Entrevista: João Paulo (Mopho)
Se você já tomou ácido alguma vez na vida, ou teve ou vai ter um flashback. Quando você menos espera (normalmente nas situações mais impróprias), as luzes no trânsito começam a se entrecruzar, sua professora passa a emitir uma estranha vibração colorida ou o computador no seu trabalho começa a mexer-se sutilmente, como se quisesse dizer algo pra você. Ao detectar a janela da percepção aberta pelo vento, não entre em pânico. Primeiro certifique-se que só você está vendo aquilo e tente manter a calma.
O flashback acontece de acordo com a quantidade de micropontos você colocou debaixo da língua durante a sua vida. Quanto mais viagens pessoais você se propôs, mais chances tem de voltar àquele universo que o ácido deslacra sem querer. O Brasil pode não ser o maior consumidor de LSD da história, mas um flashback pesado bateu numa hora improvável, num lugar inesperado. De Maceió, nas Alagoas, o Mopho desencadeia uma série de memórias e lembranças musicais que o cérebro havia se encarregado de trancar num velho baú empoeirado.
Em seu primeiro disco, batizado apenas com o nome da banda (e o primeiro lançamento em muitos anos da gravadora Baratos Afins), o grupo embarca numa viagem de marcha-ré pelo mesmo trem-fantasma que levou os Mutantes, os Beatles e o Pink Floyd ao país das maravilhas. Mas ao contrário de neopsicodélicos como o Olivia Tremor Control, os Boo Radleys e o Gorky’s Zygotic Mynci, o Mopho não fica apenas nos anos dourados do LSD (entre 1967 e 1969), entrando pelo começo dos anos 70 e abraçando referências de hard rock. O que faz com que o grupo possa soar tão pesado quanto o Cream e tão viajandão quanto os Byrds, às vezes na mesma faixa.
Nada Vai Mudar abre o CD com a assinatura sonora da banda: baixo e bateria firmes e entrosados com as grandes bandas da invasão britânica dos anos 60, um órgão pré-histórico, guitarra tornando-se líquida graças à distorções diversas e um vocal idealista e, por isso mesmo, distante, cheio de ecos. “Nada vai mudar, as coisas são assim”, conforma-se o guitarrista João Paulo, “além de mim, a velha vitrola e aquele disco dos Mutantes (provavelmente o primeiro, devido ao sampler de Panis et Circensis ao final da faixa)”.
A Geladeira entra na Magical Mystery Tour dos Beatles, com teclados de vaudeville e surrealismo no dia-a-dia: “Na minha geladeiras, as coisas acontecem/ Enquanto tudo congela”. Não Mande Flores continua no mesmo álbum do quarteto de Liverpool e é a resposta brasileira para You Were Wrong, do Built to Spill. “Eles disseram/ Você não notou/ Eu sei fingir também/ Não quis, não fiz, eu não, não eu”, canta o guitarrista entre backing vocals hipnóticos e um solo de guitarra de fazer Noel Gallagher morder as sobrancelhas de inveja, “Na sua cabeça pipocam/ Milhares de cores/ Um pouco de sexo, drogas e rock’n’roll”. O Mopho saúda os anos 60 como uma religião não compreendida, uma série de códigos e diretrizes que foram mal interpretadas, usadas como motivo para curtir a vida no limite. O borbulhar sonoro que Não Mande Flores provoca ao seu final explica, à moda Love, que ninguém reparou nas nuances das milhares de cores.
A escapista Ela Me Deu um Beijo mostra a veia hard rock da banda, administrada com tanta maestria quanto a face psicodélica. Aqui as referências claras são Cream, Made in Brazil e até mesmo Kiss, mas a guitarra wah-wah firma o pé na porção trippy e reverencia o mestre Hendrix, enquanto o tecladista Leonardo lembra Arnaldo Baptista. Tudo Vai Mudar celebra Beatles (“Beatles estão no ar”) e Arnaldo Baptista (“Onde está meu rock’n’roll?”), enquanto dão a fórmula para mudar a regra da primeira faixa do disco: “Volte no tempo/ Ouça com atenção/ Você vai encontrar/ Onde está o meu rock’n’roll/ Veja as cores no ar/ (…) Eu já sei o que fazer/ Não vou mais esperar”, canta João Paulo enquanto violino, violão e teclado montam uma base ensolarada.
