeo que o Estadão fez com o melhor presidente do mundo hoje mostra que não é bem assim – e que Mujica não concorda com o uso de gravações para determinar punições que deveriam ser dadas em campo, o que é uma oooutra história.
Agradeço ao Flavio, que deu a dica do vídeo via Facebook.
No Estadão, o Bruno nos convida para uma reflexão certeira sobre o estado a violência de entretenimento disfarçada de telejornalismo de programas vespertinos brasileiros. Um trecho:
Que fazer, então? O que deve e o que não deve ser publicado? Sim. A violência existe na sociedade e cabe ao jornalismo mostrar a realidade em que vivemos. Sim. Eu sou jornalista e escrevo sobre violência. Acredito no papel pedagógico de conhecermos bem a sociedade em que vivemos, principalmente seus conflitos e problemas. Só que há limites. Resta-nos discuti-los à luz do que se acredita ser jornalismo de qualidade.
Pode-se comparar o papel do jornal e do jornalista à dinâmica de uma sessão de terapia. Quando se está em crise, diante do psiquiatra, de nada adianta falar sobre suas qualidades. É preciso revelar podres, racionalizar sobre eles, para só assim conseguir superar os problemas. O mesmo ocorre na sociedade. Conflitos sociais devem ser descritos e investigados para que possamos seguir adiante. O jornalismo, nesse sentido, deve compreender esses dramas na busca do conhecimento da sociedade sobre a qual escreve.
Não é esse o objetivo dos programas vespertinos que mostram a violência de forma excessiva. Como são jornais que buscam acima de tudo audiência, eles acabam sendo forçados a dar o que o público quer – não o que o público precisa para compreender a sociedade em que vive.
Em vez de jornalismo, acabam proporcionando entretenimento ao público sedento de justiça. Desempenham o papel que antigamente era cumprido pelos enforcamentos em praça pública. Os apresentadores vociferam contra a impunidade, clamam pela punição exemplar do bandido, criticam as autoridades. Satisfazem o desejo mórbido de vingança ao mesmo tempo em que fazem seu público se identificar com os cidadãos direitos que se indignam junto com o apresentador.
Ver a violência na televisão, assistir aos crimes impunes, compartilhar a mesma situação de impotência com o apresentador, pedir com ele a morte do bandido, parece um exercício diário para suportar o cotidiano de uma cidade sem justiça. Em vez dos enforcamentos públicos e dos linchamentos, sobra para o apresentador de televisão satisfazer o desejo de vingança. Em substituição ao Poder Judiciário, que hoje, no Brasil, parece ter a eficiência daquele que existia em tempos medievais.
O acervo do Estadão desenterrou a história da manifestação dos estudantes contra o aumento da passagem de ônibus e de bonde em São Paulo que, no dia 30 de novembro de 1958, após sair pacificamente às ruas (demonstrando isso com cartazes e pessoas jogando xadrez! Que idéia boa!), desentendeu-se com a polícia num confronto mortal. As fotos do Estadão são inacreditáveis, veja abaixo: