Há tempo venho ensaiando a volta da minha coluna Impressão Digital, que mantinha primeiro no Caderno 2 e depois no Link do Estadão, e agora ela ressurge no YouPix. O tema segue o mesmo: o impacto da cultura digital em nosso comportamento, com mais ênfase na internet porque essa é a área do YouPix. E a pedido da editora do site Bia Granja reestréio a coluna fazendo um balanço das eleições desse ano – de uma perspectiva online.
Eleições 2014: entre a zoeira e o rancor
A internet brasileira superpõe duas realidades – a onipresença do Facebook e a cara violenta do Brasil – rumo ao nosso amadurecimento político
2014 foi um ano bem esclarecedor. Independentemente do resultado do time para quem você estava torcendo, Copa e Eleições em 2014 tiveram o tempero carregado da internet brasileira, metade zoeira, metade rancor. Milhões de brasileiros pendurados no Twitter ou no Facebook, fingiam que estavam trabalhando ou lendo mensagens no celular para ultrapassar o clichê dos 200 milhões de técnicos de futebol ou 200 milhões de analistas de política que a cada quatro anos nos incorpora.
O brasileiro online se move em hordas, grupos de conhecidos que gastam energia pegando pesado entre si e, muitas vezes, despejam bordoadas em semiconhecidos que só estão passando. A voracidade da presença do brasileiro na internet é comemorada não apenas na vice posição das maiores redes sociais do mundo mas também em hypes que vivem auges e depois desaparecem – como o Fotolog, o Formspring, o Old Reader e, aparentemente, há pouco tempo, o Ello.
Mas ela também é lamentada em jogos online por vários jogadores graças à sua natureza destrutiva – são famosos os clãs brasileiros que riem “huehuehuehue” e existem apenas para dizimar as construções de outros jogadores, sem motivo algum. O bullying online é constante nas redes sociais e isso traduz duas realidades que o Brasil vive ao mesmo tempo: a popularidade do Facebook e a história de violência do país.
Esta primeira realidade, que vivemos desde 2010, quando a rede começou a crescer exponencialmente no Brasil, também é a infância digital de milhões de pessoas. Desde os chamados millennials à pessoas da terceira e quarta idade começaram a conhecer a internet em um ambiente em que tudo que é escrito é publicado para todo mundo e quantificado com likes e shares. O Facebook é o primeiro blog, a primeira lista de discussão por email, o primeiro leitor de RSS, o primeiro fórum e o primeiro Flickr ou conta do YouTube de milhões de pessoas. Dezenas de milhões de pessoas.
Gente que vive a internet entre links, imagens, textos curtos ou gigantescos e vídeos que se movimentam entre o Whatsapp, o Facebook, o Twitter, o email e mensagens de SMS – e só. A multiplicidade de funções do Facebook e a onipresença das pessoas na rede social é uma draga de tempo e praticamente isola as pessoas do resto da internet. O que parecia ser uma enorme favela torna-se um feudo cada vez mais fechado, um castelo murado que isola a internet em uma insuportável troca de insultos, amigáveis ou não.
A segunda realidade é da natureza do Brasil. O país erguido sobre o exotique que exalta a exuberância disfarça uma das sociedades mais violentas do mundo. A face sorridente brasileira (Amazônia, mulata, Carmen Miranda, futebol, samba, Copacabana, carnaval) esconde uma história de tortura e sangue, extermínios e massacres, sadismo e crueldade. É um país de feitores, torturadores, bandeirantes, “dotôs delegados”, coronéis, milicianos. Resolver as coisas na base da coerção física sempre foi parte do cotidiano brasileiro e o século 20 foi eficaz em encobrir para debaixo do tapete toda essa história de violência. Mas ela continua aí.
Junte uma web 2.0 em profusão geométrica, com milhões e milhões de pessoas descobrindo a maravilha que é conversar com o mundo inteiro (e sozinho, ao mesmo tempo) com essa tendência a resolver as coisas no braço e eis a internet brasileira em 2014.
Na Copa, a violência ficou reprimida. Pois a simples percepção de que o maior evento do mundo, aquele que sempre crescemos acompanhando à distância, iria acontecer perto de casa criou uma situação de desequilíbrio mental em todos nós. Uma Copa do Mundo sendo realizada no Brasil nos chapou com uma loucura leve e mesmo os mais críticos não resistiram ao contato com os estrangeiros, às situações inusitadas que foram presenciadas nesta que não por acaso consagrou-se “a Copa das Copas”. O VTNC à Dilma no primeiro jogo do evento e o fatídico 7 x 1 foram momentos em que a face violenta do brasileiro ameaçou vir à tona, mas só aquela saraivada de piadas sobre o Podolswki em menos de 24 horas no Twitter já foram o suficiente para mostrar o quanto o país estava inebriado, flutuando no delírio de ser o país sede de uma Copa.
Já as eleições sintonizaram o dial do inconsciente brasileiro no outro extremo. Sim, a zoeira teve mais grandes momentos do que o rancor durante a Copa do Mundo, mas vamos lembrar que a eleição começou pra valer de uma forma trágica e pesada, quando o avião de Eduardo Campos caiu em Santos. A partir daquele 13 de agosto o Brasil entrava numa montanha russa de emoções sem precedentes na história recente – e propulsionada à toda força graças ao volume de troca de informação nas rede sociais.
Assistimos ao doutor Jeckyll da Copa do Mundo transformando-se no senhor Hyde das eleições repetindo a revelação final de Felipe Barreto em O Dono do Mundo – que ele não era bonzinho porra nenhuma e vocês vão ver só. A enxurrada de informação é estarrecedora. Piadas nonsense, trocadilhos afiados, montagens perfeitas, vídeos editados segundos depois de uma notícia ir ao ar, sites de notícias assumidamente falsas, blogs petralhas e blogs reaças, programas humorísticos de telejornalismo, canais no YouTube, páginas no Facebook, texto aplicado em foto, longos artigos exaltando ou condenando um país em que a esquerda é caviar e a direita é coxinha.
Os candidatos a cargos legislativo fizeram a festa nas redes e o Facebook virou o grande palanque de 2014, inclusive para a imprensa, que abraçou as redes sociais ainda mais avidamente que em eleições anteriores. Já os candidatos à presidência foram desconstruídos e reconstruídos dezenas de vezes por centenas de pontos de vista. Dilma, Aécio e Marina passaram por devassas pesadas de suas carreiras enquanto Luciana Genro e Eduardo Jorge deixaram o zoológico dos nanicos para ganhar voz e criaram bases sólidas para suas futuras carreiras políticas. Levy Fidelix saiu do armário do conservadorismo e deixou de ser o seu Barriga do aerotrem enquanto o Pastor Everaldo entrou para a história como a primeira pessoa a confessar ter peidado em um programa de TV no Brasil.
Mas mesmo com a vitória conservadora no legislativo e o país rachado politicamente entre Aécio e Dilma, estes aspectos são coadjuvantes frente a algo que assistimos neste ano – a intensa participação política dos brasileiros e nossos primeiros passos rumo a discussões civilizadas. A nação violenta animou-se com o teclado e passou a cuspir besteiras para quem quisesse se sentir ofendido. Tanto faz qual tendência política – é fácil pensar nas estrelas conservadoras e progressistas que se degladiam em diferentes mídias, encontrando-se nas redes sociais para equiparar links de colunas, programas de TV ou posts nas próprias redes. Essa fúria motiva as pessoas ao menos para se posicionar politicamente, pelos motivos certos ou não, em vez de fingir desinteresse por política para depois aliar-se ao vencedor.
Pois essa é outra característica brasileira: nunca há uma ruptura, um dissenso, uma tensão em qualquer mudança histórica do país. O Brasil tornou-se independente quase como uma herança, a abolição da escravatura foi aceita de imediato, a República também não foi contestada e foram preciso 15 anos para derrubar Getúlio, que voltou dez anos depois. Sua morte também foi assimilada rapidamente assim como a mudança do Golpe de 64 e a Nova República, Collor, Fernando Henrique e o PT. Essa raiva toda na internet não vai nos levar a uma guerra civil como muitos temem, mas faz parte de um processo de amadurecimento político brasileiro que está apenas começando… Por isso 2014 está sendo bem esclarecedor.
Acho que vamos ter alguns dias de rusgas e brigas nas redes sociais, provavelmente algum confronto físico isolado nas grandes cidades, seguindo o clima da última semana antes da eleição, além de textos infelizes escritos por fãs dos dois lados e leituras e análises de toda sorte sobre esse momento histórico que estamos vivendo. Mas é importante botarmos a mão na consciência e nos vermos como um país só, deixarmos de picuinhas e torcidas para percebermos que estamos todos no mesmo barco – ricos e pobres, pretos e brancos, arrogantes e humildes, românticos e agressivos. Ontem na Paulista o prefeito paulistano Haddad sublinhou a importância disso no discurso da recém reeleita à presidência Dilma Rousseff.
Caso alguém tenha alguma dúvida…
E o inglês John Oliver aos poucos vai tornando-se um dos melhores comentaristas político na TV norte-americana. E dessa vez o combustível pra suas piadas foram nossas eleições.
Ah, se ele soubesse que não é só isso…
Ninguém me perguntou, mas neste domingo eu vou assim:
Presidente: 13 – Dilma
Governador: 13 – Padilha
Senador: 131 – Eduardo Suplicy
Deputado Federal: 1342 – Maurício Moraes
Deputado Estadual: 50505 – Todd Tomorrow
E você, já se definiu? Não vai votar em qualquer um, hein.
Bati um papo sobre política com Maurício Cid, do Não Salvo, para o YouPix. Dono de um dos principais blogs do Brasil, ele resolveu, durante estas eleições, entrevistar os candidatos à presidência do país, mesmo sendo um blog de humor. O papo rendeu um post no site do YouPix, veja só:
O designer curitibano Butcher Billy deu um tom pop art às três principais campanhas à presidência esse ano – sem pegar leve com nenhuma deles. E clama para que o povo espalhe seus cartazes pelas ruas.
Bob Fernandes, meu comentarista político favorito, fala sobre as expectativas frustradas de quem achava que a Copa do Mundo no Brasil seria o maior fiasco de nossa história recente…
…e não custa ligar seu raciocínio ao de Ricardo Mello, na Folha de São Paulo:
Durante um tempo quase infinito, os brasileiros foram vítimas de uma carga brutal de notícias irreais. Se tudo estava tão atrasado e fora dos planos, como a Copa acontece sem contratempos maiores do que os de outros eventos do gênero? Talvez o maior legado deste choque entre fantasia e realidade seja o de que, acima de tudo, cumpre sempre duvidar de certas afirmações repetidas como algo consumado.
A profusão de instrumentos de informação atual, ainda bem, oferece inúmeras alternativas para que opiniões travestidas de certezas sejam postas à prova. Mais do que nunca, desconfiar do que se ouve, assiste e lê é o melhor caminho para tentar, ao menos, aproximar-se do que é real.
No final das contas, é bom que essa distância entre versão e fato tenha ficado escancarada num ano eleitoral. Se com a Copa foi assim, imagine doravante, quando está em jogo o cargo mais importante da República. A enxurrada de algarismos para mostrar um país à beira do abismo ocupa boa parte do noticiário “mainstream”. Na outra ponta, estatísticas de toda sorte surgem para falar o inverso. Quem tem razão?
Nessa hora, o decisivo é avaliar como está a vida do próprio cidadão e como ela pode ficar se vingar a proposta de cada candidato. O mais difícil, como sempre, é descobrir se estes têm coragem de dizer o que realmente pretendem realizar.
Falar é fácil.