Pente fino no Doutor Estranho

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Dissecado lá no meu blog do UOL, o novo filme da Marvel, Doutor Estranho, mostra os rumos para o futuro do personagem, da saga principal contada desde o primeiro filme do Homem de Ferro e dos planos de dominação mundial do estúdio.

O grande trunfo de Doutor Estranho, a mais recente produção da Marvel, não é simplesmente o fato de ser o primeiro filme do estúdio de tom menos juvenil (como o segundo Capitão América já tinha sido) nem seus deslumbrantes visuais psicodélicos. Essas duas qualidades ajudam o estúdio a se situar num contexto que parte em busca um novo público, que não assiste filmes de super-herói. Sua principal qualidade reside no fato do diretor Scott Derrickson contar uma história de origem simples e de forma objetiva, concluindo a jornada do protagonista com grandes truques cinematográficos, sem se preocupar em expor as referências e conexões com o contexto original do herói nos quadrinhos ou do cada vez mais complexo universo cinematográfico da Marvel. Estes, no entanto, não são deixados de lado, mas colocados em uma perspectiva que fica em evidência para o público já cativo da editora e do estúdio, respectivamente. Estas referências ajudam inclusive a sacar o rumo que a Marvel está apontando para seus próximos filmes, quando conclui, em três anos e dez filmes (!), sua chamada fase 3.

Preciso dizer que a partir daqui vou entupir o texto de spoilers? Ok, então está dito: seguem umas imagens de fronteiras interdimensionais para você não correr o risco de ler algo que não queira – se você quiser ler uma resenha sem spoilers, escrevi este texto antes da estreia do filme.

As referências mais evidentes são feitas não ao público iniciado, mas justamente para aquele que a Marvel quer ganhar com Doutor Estranho: o fã de cultura pop adulta. Não confunda com o fã adulto de cultura pop – este já forma grande parte da audiência da Marvel no cinema. Ela está em busca de um público que não gosta ou não se identifica com super-heróis – e por mais que Doutor Estranho seja um deles, ele não se encaixa no parâmetro tradicional do herói mascarado com roupa justa e colorida. Seus ícones são heróis que vão de encontro à cultura nerd vigente, seja do lado da ficção científica ou da fantasia. Por isso Doutor Estranho firma-se visualmente sobre pilares modernos do pop adulto.

A principal referência é, claro, a presença de Benedict Cumberbatch. O já eternizado Sherlock Holmes do século 21 fez a Marvel adequar-se à sua agenda para conseguir viver o personagem título e ele o faz de forma primorosa. O momento em que ele veste a capa que lhe caracteriza definitivamente como o personagem dos quadrinhos é a coroação de uma atuação perfeita, a melhor do universo cinematográfico Marvel. O sotaque norte-americano falado pelo ator inglês é só uma das joias de seu trabalho, que equilibra seriedade e humor a ponto de nunca parecer ridículo ao conjurar feitiços ou ao encarar o principal vilão do filme. O resto do elenco mantém o nível embora seja muito pouco exigido. Rachel McAdams, Mads Mikkelsen, Chiwetel Ejiofor e Michael Stuhlbarg são atores de alto calibre que não são tão exigidos quanto poderiam. A própria Tilda Swinton se contenta em uma atuação protocolar, que não constrange mas não brilha. O que não garante que eles não sejam utilzados em filmes futuros.

Outro elemento pop e adulto óbvio é a psicodelia. Ela vem sutilmente escancarada na ponta feita por Stan Lee, que aparece gargalhando ao ler uma edição dos anos 50 do clássico As Portas da Percepção do escritor Aldous Huxley. No livro, o visionário autor de Admirável Mundo Novo conta sua experiência com a mescalina, droga que teria uma enorme influência na renascença lisérgica da década seguinte. O título foi tirado de um verso de William Blake que fala que “quando as portas da percepção estiverem abertas, tudo parecerá como realmente é: infinito” e foi inspiração para Jim Morrison batizar sua clássica banda.

