Ecoturismo mental

, por Alexandre Matias

Traduzi esse texto – que tá livre, online – pro livro Futuro Proibido, da Conrad, que saiu tem uns três ou quatro anos. Vou botar esse capítulo aqui mais como um tira-gosto – já que o livro ainda conta com contos do Sterling, Burroughs, do Ballard, do Rucker, do Peter Lamborn Wilson (o Hakim Bey). Aliás, dizem que foi ele quem escreveu esse Visite Port Watson também, mas oficialmente, este texto é de um anônimo. Saca só.

Visite Port Watson!
Anônimo

1- Geografia e Descrição Física

A Ilha de Sonsorol, no Pacífico, um vulcão extinto cercado por recifes de coral, situa-se a 5º acima do Equador e a 132º de longitude, cerca de 650 km ao leste do extremo sudeste das Filipinas e 480 km ao norte do Estreito de Dampier na Nova Guiné. Ela possui aproximadamente 16 quilômetros de diâmetro e uma área de cerca de 145 km².

O clima é típico da região: temperaturas balsâmicas e constantes (28º a 33º o ano todo), eventuais tufões violentos, monções de setembro a fevereiro, brisa do mar ao longo da costa, floresta tropical úmida e abafada nas encostas mais baixas do Monte Sorosol (especialmente densa na parte norte da ilha, exposta aos ventos alísios) – próximo ao cume, o tempo é quase permanentemente nublado, fresco e nebuloso, e a selva se estreita em uma “floresta de nuvem”—musgo, pequenas árvores envoltas por musgos, hepáticas e orquídeas epífitos. Sonsorol possui água fresca em abundância, incluindo cachoeiras nos morros, e até mesmo um pequeno rio, o Garuda.

Vegetação: fartura e variedade típicas das regiões tropicais, incluindo muitas espécies de orquídeas e uma pletora de outras flores e frutas tropicais. Antigamente, copra, taro e cana-de-açúcar e abacaxi eram plantados na região de savana do sudoeste. Agora as plantações foram abandonadas e nunca mais forma cultivadas, com a exceção de alguns pomares de coco reservados para o consumo local (todas as partes da planta são usadas, em culinária, construções, etc.). A fauna nativa é escassa, na sua maior parte limitada a pássaros e insetos (que podem vir a ser irritantes). Porcos, galinhas, cabras e outras espécies européias foram importadas no século XVII. A pesca é espetacular, e oferece tanto a dieta básica, quanto uma boa porção de esporte; os três pequenos atóis de corais que pertencem a Sonsorol proporcionam mergulhos magníficos e são ricos em tipos raros de peixes tropicais (ver Excursões).

De forma quase circular, e sem nenhuma baía ou braço de mar decente, Sonsorol pareceria a princípio estrategicamente inadequada para a sua antiga função de encravamento pirata; contudo, os recifes de coral que cercam a ilha formam uma espécie de lagoa, na qual os navios podem ficar ancorados com bastante segurança, mesmo com mau tempo.

2- Como Chegar Lá

Viajar no Pacífico normalmente consume muito tempo ou muito dinheiro. Sonsorol continua sendo uma das ilhas menos acessíveis em toda a área. Nenhuma linha aérea comercial pousa lá. Navios cargueiros levam cargas para Sonsorol, de Mindanao, Java, Taiwan, Hong Kong e outros portos, mas o único navio que faz escala ali com alguma regularidade é o The Queen of Yap, um navio a vapor enferrujado e sem rota, que navega entre Zamboanga e as Ilhas Caroline aproximadamente uma vez por mês. (Informações e reservas podem ser obtidas com a Ngulu Maritime Co. Ltda, Kalabat, Yap, U.S. Trust Territory do Pacífico.)

Port Watson é hoje o único porto de entrada para Sonsorol, e não existe ali nenhuma Autoridade de Alfândega & Imigração. No entanto, ninguém deve esperar passar despercebido em uma cidade tão pequena. Qualquer um que fique mais de um mês provavelmente será solicitado com educação a requerer residência ou então ir embora (ver Como se Tornar um Morador).

Visitantes na República de Sonsorol (do lado de fora do Encravamento Port Watson) são incentivados a carimbar seu passaporte na Agência dos Correios na Sede do Governo na cidade de Sonsorol (ver) — o carimbo de visto é muito bonito— mas ninguém irá insistir nisso. Nem Port Watson, nem a República possuem polícia, portanto os moradores tendem a ficar atentos para problemas e se responsabilizam a solucioná-los. Visitantes hostis, insultuosos ou estrepitosos costumam apanhar de membros do comitê de vigilância ou da Milícia do Povo, e são banidos no próximo navio de partida. Geralmente, no entanto, os visitantes são bem vindos (“não turistas, mas visitantes”, disse uma vez o Sultão), e os habitantes são amigáveis, até em excesso.

3- História Antes da Independência

Os habitantes “aboriginais”, de ancestrais malaios e polinésios miscigenados, podem não ter chegado antes do século XIV; se eles encontraram e absorveram algum grupo mais antigo, não se sabe. Presume-se que esses povos eram “pagãos” de algum tipo; indícios de sua língua sobrevivem em nomes de lugares, terminologia das artes e ofícios, etc., ainda que o atual dialeto consista em uma mistura perturbadora de linguagem indonésia, sulauês, espanhol, holandês e inglês. (Aparentemente, teatro e poesia interessantes estão hoje sendo compostos no “idioma” sonsoroleano). Tudo o que resta do período “pré-histórico” ou pré-Moro é uma enigmática ruína perto do topo de uma cachoeira na subida do Monte Sonsorol (ver Excursões).

Em meados do século XVII, Sonsorol foi invadida por piratas de Sulu, que se auto denominavam Moros (“Mouros”, isto é, muçulmanos) apesar de suas tripulações incluírem diaques (N. do T.: Povos do interior da ilha de Bornéu, na Malásia) do mar, bugis (N. do T.: Povo marinheiro e comerciante, forma a maior parte da população da ilha de Célebes, na Malásia) das ilhas Célebes, javaneses e outras figuras do leste asiático. Seu almirante semilendário, o sultão Ilanun Moro, estabeleceu-se com alguns de seus seguidores — os quais formaram assim uma “aristocracia” insulana medíocre.

O islamismo foi adaptado de forma bastante branda pelos Moros de Sonsorol: eles ignoravam a rigidez da Lei Divina eles ignoravam e o analfabetismo os mantinha na ignorantes sobre o Alcorão. Como beduínos do mar, a religião servia a eles como uma nova identidade étnica e um pretexto para pilhar suas vítimas “infiéis”.

Tendo Sonsorol como base, eles continuaram sua predação e ficaram razoavelmente ricos — e finalmente adquiriram uma pitada de cultura. No final do século XVIII e começo do XIX o critério dos javaneses prevaleceu e sufis indonésios visitaram a ilha.

Infelizmente nenhum vestígio arquitetural desta “Época de Ouro” sobreviveu à invasão e à conquista pela forças espanholas sob o comando do governador das Filipinas, Narciso Clavería y Zaldua, em 1850. Os sultãos de Sonsorol foram praticamente os últimos dos piratas Moros a serem dominados e os conquistadores impuseram-lhes um regime colonial destrutivo e predatório, incluindo conversão religiosa forçada e completa escravidão.

Em 1867, porém, os espanhóis já haviam perdido o interesse pela ilha , o que não produzia nada além de copra e desgosto. Os governadores holandeses da Indonésia anexaram Sonsorol ao seu império após uma única batalha superficial. Os nativos consideravam os holandeses um avanço em relação os odiados espanhóis, e a princípio apresentaram poucas objeções — na verdade, muitos se converteram para a Igreja Reformada Holandesa.

A influência holandesa ainda é forte em Sonsorol. Quase não há famílias na ilha que não tenham sangue europeu. Palavras holandesas sobrevivem no dialeto. O Antigo Bairro da cidade de Sonsorol (ver) se orgulham das diversas casas modestas, porém agradáveis no estilo “batavo”, com fachadas levantadas e telhados vermelhos. Uma visita à “Catedral” Calvinista e a pequena Sede do Governo também valem a visita.

Neste período a “aristocracia” Moro (aqueles que seguiam sua descendência dos piratas) retrocedeu a seu tipo de islamismo brando. Aos sultões foram conferidos “títulos de cortesia”, mas eles permaneceram sem poder e sem dinheiro. A cultura javanesa moldava as suas atitudes, especialmente as artes da música gamelan (N. do T.: Música folclórica da ilha de Java, essencialmente percussiva, graças à imensa quantidade de instrumentos de percussão, tanto de pele (o tambor que lidera a música, chamado kendang, além do bedug e bonang) quanto de metal (conjuntos de sinos e gongos, como kenong, kempul, gambag e sletem), mas também harmônica, devido à presença de instrumentos de corda (rebab, clempung) e flautas (suling). O gongo, instrumento hoje incorporado à música popular e erudita mundiais, tem sua origem (etmológica, inclusive) na cultura musical gamelan) e da dança, os ensinamentos esotéricos das seitas kebatinans (incluindo artes marciais e bruxaria), e o conceito milenar do “Rei Justo”. Fora desta efervescência —uma estranha mistura de proto-nacionalismo revolucionário e fervor místico —o ressentimento para com os holandeses começou a se inflamar.

Em 1907 (o mesmo ano em que os Países Baixos finalmente conquistaram o norte de Sumatra), o sultão de Sonsorol, Pak Harjanto Abdul Rahman Moro I, encenou um trágico e fútil levante contra as forças coloniais. Diz-se que seus seguidores acreditavam ser magicamente invulneráveis a balas. O sultão e outros conspiradores foram executados, o título abolido, e a ilha afundou em depressão, sonolência, indiferença e obscuridade.

No início da Segunda Guerra Mundial, a população de Sonsorol havia caído para cerca de 2000 pessoas, com administração e guarnições militares holandesas que não passavam de cinqüenta pessoas. Em 1942, os japoneses fizeram uma conquista fácil da ilha, mamdando europeus para campos de prisão em Java, construindo algumas casamatas (ainda existentes), deixaram para trás uma força simbólica e partiram para a invasão da Malásia.

Os novos chefes supremos japoneses comportavam-se de maneira severa, quase sádica — se é que se pode dar crédito às histórias ainda contadas em Sonsorol — e um sentimento antinipônico sobrevive até hoje. Em 1945, um único navio tripulado por forças navais neozelandesas e australianas chegou para liberar a ilha. Os japoneses panejaram uma resistência suicida, e a população nativa, liderada pelo sultão Pak Harjanto III (neto do mártir de 1907) — juntou-se a batalha pela liberdade no dia 20 de julho.

O período pós-guerra encontrou Sonsorol com novos mestres coloniais: um Protetorado Misto sob o comando da Austrália e da Nova Zelândia. Uma queda no preço da copra arruinou os últimos resquícios de economia. A emigração aumentou, e em 1952 a população havia caído para menos de mil. O Protetorado, sobrecarregado pela administração de outras ilhas do Pacífico, ignorou Sonsorol, exceto como uma fonte de mão-de-obra barata.

O sultão, herói da libertação, começou a agitar para a independência. Sincero admirador da democracia ocidental, ele acreditava que a liberdade política iria, de alguma forma, resolver os problemas da ilha. Em 1962 o Protetorado permitiu um plebiscito e a maioria expressiva escolheu independência sob uma Monarquia Constitucional. No dia 17 de agosto daquele ano, o Protetorado Misto retirou-se.

4- História Desde a Independência

Os benefícios esperados da liberdade fracassaram em materializar-se. A emigração foi interrompida. Apenas um auxílio escasso e relutante dos governos do antigo Protetorado evitava que a população ficasse completamente à míngua. Em 1967, o sultão enviou o seu jovem filho e herdeiro, Pak Harjanto Abdul-Rahman IV, para a faculdade nos Estados Unidos, com a vaga esperança de que isso resultasse de alguma forma em uma infusão de ajuda norte-americana. O Príncipe Herdeiro obteve uma bolsa de estudos na Universidade de Berkeley, e se formou em economia.

Na California, o Príncipe se sentiu atraído pelo “Movimento”— direitos civis, anti-guerra, liberdade de expressão, consciência ecológica, Haight-Ashbury (N. do T.: Famosa esquina em San Francisco que tornou-se epicentro da cultura hippie desde 1966), etc. — e logo se viu convencido pela filosofia anarquista libertária. Na faculdade, conheceu Travis B. O’Conner, descendente e herdeiro de uma família do ramo do petróleo de Oklahoma/Texas (não eram super-ricos, mas definitivamente milionários). Eles trancaram a matrícula por um ano e aproveitaram/apreciaram juntos um Wanderjahr (N. do T.: Ano de viagens, em alemão) americano. O Príncipe nunca perdeu o senso de responsabilidade em relação à sua terra-natal: todo o seu pensamento e estudo visavam a salvação do seu povo, ou pelo menos o alívio. O’Conner ficou fascinado com as histórias de Sonsorol, e juntos os jovens amigos maquinavam e sonhavam.

Eles raciocinavam da seguinte forma: quase todas as utopias clássicas — da República de Platão à Fazenda Brook (N. do T.: Fundada nos Estados Unidos pelo casal transcendentalista George e Sophia Ripley, a Fazenda Brook é a comunidade experimental e utópica mais conhecida na história norte-americana. Batizado The Brook Farm Institute of Agriculture and Education, a comunidade existiu entre 1841 e 1847, em West Roxbury, Massachussets) — envolvem um alto grau de abstração. A implementação de idéias abstratas na sociedade requer um correspondente alto nível de controle autoritário. Como resultado, a maioria das utopias em prática se revelaram opressivas e paralisantes — “planejamento social” pareceria uma ofensa por definição contra o “espírito humano”. O’Conner e o sultão desejavam uma utopia anarquista, sem autoridade — e mesmo assim eles perceberam que a utopia é impossível sem a abstração.

A maior e mais opressiva de todas as abstrações modernas é a finança, o negócio bancário, a criação de riqueza a partir do nada, da pura imaginação. Ora, os piratas de antigamente viviam praticamente sem autoridade — até mesmo os seus capitães eram praticamente os primeiros dentro de um grupo de iguais — e eles criaram “utopias” sem lei ou encraves financiados por riquezas roubadas. Os dois jovens amigos decidiram que, uma vez que Sonsorol não poderia nunca produzir nenhuma riqueza de verdade, eles deveriam seguir o procedimento dos piratas — reconhecidamente o caminho dos parasitas e bandidos, e não dos “verdadeiros revolucionários” — e roubar a energia que precisavam para financiar e fundar a sua utopia. O ladrão de banco rouba bancos “porque é ali que está o dinheiro”— mas o banqueiro rouba bancos e até os seus próprios depositantes com total impunidade legal. Os sonhadores da Califórnia decidiram entrar nos negócios bancários.

Em 1979, o velho sultão morreu e o seu filho o sucedeu no trono de uma ilha esquecida e arruinada. De imediato, ele e O’Conner começaram a pôr seu plano em prática. Começaram com a criação de um banco mercantil chamado “A Associação de Poupança e Empréstimos Ilanun Moro” (ironicamente batizado com o nome do pirata fundador da dinastia). O novo sultão então deu andamento a uma série de projetos de lei através da legislação da ilha: ele possibilitou a criação de um encrave de porto livre, Port Watson (a origem do nome nunca foi explicada), que consistia em dez quilômetros quadrados de plantações de copra abandonadas. O Banco, utilizando-se das relações e do capital da família O’Conner, mudou-se para Port Watson e deu início às operações com proteção de regulamentação fiscal: subsidiárias fantasmas, registros livres de impostos, “intermediários” e “gráficos estranhos”, especulação da moeda, atividade secreta intermediária para sociedades chinesas em terra, lavagem de fundos para certos “homens de negócio” chineses transoceânicos , contas numeradas, e assim por diante. Port Watson foi planejado para usufruir de uma liberdade quase total da lei; o banco praticando uma forma nova e invisível de pirataria. Uma vez que, para a sua eficácia, ela depende das comunicações via satélite, ela poderia talvez ser chamada de Pirataria Espacial!

O Banco de Sonsorol possui poucos bens “reais”, poucos que possam ser saqueados — sua riqueza existe em grande parte em memórias de computador. Suas maquinações discretas são toleradas por interesses bancários internacionais; afinal de contas, uma conta “cega” ou algo do tipo mostra-se útil, de tempos em tempos, até mesmo nos círculos financeiros mais respeitáveis. Quase da noite para o dia (1976-1980) Sonsorol se tornou moderadamente próspera.

Todo cidadão de Sonsorol e morador de Port Watson, criança, mulher e homem, tornou-se um acionista eqüitativo no Banco; todos— inclusive o sultão e O’Conner — possuem exatamente uma ação dos lucros. Em 1980, cerca de mil pessoas em Port Watson e 2000 em Sonsorol, recebiam, cada uma, um dividendo anual de cerca de US$ 4.000. Em 1985, a população total chegou a 9000 e o dividendo um pouco mais de US$ 5000 — praticamente uma renda garantida.

Além da criação de Port Watson e do Banco, muito poucas mudanças foram feitas na estrutura legal de Sonsorol, a qual continua sendo (ao menos no papel) uma república de estilo anglo-americano com legislação, exército, polícia, educação compulsória, impostos e assim por diante. Nenhum poder estrangeiro pode acusar a ilha de “anarquia”— e em todo caso, o Governo Trabalhista da Nova Zelândia assinou recentemente um tratado de defesa que oferece proteção e reconhecimento internacional para a república. Na superfície, tudo está normal. A Constituição foi reformada para separar a Igreja Reformada Holandesa do Estado e permitir a liberdade de credo (1976), e em 1979 o sultão abdicou de todas as funções executivas e se reduziu a uma figura cerimonial. Como ele colocou, “eu alcancei o estado do Rei-Sábio taoísta descrito no Chuang Tzu: Eu me sento em meu trono voltado para uma direção propícia — e não faço absolutamente nada!”

Na prática, no entanto, as funções da República caíram quase totalmente em desuso. Nenhum exército ou polícia existe porque ninguém se alista neles. Em vez disso, uma Milícia do Povo voluntária trabalha em emergências (extremamente raras até hoje). Impostos não são coletados, leis morais não são executadas. A legislação não aprova mais nenhuma lei nova (embora se reuna de tempos em tempos para debater projetos e questões filosóficas). As escolas existem, mas a freqüência é voluntária. Ninguém precisa trabalhar, e muitos consideram a sua cota de ação suficiente para sustentar vidas de polinésio dolce far niente. Qualquer pessoa que tenha objeções quanto à “monarquia minarquista” da República pode se mudar para Port Watson, onde não existe absolutamente nenhuma lei.

O “verdadeiro trabalho” de Sonsorol, negócios bancários, pode ser conduzido por um punhado de hackers de computadores e negociantes astutos (apelidados de “Sindonistas”). Contudo, o sultão e O’Conner queriam ver Port Watson se tornar uma comunidade libertária genuína, e estimularam a imigração oferecendo empréstimos sem juros e até mesmo subvenções integrais a pessoas prestativas e solidárias. Diversas organizações coletivistas importantes foram fundadas: o Centro de Energia (ver), uma cooperativa para energia alternativa, tecnologia apropriada e agricultura experimental; e as Academias (ver), voltadas para educação e pesquisa — escolas para crianças, e filosofia “natural” de todos os tipos para estudantes avançados.

Pequenos empresários, a maioria chineses, também foram convidados a abrirem lojas. Enérgicos e econômicos, eles expandiram as suas ações em pequenos negócios e hoje dominam diversos aspectos da vida comercial de Port Watson. Centenas de libertários e anarquistas da Europa e das Américas afluíram para Sonsorol, cada um com algum experimento de vida, culto da Nova Era, comunidade utópica, artesanato, arte ou projeto de estimação. Alguns Sonsorolanos que haviam migrado para a Nova Zelândia nas décadas de 1940 e 1950 voltaram para reivindicar as suas Ações de Cidadãos. A ilha ficou viva — mais uma vez — graças à “pirataria”!

Em Port Watson, todos os negócios e, de fato, todas as relações humanas são executados através de contratos. Não existem órgão de regulamentação para interferir em acordos feitos entre “parceiros em consenso”, seja na cama ou em um negócio bancário. Os contratos podem ser testemunhados por uma empresa de arbitragem independente. Reclamações contra grupos ou indivíduos são julgados por um “Sínodo Aleatório” — um comitê de Acionistas ad hoc escolhido por computador. Este Sínodo não possui nenhum poder de coerção. Na teoria, um “réu” que recusasse as recomendações do Conselho ficaria livre e o queixoso não teria nenhum recurso senão o duelo ou a vingança. Na prática, porém, isso só ocorreu uma ou duas vezes. Pede-se aos novos colonizadores em Port Watson apenas para concordar em viver de acordo com este anti-sistema, para doarem um dia por mês para projetos comunitários (conhecidos como “trabalho de merda”) e para absterem-se de comportamentos coercivos ou opressivos. Este acordo é chamado de “assinar os Artigos”, de acordo com o velho costume entre os bucaneiros e corsários. De fato, a forma de “governo” de Port Watson poderia ser chamada de Pacto de Piratas — ou talvez comunismo laissez-faire — ou anarco-monarquia (uma vez que cada ser humano é considerado um “senhor livre” ou agente soberano).

A terra só é “possuída” quando é ocupada e usada. Uma comunidade típica pode consistir de uma única construção, sem terreno, com três ou quatro membros (talvez até um “núcleo familiar”!); ou uma cooperativa do tamanho de uma fazenda com 12 a 25 membros e várias casas. A independência econômica torna a vida solitária praticável, mas um grupo pode juntar recursos, permitir-se uma moradia melhor e dividir luxos. Quase todas as pessoas pertencem a alguma forma de cooperativa, associação ou irmandade, desde um clube de jantar informal, até comunidades de utopias ideológicas rigorosas (a maioria nas montanhas ou fora da cidade). “Falanstérios” ou grupos de afinidade erótica são bastante comuns, assim como corporações de artesanato e cultos esotéricos (ver Atividades Culturais/Espirituais).

5- Dinheiro (Um Lembrete para o Viajante)

“Sem pilhagem não há pagamento!” e “A cada um de acordo com a recompensa, de cada um de acordo com o seu capricho!” — esses poderiam ser os lemas de Port Watson. Até mesmo a República de Sonsorol não possui moeda própria (embora venda adoráveis selos postais). Para pequenas transações, como pagar uma refeição ou jornal, qualquer moeda serve em teoria, ainda que na prática a libra neozelandesa ou o dólar norte americano sejam preferidos. Transações maiores geralmente são executadas por computador, uma vez que todos os Acionistas têm uma “conta” que pode ser usada. Os visitantes podem achar conveniente depositar parte de seus fundos no Banco, em uma conta “fixa ”ou “móvel”. A primeira é simplesmente um cofre eletrônico. Uma conta “móvel” constitui um investimento real no Banco. Em fevereiro de 1985, tais contas pagavam 7,5% de juros, e em março 12%. Viajantes moderados podem na verdade sair de Sonsorol mais ricos do que quando chegaram!

Os moradores da ilha elaboraram um escambo bem organizado entre eles. Uma organização de artesanato que produz batique (N. do T.: Método indonésio de estamparia de tecidos em que a cera é aplicada no tecido para evitar que algumas partes sejam tingidas, popular no Ocidente nos anos 60 e 70), por exemplo, irá transferir a sua mercadoria para a Cooperativa de Port Watson (chamada “As 5 & 10” por brincalhões locais) em troca de um determinado crédito, medido em uma quantidade quanta abstrata. Os membros da organização podem então usar o seu crédito em relação a qualquer produto da Cooperativa. Tanto a Cooperativa quanto diversos mercadores chineses independentes atuam como agentes de importação e exportação, preenchendo pedidos de mercadorias estrangeiras e artigos de luxo em troca de crédito do Banco ou da Cooperativa. Não há controle de preços e o valor dos produtos locais é determinado por computador, mas importações e mercadorias vendidas fora do sistema da Cooperativa estão sujeitos a intensa negociação, característico das compras em bazares orientais. Visitantes ingênuos foram algumas vezes enganados por watsonianos espertos. Caveat emptor (N. do T.: Do latim “Cuidado, comprador”).

Muitos grupos dentro do encrave do porto são ávidos para estabelecer trocas e comunicações com canais alternativos em outros lugares do mundo. Sempre que possível, Sonsorol procura evitar o comércio oficial internacional com todas as suas tarifas, impostos e regulamentações, e, em vez disso, contar com os contatos com comunidades, cooperativas, bolos, grupos e indivíduos artesãos não-comerciais e não-governamentais ao redor do mundo — especialmente aqueles que compartilham a perspectiva libertária-anarquista. Visitantes em Sonsorol são particularmente bem vindos quando oferecem algum contato com o “mundo externo”, tais como “potlatch (N. do T.: Troca de presentes, costume típico dos índios nativos da costa oeste norte-americana)”, escambo, contato cultural, troca de hospitalidade, etc.

Os Acionistas são livres para fazerem o que quer que queiram com os seus dividendos, e para entregarem-se qualquer tipo de negócio que os agrade e que não envolva nenhuma coerção, escravidão de salário ou ganância voraz. No entanto, fora da comunidade da ilha (e da rede crescente de contatos “alternativos” mundiais) essas restrições desaparecem. Como os seus predecessores piratas, os Sonsoroleanos estão “em guerra com o mundo todo” no que diz respeito a aproveitar algumas vantagens comerciais e fiscais. Por causa disso, muitos watsonianos enriqueceram consideravelmente — especialmente os Banqueiros e os comerciantes chineses. Qualquer exibição de riqueza excessiva é considerada de mau gosto, até mesmo “opressiva” — o espicurismo gastronômico e a indulgência estética têm aprovação social, mas diz-se que o “watsoniano típico” é um milionário que vive como um vagabundo de praia, um ermitão taoísta ou um artista, e faz grandes doações a várias causas beneficentes e revolucionárias radicais pelo mundo afora. Os moradores da ilha gostam de citar o dito espirituoso de Emma Goldman sobre a “revolução champanhe” e o comentário de Nietzsche sobre o “aristocracismo radical”. O dinheiro, no final das contas, significa muito pouco aqui (exceto como um jogo). A verdadeira balança de valores é baseada no prazer, na auto-realização e na intensificação da vida.

6- Fazendo Turismo em Port Watson

Port Watson surgiu rápido e tem o ar de uma cidade da corrida para o ouro, apesar de seu langor tropical. Sua arquitetura parece excêntrica, e “planejamento urbano” é considerado palavrão. Todos constróem onde e o que querem, de cabanas de palha a um ferro velho, cúpulas geodésicas ou um quonset, pré-fabricado ou tradicional, de estética personalizada ou funcionalidade feia. A maioria das ruas não é asfaltada, e carros são raros — embora algumas centenas de “bicicletas de graça” (pintadas de branco) (N. do T.: As bicicletas gratuitas pintadas de branco são referência ao grupo anarquista holandês Provos) fiquem paradas para qualquer um que necessite delas.

Diz-se que a população do encrave é de cerca de 2000 pessoas, embora nenhum censo tenha sido feito. Talvez a metade seja de sonsorolanos nativos. A outra metade consiste em pessoas de muitas nacionalidades, a maior porcentagem provavelmente de norte-americanos — e então chineses, australianos e neozelandeses, europeus (britânicos, franceses, alemães, etc.), escandinavos, sul-americanos, alguns filipinos, javaneses e outros do sudeste asiático dispersos; e indivíduos de lugares tão improváveis como Irã, Egito e África do Sul. A maioria dos “colonizadores” vieram trabalhar no Banco ou um dos outros negócios de Port Watson, ainda que um número significativo tenha apenas “passado por acaso e decidido ficar”. Estilos de vida variam da vagabundagem praiana Gaugin ao jet-set internacional (os representantes nômades do Banco), mas a maioria fica em algum lugar entre esses dois extremos.

Importante: o viajante deve ter sempre em mente que Port Watson se diferencia do resto do mundo em um aspecto principal: a falta de qualquer lei. Alguns watsonianos gostam de descrever sua cidade como um cruzamento entre O Coração das Trevas (N. do T.: Clássico de Joseph Conrad, O Coração das Trevas descreve a jornada de um oficial inglês à procura do desertor Comandante Kurtz, que transformara um entreposto comercial no Congo em uma assustadora colônia particular; o livro é a base para o filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola) e a cidade de Tombstone (N. do T.: Cidade do Arizona, nos EUA, que nos anos 1880 se tornou ponto de convergência de mineiros, aventureiros e foras-da-lei, devido a uma rica mina de prata. Conhecida como “a cidade dura demais para morrer”, foi personagens do velho oeste americano, como Wyatt Earp, Doc Holiday e John Ringo) — existem especulações sobre duelos e feudos, histórias sobre “pequenas guerras” entre comunidades, etc. — mas na verdade esses incidentes são muito raros, possivelmente até falsos. No entanto, os recém chegados devem ter consciência de que não existe nenhuma autoridade para safar ninguém do perigo ou de dificuldades. Até mesmo os watsonianos assumem a responsabilidade total por ações pessoais. O visitante deve por bem ou por mal seguir o exemplo.

A teoria libertária prediz que tal sistema — ou falta de sistema! — leva a mais paz e harmonia do que a violência e desordem, desde que todos os indivíduos tenham bem-estar e concordem em não coagir ou oprimir outro ser humano. Na prática a teoria parece funcionar — afinal de contas, Port Watson é realmente uma cidade pequena em uma ilha pequena, uma “ecologia social” que reforça a cooperação e até mesmo a conformidade. Por todo o seu ruído anarquista, a maioria dos watsonianos está muito contente para querer causar problemas — mas se um visitante deixa de compreender o “código não escrito” ou a correta educação sossegada, bem poderá sofrer conseqüências desagradáveis.

O cais fervilha de atividades: barcaças retirando a carga de algum navio a vapor sem rota ancorado na lagoa, barcos de pesca chegando e saindo, suas tripulações pechinchando com os representantes da Cooperativa sobre seu presa furta-cor, crianças brincando e nadando, os preguiçosos bebendo café no famoso Cannibal Café. Atrás do cais passa a rua Godown, com esse nome devido à sua fileira de armazéns feios ou “godowns” (N. do T.: Alteração em inglês para a palavra malaia godong, que significa galpão portuário). Aqui também se encontram vários postos marítimos, vendedores e construtores de barcos (paraus, juncos e canoas de regato) — e diversas boates e bares que abrem quando o sol se põe (ver Vida Noturna).

Do outro lado da rua Godown fica a rua China, o lar da comunidade chinesa de Port Watson. Lojas térreas velhas com fachadas de ferro onduladas e placas brilhantes escritas à mão. A única hospedaria da ilha, o Hotel White Flower, e vários restaurantes chineses excelentes (ver Onde Ficar e Comer). Pequenos templos chineses do tipo que são vistos por toda parte no sudeste da Ásia, pilares barrocos de concreto, dragões e fênix pré-fabricados e pintados de forma espalhfatosa retorcendo-se sobre um telhado inclinado, com fumaça de incenso subindo de um altar dourado e carmesim…: O Templo Taoísta da Estrela Polar do Sul. A maioria dos chineses watsonianos são taoístas ou budistas Chán, e o tai chi virou moda por toda a ilha.

Ao longo da praia a oeste da rua China uma área chamada de “A Favela” se expande sobre a areia ensolarada —gêmea dos guetos pós-hippies de “viajantes econômicos” de Goa e Bali. Choupanas de palha e pequenos bangalôs improvisados, algumas lojas de artesanato, casas de chá e restaurantes, uma população de ratos de praia e comedores de lótus (N. do T.: A expressão “comedor de lótus” vem de um conto homônimo (The Lotus Eater) do inglês W. Sommerset Maugham (“o escritor mais bem pago dos anos 1930”, como era conhecido), em que seu protagonista, o bancário inglês Thomas Wilson abandona toda sua vida após conhecer Capri, no sul da Itália, dedicado a viver apenas a excitação da natureza do lugar): os pobres por vontade própria de Port Watson. Aqui também se encontra a famosa “Drogaria” da cidade, cuja explicação detalhada seria imprudente, mas você entendeu.

