Entre os 3%
Conversei com o elenco e a produção da primeira série brasileira produzida pelo Netflix lá no meu blog no UOL.
“Tem um lado meu que acha uma pena, obviamente, tudo isso que está acontecendo no Brasil”, lamenta a atriz Bianca Comparato quando pergunto se ela acha que há algum paralelo entre 3%, a primeira série que o serviço de vídeos Netflix produz no Brasil, e o momento político brasieiro atual. “Mas tem um outro lado meu, que é mais otimista, que acha que é um processo de amadurecimento, que estamos podendo olhar para nós mesmos pela primeira vez, de verdade, sem ingenuidade. E esse embate faz parte. É uma pena o sofrimento que isso causa pra tanta gente. E a série fala muito disso, do sofrimento de quem não consegue. E quem disse quem é bom o suficiente? Quem definiu isso?”
A série, que estreia sua primeira temporada de uma vez só na próxima sexta-feira, dia 25, chega falando sério. O visual, a direção e as atuações instigam o espectador como qualquer outro seriado Netflix – e isso parece vir da fusão de experiências tanto da equipe quanto do elenco. A mistura veteranos como João Miguel, Zezé Motta e a própria Bianca Comparato com novatos desconhecidos (Michel Gomes, Vaneza Oliveira e Rodolfo Valente) foi dirigida pelo uruguaio César Charlone, ex-sócio de Fernando Meirelles e responsável pela fotografia de filmes como Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Mas a premissa da série e sua narrativa foi desenvolvida e dirigida por seus criadores originais. “Sou um showrunner de uma ideia alheia”, brinca o diretor uruguaio, que envolveu-se com a produção do seriado anos depois que seu criador, Pedro Aguilera, o estreasse no YouTube (assista aos três primeiros episódios da versão original aqui). Charlone entrou mais como um coordenador e supervisor, ajudando Aguilera e os três diretores originais, Jotagá Crema, Daina Giannecchini e Dani Libardi, a encontrar o rumo que queriam para o seriado, cujos oito primeiros episódios chegam de uma só vez.
Falada em português, a série de ficção científica se passa em um futuro próximo em que o Brasil divide-se em duas castas: grande parte da população mora numa região referida como Continente e quando completam vinte anos de idade têm a oportunidade de passar para onde reside uma elite financeira num lugar conhecido como Mar Alto, que abriga os 3% da população que batiza o seriado. Acompanhamos, portanto, um grupo de jovens que passa justamente pelo processo de seleção, uma série de jogos, entrevistas e atividades que vão definir quem pode passar para o outro lado. É uma alegoria que funciona como uma crítica à ditadura econômica mundial – e um de seus principais critérios de seleção, a chamada “meritocracia”. “Este tema faz parte da nossa sociedade e a gente tem mais ferramentas pra falar sobre isso e pra entender isso agora. São boas pra série também”, explica Aguilera.
“Quando o Pedro (Aguilera, criador e roteirista de 3%) pensou nisso lá atrás, ele havia se inspirado no vestibular, embora ele não quisesse falar diretamente de vestibular”, continua Bianca. “A gente amadureceu muito essa ideia. Mantemos essa angústia juvenil, mas tem uma coisa mais política envolvida. Fala de uma sociedade onde, por mérito, você consegue as coisas e se você não for bom o suficiente acabou a vida pra você. Isso fala muito pra nossa sociedade, não só pra jovens. Se você for parar pra pensar, economicamente, não são nem 3% que detém a riqueza do Brasil – nem do mundo.”
“A ideia começou lá em 2009 e a inspiração vem de livros como Admirável Mundo Novo e 1984 – eu não conhecia Jogos Vorazes”, explica Pedro. Bianca já tinha assistido aos filmes: “Acho a Jennifer Lawrence ótima. Vi os filmes da série Divergente e fiquei muito feliz com a quantidade de ator bom fazendo esse tipo de filme.” Mas Charlone desconversa quando compara-se 3% com estes filmes recentes: “A gente não vai competir com um produto desses. A nossa riqueza é a brasilidade”, explica, sublinhando que quis refletir uma brasilidade diferente daquela que vendemos. “Gosto daquela coisa que, quando alguma coisa não funciona, vem alguém e dá uma porrada. Ou daquela sensação que sempre acontece em qualquer país do mundo quando você chega no aeroporto, mas quando chega no Brasil sempre tem alguém que fala ‘tinha que ser no Brasil…”‘, explica o diretor, às gargalhadas.
Essa brasilidade, marca visual das produções de Charlone, foi perseguida com um olho no futuro e outro no presente. “Gosto de dar muita ênfase em sotaques diferentes”, explica, enfatizando também que não quis entregar uma história de bandeja para o público. “O Brasil tem essa fissura dos produtores com a bilheteria, essa coisa com a comédia, que querer agradar o público”, continua o uruguaio, explicando que o tom pessimista da série o atraiu. “Isso abre um horizonte muito legal pra novas gerações contarem histórias”, continua.
Mas a frieza distópica da versão original ganhou pluralidade e cores no novo seriado. “O tom original era muito sério, frio, policialesco”, lembra Aguilera, ao comentar as mudanças sofridas na série durante estes anos, que ainda “tem elementos muito parecidos, mas outros muito diferentes. Mas a angústia dos jovens, que é a essência, ainda tá lá.” “É uma série essencialmente brasileira”, completa Bianca. “Tem uma sujeira, cores, elementos rústicos. É futuro e é Brasil.”
Estive no set de gravação de 3% e além dessa brasilidade era possível notar a clara naturalidade nas atuações, sem afetações no texto ou diálogos que pudessem deixá-la caricata, claro reflexo da forma como Charlone gosta de deixar os atores, filmando-os livremente, quase em tom documental. Ele anima-se com o formato das séries, que diz ser “o grande acontecimento audiovisual deste século.” “Eu sou assíduo frequentador da Santa Ifigênia e sempre vejo o pessoal vendendo DVDs piratas de filmes… Agora vendem séries”, conta, mencionando Sopranos e Mad Men como referências básicas inclusive para o cinema atual. Pedro também tem suas séries favoritas – House of Cards, The Wire, Breaking Bad -, que podem não se refletir na temática de 3% mas que estão presentes na forma como ele gostaria de segurar o espectador.
Bianca cita outro seriado do Netflix como referência. “Black Mirror é uma experiência forte pra gente no 3%”, continua a atriz. “É um futuro que é palpável, não é, sei lá… como o filme Prometheus… Black Mirror tem isso, tem uma coisa que tá mais pra frente, mas as primeiras cenas você nem entende em que época se passa…” Ela concorda quando menciono que a ficção científica tem esse papel de metáfora para entender a realidade atual. “Um dos motivos de eu topar fazer a série foi esse. A série é um alerta. Se a gente não parar, a gente vai chegar nisso. É uma catástrofe econômica. E não é só sobre o Brasil, é sobre um modelo econômico mundial, os poucos que têm, os muitos que não têm.”
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