Não é a única referência à psicodelia tradicional. A cena do acidente que tira o movimento das mãos de Strange começa com “Interstellar Overdrive”, primeira música do lado B do primeiro disco do Pink Floyd, The Piper at the Gates of Down, de 1967. Ao contrário de grande parte da discografia do Pink Floyd, este primeiro disco foi batizado em ácido lisérgico, quando a banda ainda contava com seu fundador, o visionário Syd Barrett. A faixa instrumental era conhecida como uma longa jam session nas intermináveis noites psicodélicas da Londres do final dos anos 60 e o disco foi gravado em um dos estúdios de Abbey Road no exato momento em que os Beatles gravavam seu clássico Sgt. Pepper’s.

A música não foi colocada apenas por esta referência. Na montagem da capa do segundo disco da banda (o último com Barrett, que saiu do grupo por ter se tornado uma vítima do LSD), Saucerful of Secrets, podemos ver uma sequência de planetas vista por um rosto isolado no canto esquerdo superior. Repare:

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Esta imagem é parte de um quadrinho de página inteira da edição 158 da revista Strange Tales, publicada em julho de 1967 (um mês antes do lançamento do disco anterior), em que o Doutor Estranho é apresentado à onipotente entidade cósmica Tribunal Vivo, que é justamente o rosto na parte de cima da capa do disco. O próprio Doutor Estranho aparece no quadrinho, mas foi retirado da colagem da capa.

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Outra referência óbvia é a progressão geométrica que o diretor e seu diretor de fotografia Ben Davis dá aos devaneios urbano-surreais de Christopher Nolan em Inception – A Origem. As dimensões paralelas são um dos muitos truques de cinema que ele e Derrickson exploram durante todo o filme – sem dúvida, o de maior impacto. Pisos em mosaicos, correores que se aprofundam, catedrais que se transformam em engrenagens e a arrebatadora visão de Nova York ao cubo – tudo isso é parente direto das cidades distorcidas por Nolan em seu filme de 2010 e os realizadores de Doutor Estranho não negam. Davis também cita o psicodélico Fantasia, de Walt Disney, como outra referência para os visuais do filme, além, claro, do túnel interdimensional do ato final de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick.

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Outro filme que está na base de Doutor Estranho é Matrix. Desde o papel meio Morpheus da Anciã vivida por Tilda Switon (que começa várias frases como “e se eu te dissesse…?”) à jornada do escolhido feita por Stephen Strange, o filme de 1999 dos irmãos Wachowski está espalhado por todo o filme da Marvel. O treinamento de Strange no Tibet alude de forma descarada ao primeiro filme da trilogia: a tonalidade esverdeada do salão em que Strange conhece a Anciã, o momento de revelação sobre o mundo místico ao simples toque na testa de Strange, a relação mestre e pupilo entre os dois, a forma como as artes marciais são apresentadas.

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Outras referências pop não são propriamente adultas, mas trazem o filme para uma realidade diferente da dos nerds de lojas de quadrinho, ao mencionar diferentes artistas pop atuais (Beyoncé, Eminem, Adele) em uma cena hilária entre Strange e Wong (vivido por Benedict Wong). A menção à Beyoncé foi, inclusive, sugerida por Cumberbatch, fã da cantora:

Já as alusões ao universo dos quadrinhos do Doutor Estranho são bem mais sutis. Com a exceção das vestimentas de Strange e da dimensão paralela criada por um dos desenhistas mais clássicos da história da Marvel, Steve Ditko. A Dimensão Negra nos quadrinhos é assim:

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A forma como Derrickson e Davis colocam essa terra surrealista em movimento é outro desses truques de cinema que aumentam a moral do filme.

Além disso, são citados vários outros personagens do universo de Strange no papel. O vilão Kaecilius (vivido por Mads Mikkelsen) é um personagem secundário nos quadrinhos e no filme assume um papel que normalmente é do Barão Mordo (personagem ainda em construção, vivido no filme por Chiwetel Ejiofor) e é acompanhado de capangas que contam, entre eles, com Tina Minoru (vivida pela atriz Linda Louise Duan), personagem que faz parte do grupo Fugitivos nos quadrinhos. Outro personagem que vemos brevemente é o guardião do Sanctum de Nova York, que é nos apresentado como Daniel Drumm (vivido por Mark Anthony Brighton), que na prequel em quadrinhos é identificado como irmao de Jericho Drumm, o Irmão Vodu. Outros personagens coadjuvantes são levemente distorcidos para marcar presença, como a hora em que somos apresentados ao Mestre Hamir (um dos primeiros gurus de Strange nos quadrinhos, cujo aparição é apenas mencionada no início do filme) ou o nome do par romântico de Strange (vivido por Rachel McAdams), que é Christine Palmer, uma das Enfermeiras da Noite, entidade que já tem uma de suas encarnações, Claire Temple (vivida por Rosario Dawson) em ação no universo Netflix (as séries Demolidor, Jessica Jones e Luke Cage, até agora). Alguns dos personagens principais são bem modificados: além da polêmica ocidentalização da Anciã (mais polêmica que sua mudança de gênero), Wong passa a usar magia (nos quadrinhos ele apenas luta) e Modor ainda não é o vilão.