A leste do cais, cerca de quinhentos metros pela estrada que leva à cidade de Sonsorol, fica o fabuloso Centro de Energia, sem dúvida o complexo mais feio da ilha. Seu trabalho pode ser benéfico para o meio ambiente, mas ele parece um trecho da rodovia expressa de Nova Jersey transportado em pedaços para os trópicos e remontado por um louco. Barreiras de torres desajeitadas e moinhos de vento experimentais (como algo saído da Guerra dos Mundos!), barreiras coletoras de luz solar pretas e sinistras, geradores enormes e desajeitados produzindo energia a partir da maré, das ondas e do vento. Fileiras de estufas hidropônicas de plástico montadas às pressas, ateliês e oficinas, ferraria, Garagem & Centro de Bricolagem — tudo planejado como um Conjunto Eretor construído sob o efeito de ácido. Os simpáticos técnicos Nova-Alquimia-da-Terra-Sadia do Coletivo Energético adoram toda essa maquinaria, sujeira, ruído e inventividade. Dizem que o Banco pode pagar as contas, mas talvez não para sempre. Enquanto isso, o Centro de Energia é o coração vivo de Port Watson.

Mas o Banco tem que levar o prêmio da arquitetura mais absurda da ilha. Construído por uma equipe de designers neo-futuristas italianos, ele já está caindo aos pedaços. Mas todos apreciam a sua extravagância e ousadia, então os banqueiros resmungam, mas gastam para mantê-lo de pé e funcionando. Com um formato que parece o cruzamento entre uma pirâmide egípcia e maia, meio amassada, sete andares, todo de vidro refletor preto e aço inoxidável (agora parecendo bastante enferrujado, depois de quatro temporadas de tufão) — o conceito total é tão ultra-pós-moderno que se assemelha à Ópera Cômica (ou Ópera Espacial!)… e ainda assim, suas formas refletem o vulcão extinto que forma a massa da ilha, suas cores refletem a areia preta e a sua ferrugem se harmoniza com o calor tropical… e depois do primeiro choque e da gargalhada, fica-se um pouco sob o seu fascínio! Um BANCO! Caído no meio desta ilha, com o formato do símbolo do Illuminatus numa nota de dólar (só que sem o olho) — pesado, denso e tão luminoso como vítreo.

Do lado de dentro, o Banco é dividido exatamente na metade. Uma metade permanece aberta, um “espaço catedral” sem divisões, uma enorme estufa, palácio de cristal botânico ou arboreto, rouco com pássaros soltos e plantas tropicais — escadarias e rampas levam a galerias e jardins suspensos — tubos de vidro com escadas rolantes dentro (como o aeroporto de Gaulle em Paris) riscam o espaço vasto, dando ao “saguão” uma atmosfera meio Montes Pirineus, meio Buck Rogers (N. do T.: Série de TV de ficção científica dos anos 50) — fontes esguicham no nível do solo ou caem em cascatas — e os watsonianos vêm aqui para piqueniques ou para foderem nas folhagens.

A outra metade do Banco é o Banco Sultão Ilanun Moro propriamente dito, um labirinto de escritórios, salas de computadores, cofres (onde dizem não haver quase nada de valor), alojamento para os banqueiros (que geralmente são hackers libertários e visionários anarco-capitalistas), todo ultra-moderno e com ar condicionado, futurologista e austero. O Banco mantém uma antena parabólica próxima ao pico do Monte Sonsorol, e os computadores têm equipes 24 horas por dia para receber notícias financeiras e políticas. Alguns moradores da ilha que não são membros da Cooperativa do Banco aproveitam, no entanto, para fazerem apostas em jogos financeiros internacionais: especulação e jogatina são esportes populares.

O Banco também funciona como um centro comunitário: uma gráfica, uma clínica médica (chamada, por algum motivo, de “Imortalidade Inc.), um refeitório popular, uma biblioteca de fitas e discos e outras instalações estão abertas ao público.

Entre a rua China e o Banco fica o Bazar, um centro comercial amplo e aberto (quente e empoeirado) cercado de mais lojas de ferro ondulado e lojas-choupanas de palha, além de um grande prédio, não muito diferente de um supermercado ou shopping. Tudo isso junto constitui o grande Centro Cooperativo dos Povos de Port Watson, o mercado de trocas, a butique de importação e exportação, empório de alimentos e bolsa de valores do Encrave. Terças e quintas são “Dias de Feira”, ainda que algumas partes da Cooperativa estejam sempre abertas. Mercadorias de luxo surpreendentes de todos os lugares do mundo (isentas de impostos, é claro) fazem do bazar um desconhecido Paraíso do Comprador; produtos eletrônicos, por exemplo, são mais baratos aqui do que em Hong Kong ou Singapura. A arquitetura do bazar é mal digna de nota, mas no meio do terreno há uma pequena mesquita pré-fabricada com adornos importada em partes do Paquistão via Brunei e montada aqui como O Centro de Estudos Esotéricos Sultão Pak Harjanto I (assim nomeado em homenagem ao mártir de 1907 que trouxe a magia javanesa para Sonsorol). Com todos os minaretes cor-de-rosa, barras verdes, branca e dourada como um bolo de aniversário de criança, com cobertura em alcaçuz de caligrafia árabe, a “Mesquita” é usada como um espaço para performances e salão para meditação pública. Cercada por um pequeno jardim de flores e árvores que dão sombra, é um agradável refúgio do calor e da poeira do bazar.

Outra característica divertida do bazar é O Muro do Grande Caractere (ou “Grande Muralha”), onde avisos, panfletos, poemas, xingamentos, pichações e “slogans com caracteres grandes” são pendurados e pintados — uma espécie de jornal gigante e imóvel. Uma feira de livros (venda, troca e compra) é realizada aqui às terças.

Por um quilômetro ao longo da praia a oeste das Favelas ficam As Academias, um agrupamento de comunidades e cooperativas dedicadas à educação e ao conhecimento, ocupando uma área de plantações de copra abandonadas. Parte da arquitetura é colonial restaurada (não muito interessante). O resto representa uma tentativa de criar um novo “vernáculo” sonsorolano fazendo uso de materiais tradicionais (palmeira, palha, coral) e os confortos da “tecnologia alternativa” proporcionados pelo Centro de Energia. Os prédios aqui têm os nomes de Ferrer (N. do T.: O espanhol Francisco Ferrer (1861-1909) foi uma das primeiras pessoas a questionar o monopólio da educação pela igreja ou pelo estado. Concebeu o conceito das Escolas Livres, a Escola Moderna e a Universidade Popular, que levaram ao sucesso das idéias anarquistas frente aos trabalhadores durante a Semana Trágica, em 11 de julho de 1909 (quando a classe operária se revoltou contra o governo que declarava guerra ao Marrocos). Ferrer foi executado como um dos líderes do levante), Goodman (N. do T.: O norte-americano Paul Goodman (1911-1972) era poeta, escritor e comentarista até que a crise da meia-idade o abalou em plena época de vacas magras, levando-o a explorar outros temas para sobreviver. Foi assim que encontrou o judeu alemão Fritz Perls, com quem escreveu Gestalt Therapy, passando a dedicar-se à crítica social. Assim, publicou seu mais famoso livro, Growing Up Absurd (1960), que questionava a autoridade das instituições e foi mais tarde usado como manifesto contra a Guerra do Vietnã), Freire (N. do T.: O brasileiro Paulo Freire (1921-1997) é um dos grandes pedagogos da história contemporânea e obras como Pedagogia do Oprimido, Vivendo e Aprendendo e A Importância do Ato de Ler são referências internacionais), Neill (N. do T.: O inglês Alexander Sutherland Neill (1883-1973) foi um dos principais críticos do sistema britânico de educação e fundador da escola livre Summerhill School, onde as crianças escolhiam os critérios que queriam ser avaliadas), Illich (N. do T.: O austríaco Ivan Illich (1926-2002) é considerado o pioneiro da Teologia da Libertação e seus grandes feitos incluem o clássico Sociedade Sem Escolas e seu trabalho junto às comunidades latinas nos anos 60 e 70. Fundador do Centro de Documentação mexicano (tido como refúgio para guerrilheiros clandestinos), formulou o conceito da Aliança para o Progresso, através da qual postulava que o nível de desenvolvimento de um país poderia ser medido de acordo com o grau de escolaridade de seu povo), Reich (N. do T.: O austríaco Wilhelm Reich (1897-1957) era sócio de Freud Policlínica Psicoanalítica de Viena, mas logo rompeu com seu professor e com o movimento da psicoanálise. O nazismo o obrigou a deixar a Europa e, instalado em Nova York, passou a desenvolver sua teoria da energia orgone, que, segundo Reich, é um fenômeno universal e é liberado através da atividade sexual. Ele advogava que o acúmulo desta energia era responsável pelas neuroses individuais, movimentos sociais irracionais e desordem neurótica coletiva. Criou um dispositivo chamado Caixa Orgone, para aliviar tal energia, que foi declarado fraude pelo governo americano. Ao continuar suas pesquisas com o aparelho, foi intimado e sentenciado à prisão, onde morreu)… e as teorias educacionais praticadas derivam de seus ensinamentos. A pesquisa científica avançada é limitada, é claro, mas o acesso a computadores e financiamentos mais do que suficientes para certos projetos resultaram em um espírito de descoberta em — por exemplo — estudos de percepção extra-sensorial, matemática e física teóricas, genética e biologia (especialmente o campo de pesquisa morfogenética) e até mesmo um modesto observatório (que recebeu o nome do Príncipe Kropotkin (N. do T.: De ascendência nobre, o russo Peter Alexeyevich Kropotkin (1842-1912) passou a freqüentar a corte do czar Nicolau I ainda menino, quando foi escolhido pelo próprio para ingressar no Corpo dos Panges, se interessando por ciência. Depois de estudar a Sibéria, abraçou a geografia e deixou a corte e a vida militar para tornar-se um dos principais nomes da história anarquista. Fundou o jornal Le Révolté na França e escreveu seus principais livros (A Conquista do Pão, Ajuda Mútua, Memórias de um Revolucionário e Campos, Fábricas e Oficinas) na Inglaterra. Voltou à Rússia com a revolução de 1917, mas desiludido com a ditadura bolchevique, dedicou os últimos anos de sua vida à obra Ética, que ficou inacabada. A essência da pesquisa científica está presente em seus principais textos)).