Tão Longe faz a conexão com o folk rock, catando discos dos Byrds, Dylan, Raul Seixas, Turtles e o Rubber Soul dos Beatles para cantar uma canção de amor aditivada, citando referências nacionais e internacionais ao tentar descrever a sua incessante procura: “Um ponto distante/ Meu porto seguro/ A dose perfeita/ O último trem”. Uma Leitura Mineral Incrível começa a ver alucinações e a ter estranhas sensações: “Ratos são cristais nessa prateleira/ Da secura da boca um diamante/ De repente você…/ Peixes hidráulicos e som”. Um tour-de-force clássico, que descamba num solo de teclado à Rick Wright que pode se tornar uma trip Violeta de Outono nos shows.
Eu Quero Tudo volta ao rock’n’roll. “Eu quero tudo que meu olho cego de cachorro raivoso fareja/ Escancarar os dentes/ Quero cabeças na bandeja!”, berra Leonardo enquanto a bateria de Hélio Pisca e o baixo de Júnior Bocão se entrosam como Roger Glover e Ian Paice. O romantismo triste e realista de A Carta é descendente de Roberto Carlos (“Nada faz sentido/ Hoje eu sei/ Todo aquele tempo / Quanto ilusão/ Foi tudo o que eu quis/ E pensar/ Me faz querer um pouco mais/ Compreender/ O que não tem explicação/ Escreva uma carta/ Nela me diga que você/ Não esqueceu de mim/ Que sente a minha falta e quer/ Me beijar”) e sua psicodelia traça parentesco com A Sétima Efervescência de Júpiter Maçã, num dos momentos mais tocantes do rock nacional.
Já Não é Mais casa Zombies com Byrds sobre as guitarras de George Harrison, piano e violão, num casamento que poderia constar em qualquer disco dos Beatles pós-67. Mosca Sobre a Cabeça faz óbvias referências a Raul Seixas e aos Secos e Molhados, mas seu teclado metálico vem da black music, enquanto as guitarras saem do Abbey Road, dos Beatles. Tutti-Frutti, alguém? A doce Um Dia de Cada Vez canta sobre efeito de fortes alucinógenos, mas o que conta é o prazer indescritível que faz uma música que cante “Vou sair no carnaval” soe tão lisérgica. Vamos Curtir um Barato Juntos encerra o disco com teclados Doors e andamento Mutantes (escondida no fundo do baú, uma delicada versão semiacústica para Uma Leitura Mineral Incrível).
Mopho é para todos que viveram intensamente os anos 60 e 70, seja na própria época ou através de discos fantásticos. Usando as referências corretas com cérebro e disposição, o quarteto alagoano já entrou no panteão da psicodelia, sentando ao lado de seus grandes mestres. O flashback é forte porque o ácido é bom. Um disco irrepreensível, obrigatório para saudosistas que não se contentam com a nostalgia. Para comprar o seu disco, peça para o grupo através do correio (Rua Pedro Américo, 1119. Poço. Maceió-AL. CEP 57030-580) ou pela Baratos Afins por email baratosafins@baratosafins.com.br ou por telefone (011-223-3629).
Resuma a história da banda do início ao contato com a Baratos Afins.
João Paulo – A banda tem basicamente três anos. Antes de eu e o (Hélio) Pisca, o baterista, montarmos a banda, nós já tocávamos em várias bandas de Maceió, basicamente conjuntos de covers. Até que montamos uma banda chamada Água Mineral, que tinha influências sessentistas, mas era mais voltado para o hard rock, mesmo porque era um power trio, não tinha o teclado que acabou dando esse toque mais anos 60. Esse grupo durou uns dois anos e fizemos uma demo em 95 e a partir de 96 começamos a trabalhar o material. Nessa época começamos a tocar com o Leonardo, que é o tecladista, só que como músico convidado. Daí o Alessandro, que era o baixista original, saiu e entrou o (Junior) Bocão, na época de lançamento desta demo. Desde 97 a formação está estabilizada. Mudamos o nome da banda por causa daquela música da Timbalada, Água Mineral, que fez com que muitas pessoas achassem que tocávamos essa música. Além disso, como tocávamos alguns blues no repertório, as pessoas passaram a pensar que era uma banda de blues. Todo mundo estava confundindo tudo, então resolvemos mudar o nome.
E o Mopho saiu de onde?
Veio de alguma forma que as pessoas nos satirizavam aqui. Estava em plena época da efervescência do mangue beat, com aquelas coisas de ritmos regionais ao lado de rock e funk. Logo definiram que a gente era datado e aquilo era moderno. Então a gente ouviu um comentário maldoso, dizendo que a nossa banda ia acabar mofando e resolvemos adaptar isso…
Engraçado, é a mesma história do Led Zeppelin, que o baterista do The Who, Keith Moon, disse que o novo grupo do Jimmy Page ia subir como um zepelim de chumbo e o Page ficou sabendo e adotou o nome como uma forma de assumir o desafio.