Mestre Hamir, nos quadrinhos

Mestre Hamir, nos quadrinhos

Ainda há os inúmeros artefatos místicos, alguns mostrados sorrateiramente (como o bastão do Tribunal Vivo e o Livro de Vishanti), outros protagonistas da ação (como o Manto da Levitação, que ganha vida na versão cinematográfica). Um bom meio-termo disso é a Vara de Watoomb, que é apresentada rapidamente para logo depois virar a arma de Wong na luta final.

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Livros também são protagonistas das histórias de Doutor Estranho e se seu constante Livro de Vishanti aparece apenas rapidamente, o Livro de Cagliostro tem um papel central na história. Tudo isso é reforçado para mostrar a natureza do universo místico de Strange. Ao mesmo tempo em que os novatos vão conhecendo estes novos nomes e referências, os veteranos vão reconhecendo as homenagens e a atenção ao detalhe.

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E há também referências a histórias específicas de Strange, especificamente “Into Shamballa”, que Dan Green e J. M. DeMatteis fizeram em 1986, e a recente “The Oath”, que Brian K. Vaughan e Marcos Martin escreveram em 2007. “Shamballa” entra na piada da senha do Wi-Fi:

shamballa

“The Oath”, por sua vez, é o roteiro básico do filme e conta com uma cena especificamente tirada dos quadrinhos, quando a projeção astral de Strange ajuda Christina Palmer operá-lo:

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A referência a The Oath foi anunciada antes mesmo do filme ser feito, quando Cumberbatch entrou em uma loja de quadrinhos em Nova York a caráter e pediu para o atendente tirar uma foto em que ele mostrava a capa da revista, que publicou em seguida na internet:

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A cena foi filmada pelas câmeras de segurança da loja e tem um quê surreal:

Outra referência de “The Oath” é o médico que opera Strange após o acidente, que é referido apenas como “Nick” (vivido por Michael Stuhlbarg), que é ninguém menos que Nicodemus West, o médico que opera o neurocirurgião naquela em quadrinhos.

nicodemuswest

E, claro, o grande vilão Dormammu, representado de forma diferente dos quadrinhos (sem corpo, onipotente), mas mantendo o mesmo rosto listrado da versão clássica:

dormammu

A forma como Strange derrota Dormammu – com um truque de lógica, não com magia – é mais um aceno para o fã de cultura pop adulta, enquanto a cena da destruição final apresentada apenas de trás pra frente é outro grande trunfo da direção de Derrickson.

E, finalmente, temos as referências ao resto do universo Marvel no cinema. São citações mencionadas quase de passagem e se você não conhece a história completa que inclui os outros filmes nem conhece nada de super-heróis não interfere em nada ao assistir apenas a este filme. A primeira delas é a presença da Torre dos Vingadores na paisagem de Nova York. Serve para nos lembrar que estamos no universo Marvel e que os eventos ocorrem após o primeiro filme dos Vingadores.

Olha ela ali em cima

Olha ela ali em cima

Outra citação, ainda mais no início do filme, nos ajuda a situar Doutor Estranho na linha do tempo da Marvel. Não, sua origem não acontece após os incidentes de Guerra Civil, o filme anterior do estúdio. É uma trama paralela que vem se desenvolvendo há mais tempo e quando Strange declina alguns casos pouco antes de sofrer o acidente que imobiliza suas mãos, ele deixa passar um acidente envolvendo um soldado que teve a parte inferior de sua espinha dorsal destruída por um equipamento bélico experimental. Muitos acharam que era uma referência ao personagem vivido por Don Cheadle, James Rhodes, o Máquina de Combate, que é abatido em combate em Capitão América: Guerra Civil e quase perde os movimentos das pernas. Mas a idade mencionada (35 anos) e o fato da armadura de Rhodes não ser mais experimental tira a possibilidade de Stephen Strange não ter começado sua transformação em mago depois dos acontecimentos deste filme.

