O Manifesto Neotroglodita de Jarvis Cocker

Escrevi sobre o Manifesto Neo-Troglodita do Jarvis Cocker, O Círculo de Dave Eggers e sobre o episódio do final do ano de Black Mirror (o White Christmas) lá no meu blog do UOL: http://matias.blogosfera.uol.com.br/2015/03/16/de-que-adianta-se-desconectar-da-internet/

jarvis-caverna

Jarvis Cocker, vocalista da banda Pulp e um dos comentaristas culturais mais importantes da da virada do século, lançou o “Nu-Troglodyte Manifesto” (Manifesto Neo-Troglodita) na edição deste mês da revista AnOther, um manifesto quase grunhido contra a onipresença da tecnologia e a volta para a idade da pedra. Traduzo-o abaixo:

“Onde você pode encontrar paz?
Onde você pode encontrar silêncio total?
Escuridão completa?
Aqui.
Sem sinal de celular.
Sem wi-fi.
Sem TV.
Sem rádio.
Este é o som de verdade do submundo: (porque, sabe, estamos no submundo de verdade)
Nenhuma influência de fora.
Uma tela em branco.
Quer dizer, não exatamente em branco – olhe para essas paredes: o que você vê quando olha pra lá? Você vê rostos? Padrões? Eles não estão lá, você sabe – do mesmo jeito que não há nenhum escorpião, urso ou caçadores sobrevoando o céu à noite. O universo é aleatório: só o homem que tenta estabelecer um padrão. Fazer que possa significar algo.
Mas esses padrões não são bons o suficiente como são? Sem nenhuma interpretação? E você não adoraria poder fazer algo tão lindo quanto isso? Claro que sim. Mas ninguém fez: apenas aconteceu.
Estalagmites
Estalactites
Qual é qual?
“Tights come down” * (uma maneira crua mas eficaz de lembrar)
Essas coisas levaram 20 mil anos para se formar, sabe.
E eu pensei que eu fosse lento no trabalho…
É uma coinciência que o clube que viu nascer o grupo musical mais influente e significante do século passado chamase-se “A Caverna”?
Não acho.
E por que as melhores casas noturnas ficam em porões escuros e sombrios com tetos baixos?
Fácil:
Porque nos lembra de estar lá… De volta às cavernas, digo – vamos lá: por que você acha que era chamado de música da pedra (rock music) em primeiro lugar?
Foi aqui que tudo começou.
Um antepassado da sua família morou aqui certa vez.
O Des-Res original **
Agora é hora de voltar pra casa
Hora de voltar à fonte
Hora de escapar da tagarelice constante infinita sem sentido que lhe distrai de quem realmente você é e o que você realmente quer fazer.
Não há lugar pra pensar aqui
Lugar pra viver
Entre (cuidado com a cabeça)
Sente-se
Olhe para uma pedra
Vamos começar tudo de novo.”

Jarvis clama para uma volta às raízes da natureza humana quando o homem sequer era homo sapiens, uma espécie de romantismo extremo, transformando a caverna pré-histórica em uma Arcádia bruta e animalesca. Na verdade ele canaliza uma sensação recorrente a todos nós: somos bombardeados por tantos contatos, fotos, mensagens, vídeos e links que a única solução que parece ser possível é largar tudo e fugir para vender coco na praia ou construir seu próprio chalé no campo, longe das barbaridades do século 21.

É um tema cada vez mais frequente na cultura atual – a onipresença da tecnologia em nossas vidas e a ascensão do capitalismo eletrônico criaram um híbrido distópico que reúne os piores pesadelos do século 20. Nem George Orwell em seu 1984 conseguiu imaginar uma sociedade em que as pessoas carregam câmeras e localizadores nos próprios bolsos, deixando rastros digitais por onde andam, sem nem cogitar fugir do Grande Irmão (nome de um dos programas mais populares atualmente). E nem Aldous Huxley conseguiria cogitar distrações tão inacreditáveis em seu Admirável Mundo Novo quanto as que tomam conta de nossa rotina digital, em bipes e luzes nos celulares, números que se acumulam nas redes sociais, abas abertas com todo o tipo de conteúdo disponível, de planilhas de valores a fotos NSFW.