Pois é, é bem isso. Aí naquele disco do U2, Pop, havia uma música que se chamava Mopho, com PH, e achei a grafia muito interessante e passei a pensar no nome da banda. “Mofo”. Não há como falar “mofo” de outro jeito, em todo Brasil é dito do mesmo jeito. Optamos pelo PH para fazer uma conexão com o Pholhas (antigo grupo sessentista brasileiro) também (risos)…
Além do fato de “mofo” ser fungo e aí tem o duplo sentido, porque fungo é uma espécie de cogumelo. Como é a relação de vocês como as drogas? Dá pra sentir a influência nas letras…
A gente fuma um. Sempre. É uma coisa que já faz parte do nosso dia-a-dia, fumar um pra ajudar a pensar, a relaxar… O respeitável juiz chega em casa e toma uma dose dupla de uísque, o pai de família toma sua pinguinha antes do almoço e nós fumamos maconha pelo mesmo motivo: descansar, ajudar a pensar… Eu gosto muito, eu e o Bocão viemos de Arapiraca, no interior, que é terra do fumo real, tanto tabaco quanto o outro. Fumei aí em São Paulo, mas era um fumo prensado, industrializado, ruim. Aqui é muito melhor… Mas não faço propaganda de fumo. Não é um negócio como Planet Hemp. A gente usa e pronto, não precisa ficar levantando bandeira. É claro que influencia o som, mas influencia a vida, que influencia o som. A gente também toma chá de cogumelo, mas em uma determinada época, entre julho e agosto, que é quando chove aqui e o pasto do interior dá uns belos cogumelos. Mas o principal é o fumo – ajudo muito, desde a timbragem de amplificadores, até a pensar nas letras, na música… Leonardo não usa, dá uns tapinhas, mas é o mais careta da gente.
E o contato com a Baratos Afins?
Foi uma coisa natural, porque desde os anos 70 eu conheço a Baratos… Hoje é muito bonito você chegar na mídia e dizer que gosta de Mutantes, mas houve um tempo que não tinha nada dos caras… E a Baratos relançou. Não só Mutantes, como os solos do Arnaldo Baptista e uma série de outros grupos. Então foi natural mandar a fita pra Baratos. Mas quando mandamos o CD demo Um Dia de Cada Vez começaram a acontecer umas coisas legais. O Frank Jorge, da Graforréia Xilarmônica e dos Cowboys Espirituais, mostrou o disco para o Carlos Eduardo Miranda, que mostrou para o Fernando Rosa, de Brasília, que tem uma revista virtual bem legal, chamada Senhor F, só sobre rock dos anos 60 e 70 e influências… Isso criou um certo buxixo, as pessoas começaram a querer conhecer a gente. Até que o Ricardo Alexandre, do Estado de S. Paulo, entrevistou o Arnaldo Baptista, dos Mutantes, e mostrou várias músicas novas, entre elas Não Mande Flores da gente, pra ele comentar. Ele falou muito bem da gente e o Calanca, da Baratos, ficou interessado na gente. Aí a gente tava gravando o primeiro CD aí em São Paulo quando faltou grana pra mixagem. Ficamos muito chateados, estávamos gravando com uma grana que a gente não tinha numa cidade que a gente não conhecia. Fomos na Baratos, eu ia comprar aquele disco do Arnaldo, Disco Voador. Aí conhecemos o Calanca e ficamos conversando com ele. Até que falamos que éramos de Maceió e o cara pega um papel, amassa e fala pra gente “Amassei, ó!”, cheio de risada. Achávamos que ele tava sacaneando a gente. Então eu disse que eu era do Mopho e o cara arregalou o olho: “O QUÊ!! Você tá brincando!!”, tirou foto com a gente. Formou uma amizade, a gente saiu pra tomar umas geladas quando a gente disse que o disco faltava ser mixado e távamos procurando alguém para lançar o disco. Ele se declarou um grande admirador do nosso trabalho, o que nos deixou extremamente lisonjeados, não só pela figura humana que ele é, mas pelos serviços prestados ao rock nacional. Ter um disco lançado pela Baratos era como um sonho.
O disco ficou do jeito que vocês queriam?