As crianças ocupam uma posição única em Port Watson. Acionistas desde o nascimento, elas são financeiramente independentes e nenhuma força moral ou legal as prende à sua “família” se elas quiserem viver sozinhas. Tanto nas Academias como em outros lugares do Encrave, comunidades de crianças de estilo polinésio são bem sucedidas sem a “supervisão de adultos”. Elas escolhem os próprios cursos e pagam pelos conhecimentos especializados que desejem — ou então se empregam como aprendizes em algum ofício — ou então não fazem absolutamente nada senão brincar e se divertir. A liberdade sexual entre duas ou mais pessoas quaisquer que a consintam é normal em Port Watson. A infância sofreu uma mutação entre Maioridade em Samoa (N. do T.: Maioridade em Samoa (Coming of Age in Samoa), publicado em 1928, é um dos polêmicos livros da antropóloga norte-americana Margareth Mead e trata das relações entre sexualidade, adolescência e sociedade) e um jogo de utopia computadorizado. Felizes, saudáveis e desinibidos, mais sérios e mais selvagens que os suas equivalentes americanos ou europeus, eles às vezes parecem ter vindo de outro planeta… ainda que, ao mesmo tempo, seja óbvios que sejam os verdadeiros watsonianos.

7- Onde Ficar e Comer

Port Watson se orgulha apenas de uma hospedaria comercial, o White Flower Motel, na rua China, um prédio de dois andares com um pátio dirigido pelo próprio dono, um velho “adepto” do taoísmo, decano do corpo diplomático chinês da comunidade chinesa, o senhor Chang. Quarto simples custa 15 dólares a noite, duplo, 25. Visitantes “econômicos” encontrarão cabanas ou quartos para alugar nas favelas por apenas dois dólares por dia. E se tudo o mais falhar, o Banco mantém diversos quartos de hóspedes disponíveis (para financistas visitantes apenas, na teoria).

A rua China é o lugar para se comer, e Port Watson se qualifica como uma verdadeira “viagem gastronômica”, como dizem os viajantes econômicos. O Yellow Turban Society
(N. do T.: A sociedade dos turbantes amarelos era um grupo de revoltosos sanguinários chineses que, no final da Dinastia Han (150 d.C.), se posicionou como vanguarda da história, disposta a aniquilar o poder vigente de forma violenta e iniciar uma nova era) é especializado na culinária de Pequim e da Mongólia. O Manchu Pretender (N. do T.: Depois de invadir a Manchúria, em 1931, o Japão transforma-a em um estado-fantoche, Manchukuô, e coloca o último imperador chinês, Pu Yi, como líder e testa-de-ferro) na de Cantão e de Hong Kong (o proprietário afirma ser o “príncipe herdeiro perdido” da China!) e o Cinnabar Immortal serve a culinária vegetariana taoísta/budista da mais alta qualidade.

Pequenos bares e restaurantes aparecem e desaparecem na Favela. Dois dos que mais duram são The Crowbar Club, cuja especialidade é frutos do mar, e uma barraca de hambúrguer chamada McBakunin’s! A Drogaria serve café e doces, entre outras coisas.

O Banco mantém uma lanchonete de estilo americano, que é barata e popular, apelidada de The Willie Sultan Bar & Grill (N. do T.: Famoso ladrão de bancos norte-americano, Willie Sultan (1901-1980) fez fama nos anos 30 como assaltante gentleman e mestre dos disfarces. Sua famosa explicação sobre porque assaltava bancos (“porque é ali que está o dinheiro”) foi citada neste mesmo texto pouco antes de Pak Harjanto Abdul-Rahman IV e Travis B. O’Conner decidirem-se pelo ramo banqueiro). Os dias de feira no bazar também são dias de banquete, com inúmeros comerciantes vendendo tudo, de bolo de coco caseiro a trufas importadas.

8- Atividades Culturais e Espirituais

Não se passa uma noite em Sonsorol sem uma performance em algum lugar — música (clássica, gamelan e rock fazem sucesso), dança, teatro, poesia, etc. Fique atento ao Muro do Grande Caractere para ver os anúncios. Escultores e artistas exibem seus trabalhos em público, e por toda a ilha se tropeça em surpresas estéticas, obras de artes combinadas com a paisagem ou paisagem enquanto arte, objets trouvés(N. do T.: Objets Trouvés (objetos encontrados, em francês) é o nome de um ramo do surrealismo e do dadaísmo que lida com, obviamente, objetos encontrados como matéria-prima para, principalmente, escultura. Marcel Duchamp e Man Ray são alguns dos principais nomes desta escola) (achado não é roubado) e (em um caso específico) um Godzilla verde de plástico gigante de pé e sozinho na floresta. O Banco faz apresentações de filmes antigos à noite e de programas de TV “pirateados” de satélites. Poucos watsonianos têm televisores (muitos abstêm-se da eletricidade de forma geral), mas gostam de assistir de vez em quando no Banco, rindo nos comerciais. Alguns artistas trabalham em filmes e vídeos, e usam as instalações do Banco — que são de ponta.

Nesta sociedade em que as pessoas sempre têm tempo livre, os livros são considerados uma necessidade, e as publicações locais fazem um sucesso fora de proporção com a população. Esta cidade se orgulha de ter dois jornais semanais (um deles chamado Os Protocolos dos Idosos de Port Watson!), uma publicação mensal sobre arte, uma pletora de panfletos e uma produção pequena, porém estável, de livros (incluindo alguns no dialeto sonsoroleano) publicados por editoras com nomes imaginativos — Chthulu Press (N. do T.: Chthulu é o protagonista (um monstro verde, gigantesco, com cabeça de lula, garras e asas de morcego) do universo de horror do autor H.P. Lovecraft), New Rocking Horse Books, Fourth Eye Books, End of the World News & Stationary — e, é claro, uma Editora Pirata.