Na verdade, a cena parece mais pertencer ao segundo filme do Homem de Ferro, no julgamento de Tony Stark (Robert Downey Jr.) no início do filme, em que ele mostra vídeos que provam que o fabricante de armas Justin Hammer vem fabricando versões fracassadas de sua armadura, inclusive uma cena bem parecida com a descrita na ligação para Strange (veja quando o relógio do vídeo abaixo chega aos dois minutos):

Então é possível que o acidente que dá início à história do Doutor Estranho aconteça ainda na primeira fase do universo cinematográfico Marvel, antes do segundo filme do Thor, antes do primeiro do Capitão América e do primeiro filme dos Vingadores. Como seu treinamento levou mais do que meses, como mencionado no próprio filme, é possível ele tenha durado justamente o período de tempo entre os dois filmes dos Vingadores para o próprio Estranho pudesse enfrentar uma grande ameaça, ao final de seu filme. Uma ameaça que, por ter sido desfeita quando Strange consegue retroceder o tempo, não foi percebida por ninguém no planeta. Mas a conversa com Wong sobre o papel dos feiticeiros em relação a forças místicas que agem contra a Terra, em que os Vingadores são mencionados nominalmente, deixa claro que o final do filme acontece mais próximo da época atual.

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É curioso pensar que Strange dispensou outros dois casos, além deste que pode ser o do segundo filme do Homem de Ferro. Ele ouve falar de “uma mulher com um implante elétrico no cérebro para tratar de esquizofrenia que havia acabado de ser atingida por um raio” e “uma senhora com um dano no tronco encefálico”. Será que são personagens que nem conhecemos cujas histórias ocorrem neste mesmo período? Por que a primeira descrição me faz lembrar da Capitã Marvel? Hmmm…

Outra referência óbvia ao universo Marvel já havia sido cogitada antes do lançamento do filme que era a possibilidade de o Olho de Agamotto, o artefato místico fundamental para Strange, ser uma das Jóias do Infinito, pedras preciosas que vêm sendo reunidas desde os primeiros filmes do estúdio. Vamos recapitular: a primeira delas foi o Tesseract (a Joia do Espaço, de cor azul) no primeiro filme do Thor, a segunda foi o Éter (a Joia da Realidade, de cor vermelha) no segundo filme de Thor, depois veio o Orbe (Joia do Poder, de cor roxa) no primeiro filme dos Guardiões das Galáxias, seguida pela Gema (a Joia da Mente, de cor amarela) que apareceu no segundo filme dos Vingadores e agora temos o Olho de Agamotto (a Joia do Tempo, de cor verde) neste novo filme. A única joia que falta ter seu paradeiro revelado é a da Alma (de cor laranja), que deve surgir em um dos filmes da Marvel no ano que vem (acho que em Guardiões da Galáxias 2, mas é só uma aposta).

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Três referências sorrateiras que localizam Strange no universo Marvel, sua origem em relação ao resto dos personagens, e sua conexão com o fio da meada que estamos acompanhando até aqui. As duas cenas no fim dos créditos apontam para os próximos passos tanto do Doutor Estranho neste universo quanto para onde este começa a apontar uma vez que entramos de vez em seu terceiro capítulo.

A primeira delas mostra Strange conversando com um certo deus nórdico, que dispensa o chá em troca de sua bebida preferida numa curta sequência engraçadinha. Thor (vivido por Chris Hemsworth), depois de constatar que “a Terra agora tem feiticeiros” explica que tem uma “questão familiar” para resolver, referindo-se ao desaparecimento de seu pai Odin (Anthony Hopkins) e ao que tem aprontado seu meio-irmão Loki (Tom Hiddleston) e Strange oferece-se para ajudá-lo. A cena confirma uma especulação que já estava quente quando o ator Daley Pearson (que interpretou o colega de quarto de Thor no hilário curta que explicou onde estava o deus do trovão durante os acontecimentos de Capitão América: Guerra Civil) twittou a seguinte foto nos bastidores do terceiro filme de Thor, Ragnarok, que estreia no ano que vem:

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Na foto, Thor mostra um cartão com o endereço “177A Bleecker St”, que todo fã da Marvel sabe que é o endereço da base de Strange, o Sanctum Sanctorum de Nova York, o que abriu a especulação que Doutor Estranho estaria no terceiro filme de Thor. A primeira cena após os créditos de Doutor Estranho vem confirmar isso, transformando Thor: Ragnarok no filme da Marvel que talvez tenha o melhor elenco até agora: além de Hemsworth, Hiddleston, Hopkins e agora Cumberbatch, o filme ainda terá o Hulk de Mark Ruffalo, Tessa Thompson como Valkyrie, Cate Blanchett como Hela, Karl Urban como Skurge, Jeff Goldblum com o Grão-Mestre e a volta de Idris Elba como Heimdall. Nada mal.

A segunda cena escondida confirma a transformação do personagem de Mordo em Barão Mordo, que começa ao final do próprio Doutor Estranho quando o personagem de Chiwetel Ejiofor frustra-se com o uso que a Anciã faz de magia negra. A cena final define a reviravolta em sua personalidade quando ele encontra-se com o personagem vivido por Benjamin Bratt, o ex-paralítico Jonathan Pangborn, que deu o caminho das pedras para Strange descobrir a magia. Pangborn, aprendiz místico, desistiu do mundo da feitiçaria e contenta-se em usar o que aprendeu apenas para conseguir andar novamente. No encontro com Mordo, este retira os superpoderes do mago novato e diz que “há muitos feiticeiros” na Terra, o que reforça seu papel de antagonista no próximo encontro que terá com Strange. Quando ele ressurgirá na telona é a dúvida desta cena: será no terceiro filme de Thor, no terceiro filme dos Vingadores, que deverá ter mais Doutor Estranho, ou numa óbvia continuação (ainda não anunciada) do filme de Strange?

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As duas cenas finais, no entanto, concordam que a chegada de Doutor Estranho ao universo cinematográfico Marvel confirma a entrada do elemento místico na história. Até então superpoderes e super-heróis eram explicados pela ciência e pela tecnologia, à exceção de Thor, um elemento isolado justamente por não ser terráqueo. Com a chegada do Doutor Estranho, a Marvel inclina-se mais para este lado, que deve dar a tônica desta terceira fase e, possivelmente, dos próximos dois filmes dos Vingadores. As primeiras produções do estúdio em 2017 – a série Punhos de Ferro feita com o Netflix e o segundo Guardiões da Galáxia (que já tem uma conexão aberta com Strange através de um brinquedo Lego e desenhos de pré-produção do filme) – também devem ir para este lado, o que abre a possibilidade para novas adaptações de sagas em quadrinhos, novos personagens e novos vilões – estes que ainda são o calcanhar de Aquiles da Marvel.

Psicodelia Marvel

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Assisti ao filme do Dr. Estranho e é tanto o filme de super-herói mais lisérgico quanto o mais adulto já feito – escrevi sobre o filme lá no meu blog do UOL.

“Prepare-se para esquecer tudo que já sabe.” A frase, dita em tom ameaçador ao personagem-título do filme Doutor Estranho, que chega aos cinemas nacionais no dia 3 de novembro, também pode servir como aviso para o público acostumado aos filmes de super-herói da Marvel. O Doutor Estranho vivido por Benedict Cumberbatch consegue manter a regra de que o estúdio consegue fazer um filme divertido e empolgante até com personagens desconhecidos do grande público, como já havia feito em Guardiões das Galáxias e o Homem-Formiga. Mas a jornada do neurocirurgião Stephen Strange rumo ao desconhecido supera a expectativa ao apresentar um filme de super-herói para um público adulto, alheio aos uniformes coloridos e aos superpoderes de protagonistas de apelo infantil.

É o filme mais maduro da Marvel até agora e, coincidentemente, sua produção mais psicodélica. Toda aura mística e espiritual do médico que sofre um acidente que o impossibilita de continuar seu trabalho era traduzida em imagens grandiosas e espetaculares nos quadrinhos, publicados principalmente na virada dos anos 60 para os anos 70, auge da experimentação lisérgica da cultura pop. Os autores da Marvel do período – especificamente Steve Dikto, que recebe o crédito de autoria do personagem do novo filme – aproveitavam cores e formas para expandir os limites dos quadrinhos em páginas duplas épicas, cheias de detalhes.