Do jeitinho exato não. Mas é o primeiro disco, você sabe… Se fôssemos sair por uma gravadora maior, talvez pudessem descaracterizar mais o som. A mixagem também foi rápida, fizemos em 15 horas, nem pudemos colocar efeitos de estéreo, que é uma coisa que eu sempre gosto de ouvir, como arranjar o nível e o timbre de cada instrumento. A concepção da capa também é interessante, mas aquele reloginho não tem nada a ver, parece um relógio Cosmos (risos)… Se fosse uma ampulheta… A textura do papel também não é a ideal… Mas é assim, né cara, você não fica satisfeito nunca. A foto do encarte do CD foi outra confusão. Tiramos altas fotos com um conhecido nosso de São Paulo que é fotógrafo e se ofereceu pra fazer o trabalho, o Richard (Schoezel). Tudo no Ibirapuera, com aqueles monumentos… Aí o cara chega outro dia em casa, todo cabisbaixo… Alguém entrou no estúdio dele quando ele tava revelando e velou o filme… É dose, porque é o nosso dinheiro sendo jogado fora. Eu nunca ganhei NADA com o Mopho… NADA…
Vocês escutam alguma coisa de música atual ou ficam só nos clássicos?
Eu ouço de tudo, tenho a cabeça aberta pra tudo, gosto de Beck, de Ben Harper, Lenny Kravitz – não gostei desse último disco -, Cardigans, Garbage, Manic Street Preachers… Tento me atualizar, mas tem muita banda que o povo fala que não é legal. Ganhei um presente do Fernando Rosa que é fantástico, cinco CD-Rs com coisas obscuras do rock nacional. Bandas que sequer tiveram um breve reconhecimento público e que são maravilhosos, que batem bem forte na psicodelia.
Dá pra fazer uma lista dos 10 discos mais importantes pro Mopho?
Dez é pouco, mas posso tentar… Revolver, dos Beatles, é o primeiro. A Divina Comédia dos Mutantes é outro. Pet Sounds dos Beach Boys. Houses of the Holy, eu adoro Led Zeppelin. O Electric Ladyland – Jimi Hendrix Experience. Uma coletânea dos Byrds tirada de uma caixa de 4 CDs chamada 20 Essential Tracks. O Há Dez Mil Anos Atrás do Raul Seixas. O último disco do Casa das Máquinas, Casa de Rock. Aí começa o lado hard rock, ponha também o Stormbringer do Deep Purple. E o Talking Book, do Stevie Wonder, que é um disco fantástico. Tudo do Cream, tudo, tudo… Se for pra escolher, fico com o Wheels of Fire, que é duplo. O Who’s Next, do The Who. O Hot Rats, de Frank Zappa, que sem dúvida é uma grande influência. Sabbath Bloody Sabbath, do Black Sabbath… E Sticky Fingers, dos Rollling Stones, que não é um disco psicodélico, mas é o melhor disco deles. Pô, tem Brown Sugar e Sister Morphine, não precisa de muito mais que isso, mas tem muito mais ali. Eu sou um consumidor compulsivo de discos, eu só parei porque tô sem grana. Tenho muitos vinis, que é uma coisa que eu compro até hoje… Tenho uns mil vinis, uns cem CDs e vários cassetes, coisas que eu não consigo comprar, gravo muitas fitas cassete… Big Star, o primeiro do McCartney é um disco lindo, o primeiro dos Wings, Wild Life, foi um disco que nos ajudou muito a passar da fase dos covers pra compor músicas próprias. Eu acabo sendo injusto com muita gente… A primeira fase do David Bowie. Até Kiss, o Kiss Alive I é um melhor disco ao vivo da história do rock, um disco que tem uma qualidade técnica sofrível. Tudo nacional dos anos 60 e 70 eu ouço, eu gosto… Roberto Carlos, pô, é a maior injustiça não reconhecerem o valor desse cara. Muita gente tira uma na gente porque a gente gosta de Roberto, mas pô, é muito bom, aquela fase soul, o disco O Inimitável, o disco de 1972… Uma música como A Carta só podia ter saído do Roberto Carlos, eu brinco que é o Saucerful of Secrets do Roberto Carlos (risos)…
Faltou Pink Floyd.
Com certeza! Desde o Dark Side of the Moon, que é um disco que nos inspirou bastante até o primeiro, que é psicodelia pura aos solos do Syd Barrett… Eu ouço o Atom Heart Mother até hoje. 60% da nossa sonoridade vem desses discos… Gosto de blues, Howlin’ Wolf, Robert Johnson…
Love?
Eu gosto de Love, mas não assimilei muita coisa ainda pra dizer que é influência. Música negra em geral, soul e funk são fundamentais… Booker T & the MGs, Wilson Pickett, Otis Redding é um dos meus cantores favoritos, Try a Little Tenderness é a segunda melhor música de todos os tempos?
E qual é a primeira?
Eu só não disse a primeira, porque eu não sei.
God Only Knows ou Tomorrow Never Knows?
É mesmo (risos). Páreo duro. Só Deus sabe.
Amanhã nunca se sabe…
É isso aí (risos)!