A espiritualidade pós-new age prospera no encrave. Cooperativas e comunidades com freqüência são organizadas com base em alguma Rumo ou terapia de vida. Uma lista parcial de tais organizações inclui: Wicca e outras formas de neo-paganismo (inclusive um renascimento tanto artificial do politeísmo sonsoroleano baseado em Castañeda, Lovecraft e Margaret Mead!), várias formas de taoísmo (tradicional e mágico, filosófico e alquímico e anarco-caótico), zen chinês, Igreja dos SubGênios, Templo de Eris, o Illuminati, “Anarquismo Místico”, tantra e ioga, artes marciais chinesas e javanesas, especialmente tai chi e silat, vários círculos e ordens de Cerimonial Magick, inclusive um “Nova Aurora Dourada” e um “O.T.O. (N. do T.: A Ordo Templi Orientis reúne tradições dos Cavaleiros Templários, Iluministas, Rosa-cruzes, Maçons, e os medievais Cristianismo Gnóstico e Escola de Mistério Pagão. A base da ordem é O Livro da Lei, de Aleister Crowley) Reformado”, Igreja do Satã, a Escola Sabbatai Sevi de Judaísmo Mágico, o Si Fan (“uma conspiração devotada à subversão mundial e ao terror poético”), a Igreja Católica Gnóstica, o Templo do Ateísmo Materialista, Igreja do Príapo (N. do T.: Na mitologia greco-romana, Príapo era filho de Afrodite (deusa do amor) e de Dionísio (deus do vinho) e foi deformado ao nascer por Hera, que tinha ciúmes de sua mãe; sendo representado como um indivíduo grotesco e com um pênis gigante), e assim por diante. Uma das linhas espirituais mais populares em Sonsorol, incluindo Port Watson, é a chamada “Caminho Moro”, uma combinação de esoterismo puro enraizado no kebatian javanês, no sufismo, xamanismo, mitologia hindu e islamismo heterodoxo. A “Mesquita” no bazar serve como um centro para grupos como Sumarah, a Escola da Invulnerabilidade, a “Igreja Moura Ortodoxa”, a Academia de Meditação Moura, etc. (ver cidade de Sonsorol pra mais detalhes.) Reuniões, sessões, aulas, etc. são divulgadas na “Grande Muralha”.

9- Vida Noturna & Recreação

Assim como os watsonianos criaram a sua própria “Favela”, eles também têm o seu “bairro da luz vermelha” — não por nenhuma necessidade econômica, mas simplesmente porque apreciam a indolência e a imoralidade. Quando escurece, a rua Godown se transforma em um antro de perversidade e não fecha até o amanhecer. Os viajantes noturnos começam com uma refeição na rua China, seguem para o Cannibal Café para um café, de lá para Euphoria (um cassino), The Johann Most Memorial Dance Hall (N. do T.: “Não é mais a aristocracia e a realeza que o povo pretende destruir… Não; no ataque próximo o objetivo é entregar toda a classe média à aniquilação… Exterminar toda a espécie desprezível! A ciência agora coloca em nossas mãos meios que tornam possível a destruição completa dos brutos de uma maneira perfeitamente quieta e metódica”, dizia o anarquista alemão Johann Most (1846-1906), um dos principais teóricos do assunto nos EUA. Lá, ele escreveu o panfleto The Science of Revolutionary Warfare: a manual of instruction in the use and preparation of Nitro-Glycerine, Dynamite, Gun Cotton, Fulminating Mercury, Bombs, Fuses, Poisons, etc, etc. em que saudava o terrorismo) (uma casa de rock), Bishop Sin’s Massage Parlor (a coisa mais parecida com um bordel em Sonsorol), The Unrepentant Faggot (um bar gay), Café Voltairine (um clube lésbico), Eat the Rich! (uma lanchonete noturna) e outras espeluncas de nomes criativos e vida curta. Esses clubes geralmente consistem em nada mais que uma área coberta caindo aos pedaços em um beco entre dois armazéns pintados com cores escuras e talvez ostentando uma placa de neon dadaísta? Visitantes, anotem: você não está exatamente arriscando a vida na rua Godown, mas nunca se sabe (digamos assim) o que há no ponche. Os watsonianos nunca precisam ansiar pela insanidade da vida nas grandes cidades: ela está toda concentrada aqui — sem um único policial para conter a loucura. Como diz uma pichação no banheiro (unissex) do Cannibal Café: “Após a meia-noite o Contrato Social está cancelado! (assinado) O Senhor da Desordem”.

10- Excursão à cidade de Sonsorol

Um velho ônibus escolar, completamente reconstruído em bronze e cromo reluzentes, faz o mesmo percurso de ida e volta pela única estrada asfaltada de Sonsorol, do Bazar em Port Watson à capital da república, a cidade de Sonsorol. (Isto é, ele o faz quando se encontra alguém para dirigi-lo.) A estrada passa pela savana, a área rural mais povoada e cultivada da ilha, especialmente por famílias cristãs sonsoroleanas nativas, que apegam-se às “virtudes” do trabalho pesado.

A vida na república flui em um ritmo mis lento e mais conservador do que no livre encrave. Os nativos mais velhos se apegam as atitudes da Igreja Holandesa Reformada ou então seguem o Caminho Moro com toda a sua sutileza, boas maneiras, elitismo estético e “superstição mágica”. A república não possui uma força policial, mas as pessoas tendem a se adaptar a certos costumes, pelo menos em público, e dentro de um contexto de uma integridade geral, descontraída e ao estilo polinésio. O visitante deve se lembrar de não ofender nenhum sentimento por um comportamento abertamente watsoniano (como foder em público).

A cidade de Sonsorol é até menor e mais sossegada do que Port Watson. O ônibus os deixa em uma rua empoeirada com lojas feias de fachadas de ferro ondulado ao longo da margem do rio. Em um extremo da Rua do Mercado fica o Hospital pequeno, porém ultra-moderno, o único prédio novo da cidade. No outro extremo fica a “Catedral Calvinista”, na verdade uma igreja pequena e de estilo holandês um pouco indistinto construída em 1910 (o pároco é holandês e liberal. Ele prega “Tolstói, Thoreau e Gandhi”!)

A oeste da catedral fica o “Bairro Cristão”, uma área de pequenos bangalôs tropicais/coloniais concentrados ao redor da Sede do Governo, o prédio da antiga administração colonial no estilo batavo “holandês-indonésio”, com uma fachada levantada no estilo de Amsterdã, cor rosa-coral com teto de telhas vermelhas, onde se pode assistir a uma eventual sessão do Legislativo, e ouvir discursos delirantes e prolixos de todos os pontos de vista, do fundamentalismo protestante ao anarco-monarquismo místico. A Agência de Correio, um centro de computadores público e uma velha máquina de impressão manual constituem os únicos Órgãos do Estado, mas a praça em frente à Sede do Governo é sombreada de forma agradável e bastante freqüentada por aqueles que gostam de passear à noite e colocar as fofocas em dia.

Entre a Sede do Governo e o rio fica o Bairro Moro, onde as antigas villas batavas valem um passeio a pé. Os “aristocratas” moros são menos de duzentos, e não usufruem de mais nenhum privilégio fiscal em relação aos outros cidadãos — na verdade, a maioria deles se nega a trabalhar, e vive às custas de seus dividendos do Banco, modestos e avaros. Sua vida se concentra nos arredores do “Palácio” do Sultão, (na verdade, uma villa de doze cômodos), e a Mesquita do Sultão, um kraton (N. do T.: Kraton, o “Palácio do Onipotente, é o famoso e tradicional palácio do sultão de Jacarta, na Indonésia) grande, mas simples de estilo javanês com um pátio coberto, cercada por villas adjacentes, oficinas e jardins.

O Sultão Pak Harjanto Abdul-Rahman Moro IV (nascido em 1945) pode ter renunciado todo poder, mas não todas as atividades. Sua fascinação tanto pela filosofia libertária, como pelo misticismo sonsoroleano tradicional o inspirou a criar diversas instituições culturais e educacionais estreitamente relacionadas, que se concentram ao redor da mesquita. A Corte Gamelan (uma orquestra javanesa de percussão importada no fim do século XIX e extremamente preciosa) encontra os seus músicos na Academia do Palácio das Artes e Ofícios Tradicionais. Ligadas a essas há duas escolas para crianças, uma para meninos e uma para meninas, cada uma com aulas de música, dança, arte e confecção de batique, mas em geral ignoram todo o resto. As crianças sonsoroleanas que queiram uma educação moderna podem freqüentar a “Escola do Governo”, que é mista, ou uma das Academias de Port Watson. Mas aqui, tudo é antiquado, refinado, rebuscado, até um pouco decadente e perverso. Os alunos não se submetem a nenhuma disciplina tradicional, porém: eles são livres para ir e vir como quiserem, contanto que cumpram o seu “contrato” de estudar e realizar todos os concertos públicos semanais (todas as sextas-feiras, começando quando o sol se põe e durando às vezes até o amanhecer), que constituem o ritual central do Caminho Moro.