Essa psicodelia é traduzida formidavelmente em imagens de tirar o fôlego pelo diretor Scott Derrickson, que mistura mandalas orientais, o urbanismo surreal de A Origem do diretor Christopher Nolan e uma mecânica transcendental que bebe tanto nas perspectivas inacreditáveis do ilustrador MC Escher quanto dos artistas mais radicais da Marvel para criar cenas de ação caleidoscópicas. Nos trailers, estas cenas deslumbram e encantam – mas nos filmes elas deixam de ser mera (e ousada) decoração para fazer parte da ação, em cenas de luta e perseguição que ganham perspectivas impossíveis.

A psicodelia é sublinhada em vários outros momentos do filme, desde o apreço pelo oriente (a terra encantada dos anos 60) quanto nas referências pop – o acidente que muda a vida de Strange é acompanhado por “aquela” música “daquele” disco do Pink Floyd (não vou estragar a surpresa) e veja se você consegue reparar no livro que Stan Lee está lendo em sua rápida e rotineira participação especial. É interessante notar que a expansão de consciência que a cultura pop foi submetida durante este período também é o momento em que ela começa a abandonar sua juventude rumo a uma nova maturidade.

Esta maturidade é reforçada pelas ótimas atuações do filme. Além de um irrepreensível Cumberbatch (que, mais uma vez, abandona os vestígios de seus personagens anteriores, desde o Khan do segundo Jornada nas Estrelas de J.J. Abrams ao seu clássico Sherlock Holmes), o elenco do filme está muito acima do filme mediano da Marvel. A dupla que Cumberbatch faz com a personagem de Rachel McAdams, Christine Palmer, mantém a primeira meia hora da produção no mundo real, sem misticismo nem megalomania. Tirando a cena inicial, que nos apresenta ao vilão Kaecilius (vivido por Mad Mikkelsen, o Hannibal da série de mesmo nome), o primeiro ato do filme quase não parece um filme de super-herói e sim um drama sobre relacionamentos, sentimentos e prioridades.

Mas uma vez que Strange viaja para Katmandu encontrar seu destino, o filme ganha contornos hiperbólicos e sentidos improváveis num filme de super-herói, ainda graças às boas atuações de Tilda Swinton (a Anciã, que, mesmo não sendo um personagem oriental não compromete a história), Chiwetel Ejiofor (Modor) e ótimo Wong (vivido por Benedict Wong). Como os outros dois filmes de heróis desconhecidos do grande público, Doutor Estranho é um filme autocontido e não é preciso entender nada do universo cinematográfico Marvel ou de filmes de super-herói para apreciá-lo.

Os fãs, no entanto, têm uma série de dicas escondidas, pistas espalhadas e, claro, continuidade na enorme saga Marvel no cinema, prestes a completar uma década. As melhores delas nos apresentam a uma dimensão inteira para o universo já conhecido, nos esfrega uma Jóia do Infinito que estava escondida em nossa cara e traça conexões com outro filme da Marvel que está por vir, além de anunciar a volta de Strange nos próximos filmes (são duas cenas escondidas após os créditos). É o filme mais maduro e mais psicodélico da Marvel – e, por isso mesmo, pode trazer ainda mais gente para o público do estúdio. Não vejo a hora de assistir de novo.

Dimensões paralelas do novo universo Marvel

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A versão Lego de um brinquedo do Dr. Estranho pode ter dado uma pista sobre uma conexão do filme com o próximo Guardiões das Galáxias – detalhei essa possibilidade lá no meu blog no UOL.

No mês passado a revista Empire divulgou algumas imagens conceituais sobre o próximo Guardiões da Galáxia – e uma das mais empolgantes era uma em que o grupo ataca um monstro com inúmeros tentáculos no espaço. Mas algo faz parecer que veremos este monstro ainda este ano, mesmo que o segundo filme dos Guardiões só chegue aos cinemas no primeiro semestre do ano que vem – mais especificamente no próximo filme que a Marvel estreia este ano, Dr. Estranho.