Junto com a Academia do Palácio e as duas escolas para crianças, a Mesquita também mantém uma oficina de batique, aulas de teatro e dança para amadores e aficionados, uma biblioteca de trabalhos sobre a cultura e a história sonsoroleanas, e sessões regulares de meditação em grupo. Também há aulas de artes marciais. O único jornal de Sonsorol, o mensal Court Gazette, também é publicado aqui e impresso na velha máquina da Sede do Governo.

As matrículas nessas instituições têm o mesmo número de “colonizadores” e “nativos”. Alguns watsonianos se tornaram cidadãos da república para poderem morar e estudar na cidade de Sonsorol. As artes tradicionais e especialmente música são bastante apreciadas, particularmente pela nova geração de filhos de nativos que são descendentes de colonizadores. Talvez elas estejam se rebelando contra o anarquismo de seus pais através dessa paixão pelo gamelan e Ramayana (N. do T.: Um dos mais belos poemas épicos da humanidade, o Ramayana foi escrito pelo sábio Valmiki há dois mil anos e é um dos principais textos do Sul da Ásia. Conta a história do príncipe herdeiro Rama e é cheio de reflexões sobre os aspectos da cultura indiana, sendo influência decisiva na política, religião e arte da Índia moderna), do uso de sarongues, batique e flores no cabelo, da imitação de gestos moros conservadores, e de um culto a pirataria e bruxaria.

Os ocidentais na cidade de Sonsorol ou moram perto da Sede e da Mesquita, ou ao longo da costa no antigo bairro holandês. Na ponta da Praia do Holandês encontra-se o Old Colonial Club, agora ocupado pelos dois únicos restaurantes de verdade de cidade: um dedicado à culinária nativa (The Corsair’s Cave) e outro à elegância da cozinha francesa (Chez Ravachol
(N. do T.: O anarquista francês François Ravachol (1859-1892) era outro que advogava o terrorismo e é conhecido por sua famosa frase, “ninguém é inocente”)) — ambos são caros. O Clube também oferece uma sala de jogos com “os únicos fliperamas de toda a Oceania”. Ao longo da praia pra o oeste ficam as antigas villas holandesas, algumas em ruínas, outras habitadas por comunidades de colonizadores artistas, músicos e outros estetas que apreciam a vida tranqüila ou beber com os amigos na Corte.

Além da vida cultural da Sede e da Mesquita, nada mais acontece. Aqueles que querem “agito” vivem em Port Watson — aqueles que preferem a “falta de agito” em Sonsorol — e aqueles que gostam dos dois vão e voltam de um lugar ao outro, de acordo com o humor.

11- Outras Excursões

Do outro lado da Ponte do Garuda, vindo da cidade de Sonsorol, ficam as ruínas do Forte Espanhol, e uma aldeia de pescadores um tanto pitoresca que leva o mesmo nome.

Os três atóis de coral que ficam a alguns quilômetros de Sonsorol podem ser visitados com um barco ou canoa alugados tanto de Port Watson como da cidade de Sonsorol. Ngemelan é habitada apenas em temporadas, mas Ngesaba e Garap têm pequenas comunidades anarquistas (inclusive uma “tribo” de caçadores-coletores e uma colônia de nudismo!). Mergulhar, nadar, pescar e outros prazeres tropicais estão sempre presentes, e muitas pessoas preferem as praias de coral branco à areia vulcânica preta de Sonsorol.

Nos lados norte e noroeste da ilha, algumas aldeias agrícolas e comunidades rurais suportam calor e chuvas muito mais fortes para obterem uma privacidade quase total. O único modo de chegar até lá é de jipe ou a pé. Uma aldeia, New Canaan
(N. do T.: Canaã é a Terra Prometida, na Bíblia), é formada por calvinistas reacionários que odeiam tanto o anarquismo quanto o Caminho Moro, mas nunca recusaram os seus dividendos (não é recomendável ao visitante). Outra, Nyarlathatep, é a sede de um culto de magia negra (também não recomendável).

Na encosta do monte Sonsorol, a norte de Port Watson e dentro da fronteira do encrave ficam as enigmáticas ruínas monolíticas chamadas Nbusala, que calcula-se datar de antes da vinda dos piratas Moros. O mito popular a chama de “O Templo das Nuvens” e a associa com arcaicos mitos e lendas perdidos. Perto dali, a cachoeira mais alta da ilha dá mais encanto à área. A subida pela floresta úmida é exaustiva, mas o local é apreciado pelos artistas, iogues e neo-pagãos, que o consideram um “lugar de força”, o coração vivo da ilha.

12. Como se tornar um morador

Sonsorol não tem turistas e tem alguns visitantes, e alguns destes últimos não conseguem ir embora. Os computadores do Banco estimam que a ilha poderia dobrar a sua população em cinco anos sem diminuir o dividendo médio e sem causar nenhuma superlotação, mas na verdade a taxa de crescimento é muito menor. Como um visitante pode se tornar um morador permanente?

Aqueles que possuem independência financeira podem simplesmente se estabelecer em Port Watson e fazer o que quiserem —desde que concordem em “assinar os Artigos”. Para se tornar um acionista, no entanto, é necessário ser acolhido por uma comunidade ou sociedade já existente, ou então convencer um Sínodo Aleatório de que se pode oferecer habilidades ou serviços valiosos à comunidade. Propostas recentes bem sucedidas partiram de um oceanógrafo de Boston, uma italiana que estudou a arte das marionetes na Indonésia, um jovem extremamente belo de vinte anos de Belize, a tripulação de uma pequena chalupa que chegou com um equipamento de aparelhos eletrônicos vindo da Califórnia, alguns marinheiros malaios que decidiram abandonar os navios e cultivar abacaxi, um poeta irlandês que impressionou o Conselho ao improvisar em terza rima sobre os temas sugeridos por uma platéia, e um menino norte-americano de quatorze anos que fugiu da família em Guam e disse que queria estudar feitiçaria.

Para morar do lado de fora do livre encrave, é necessário, em teoria, tornar-se um cidadão da República de Sonsorol (embora esta “lei” não seja executada de forma muito rigorosa). Todos os cidadãos se tornam Acionistas automaticamente. Documentos são concedidos sem questionamentos a qualquer um que seja aceito em algum clã ou comunidade sonsoroleana, ou que seja contratado de forma específica para trabalhar para o governo (médicos, professores, etc.), ou ainda que seja aceito como aluno pelas Academias na Mesquita do Sultão. Caso contrário, deve-se fazer um requerimento ao Legislativo em vez do Sínodo Aleatório, e nem todos os pedidos são aceitos. Os documentos às vezes são concedidos em troca de um discurso divertido ou eloqüente, mas há rumores de que ligações na Corte podem contar mais do que uma personalidade interessante.

Com a exceção de alguns cristãos antiquados, os sonsoroleanos e os watsonianos vivem no que parece ser uma harmonia perfeita. O casamento entre pessoas dos dois lugares se tornou comum (com freqüência sem benefício de clero ou estado), e a geração mais jovem tem toda a beleza e vitalidade de uma raça nova.

O Caminho de Sonsorol pode ser possível apenas em uma ilha tropical, e alguns argumentam que esta qualidade de utopia libertária não pode ser transplantada para o mundo exterior. Porém, outros acreditam no contrário. Em um editorial (na Court Gazette de 10 de maio de 1985) o próprio Sultão escreveu: “Ninguém que ame a liberdade pode ouvir falar de Sonsorol sem saudades, inveja ou nostalgia de alguma coisa desconhecida, mas profundamente desejada… Sonsorol poderia ser criada em qualquer lugar — nada cria empecilhos a não ser a consciência e o poder inflexível daqueles governantes que se alimentam de consciências falsas como vampiros. Nós convocamos uma rede de Port Watsons a envolverem a Terra: um, dois, muitos, um número infinito de Port Watsons! Deixe que aqueles que nos invejam transmutem a sua frustração em raiva e insurreição, em uma determinação para usufruir da utopia agora, e não em alguma terra do nunca depois da morte ou da Revolução. Nós alcançamos aqueles que têm saudades de nós no “terceiro mundo” dominado pela pobreza, no “segundo mundo” asfixiado pela ideologia e no “ocidente” despedaçado pelas ilusões. E nós sussurramos a milhares de quilômetros de distância para dizermos a eles: ‘Não percam a esperança: Port Watson existe dentro de vocês, e vocês podem torná-lo real’.”