A primeira pista veio quando o diretor do próximo Guardiões, James Gunn, em um vídeo ao vivo pelo Facebook, comentou que o bicho mostrado na imagem era um “monstro interdimensional”, como dá pra vê-lo falando aos sete minutos do vídeo abaixo (sem legendas em português):

Se o monstro viaja por diferentes dimensões, isso já é meio caminho andado para trazê-lo para o universo místico de Stephen Strange. Mas repare na versão Lego para o Sanctum Sanctorum do mago interpretado por Benedict Cumberbatch, já colocada à venda antes mesmo do lançamento do filme:

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O que é esse bicho com tentáculos que aparece no canto direito do cenário?

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A própria loja online define a criatura como “o monstro do portal” o que não ajuda em nada a disfarçar a possibilidade do monstro estar vindo de – ou indo para – uma outra galáxia.

Vai ser interessante ver a Marvel montar as conexões de sua terceira fase, uma vez que ela reunirá heróis já conhecidos (todos os Vingadores, os Guardiões) com outros que ainda não foram apresentados ao público (como o próprio Dr. Estranho, a Capitã Marvel) – ou que apareceram rapidamente no recente Guerra Civil, como Homem Aranha e Pantera Negra -, além de, aparentemente, finalmente trazer os personagens da editora que fazem seriados de TV para o palco dos cinemas. E essa conexão entre o Doutor Estranho e os Guardiões da Galáxia parece ser apenas a primeira delas…

O sucesso da DC no cinema não está garantido

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A Warner mostrou bons trailers dos heróis da DC na Comic Con 2016, enquanto a Marvel preferiu criar expectativa… Não dá pra dizer que a DC ganhou, como comentei no meu blog no UOL.

MC Marvel

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E a dominação da cultura pop pela Marvel começa a atingir novos patamares com o anúncio de uma nova linha chamada Hip-Hop Variants, em que personagens de seu universo são recriados em capas de discos clássicos de rap. O lançamento oficial acontece em outubro – e essas capas eu vi no Uproxx, que tem outras por lá.

Dr. Estranho encontra os Flaming Lips

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Uma das principais especulações a respeito da fase 3 da Marvel é a forma como abordarão o personagem Dr. Estranho, talvez o super-herói que menos dependa da ciência de toda a editora. O animador Alex Silver, da This is Productions, resolveu fazer sua versão para a abertura do filme e embora o resultado certamente fique longe do que virá, ele dá umas dicas do que esperar do filme, que vai ser estrelado por Bennedict Cumberbatch.

E esse Flaming Lips na trilha sonora matou a pau.

Bennedict Cumberbatch como Doutor Estranho

Ainda não é uma imagem oficial, é só uma imagem de fã – mas foi twittada pelo diretor do filme (Scott Derrickson) com a seguinte legenda: “Strange but not a stranger”, tirada de “Burning Down the House” dos Talking Heads.

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Ao mesmo tempo que dá pra ter uma idéia do jeito que o personagem será conduzido ainda acena para o espaço sideral, fazendo conexão com a atual fase “cósmica” da Marvel.

Benedict Cumberbatch será o Doutor Estranho

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Depois de viver Julian Assange, Sherlock Holmes, Khan de Jornada nas Estrelas, um dragão de Tolkien e Alan Turing, Benedict Cumberbatch pode encarnar outro personagem peculiar para sua lista de tipos – a Marvel anunciou que o ator inglês foi confirmado como sendo o protagonista da adaptação para o cinema de Doutor Estranho, felizmente ultrapassando nomes como Joaquin Phoenix, Ethan Hawke, Ewan McGregor, Jared Leto, Matthew McConaughey, Oscar Isaac e Jake Gyllenhaal. O filme só estréia daqui a dois anos, mas já faço a aposta que pode ser um dos grandes épicos do estúdio, já que, como Guardiões das Galáxias, o personagem criado por Stan Lee e Steve Ditko (mais Ditko que Lee, como sempre) não é tão popular a ponto de inspirar comparações com as versões do quadrinho – e o fato de ser um personagem essencialmente mágico pode atrair um público completamente novo, além de ter todo o potencial para ser o filme mais psicodélico da Marvel. Com Cumberbatch como protagonista então…