Um dos livros mais importantes de 2013, traduzido ano passado para o Brasil, é O Circulo, de Dave Eggers (Companhia das Letras). É uma distopia disfarçada de entrevista de emprego ou comercial de departamento de RH, em que acompanhamos ascensão e queda de duas amigas no trabalho. Ambas trabalham na empresa que batiza o livro, uma startup que conseguiu ultrapassar Google e Facebook num futuro próximo ao criar um sistema de identificação que aposenta o conceito de senhas e muda nossa relação com a internet – de novo. O livro descreve o maravilhoso campus da empresa – cool, clean, hi-tech e cheio de regalias – ao mesmo tempo em que mostra que a rotina de trabalho dos funcionários se mistura cada vez mais com o tempo livre, tornando a participação social uma exigência quase compulsória. A trajetória das duas principais personagens – Annie e Mae – se diverge à medida em que nos afundamos nos segredos e inovações tecnológicas de uma empresa que tem como lemas frases como “segredos são mentiras”, “compartilhar é cuidar” e “privacidade é roubo”.

circulo

O Círculo é pessimista com o mesmo sorriso que as pessoas dão quando tiram selfies. Seu final assustador mostra que estamos só arranhando uma superfície de perigo, mexendo em campos minados que podem mudar completamente a história de nossas vidas.

(Pra quem já leu o livro, um agrado – viu que lançaram o SeeChange da vida real?)

Ainda mais pessimista foi o especial de natal que a série inglesa Black Mirror, produzida pela BBC, exibiu no final do ano passado. Criado pelo genial Charlie Brooker, um dos críticos culturais mais ácidos na Inglaterra atualmente, a série não conta uma história, apenas pequenos contos sobre nosso relacionamento com a tecnologia. São duas temporadas, cada uma com três episódios com pouco mais de meia hora, que contemplam a alienação, a violência, o deleite, o nojo e a opressão causada pela comunicação digital, em contos tétricos e de um humor pessimista e bizarramente hilário. O título da série é uma referência às telas que olhamos diariamente quando são desligadas, revelando um espelho negro que reflete todos nossos anseios. É o mais próximo de um Além da Imaginação produzido para o século 21 que se tem notícia.

O especial de natal, batizado de Black Mirror: White Christmas, é especialmente aterrador. Mistura realidade aumentada, implantes nos olhos, armazenamento externo de lembranças pessoais, serviços de relacionamento, inteligência artificial, prevenção de crimes, ordens de restrição. Protagonizado pelo Don Draper de Mad Men (o ator Joe Hamm), o episódio se passa num futuro próximo mas faz referências a várias tecnologias que já estão sendo usadas em nosso dia a dia. Ele apenas cogita a possibilidade de popularização destas, quando todas as pessoas usarem tudo que já é disponível hoje – além de um tiquinho de ficção científica.

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Mais livros, filmes e discos (e sites e perfis em redes sociais e aplicativos e plugins) surgirão para nos alertar sobre os perigos do mundo digital, a insegurança da vida na internet, a necessidade de desconexão da rede. É uma mudança inevitável. Não dá para desplugar a internet ou voltarmos às máquinas de escrever, telefones fixos e fotos que precisavam ser reveladas sem que colocar o mundo em colapso. As vantagens da era eletrônica justificam sua existência até agora, mas precisamos aprender a usá-la.

Tiramos fotos de nós mesmos sem parar, postamos tudo que fazemos nas redes sociais, usamos aplicativos pra tudo em qualquer instante porque são novidades que nos foram apresentadas agora. Estamos nos lambuzando de tecnologia e de internet porque até outro dia tais facilidades não existiam. É como se estivéssemos gastando o que dá antes que tudo se acabe.

Mas é uma questão de hábito, uso e educação – esse é o nosso desafio para com as ferramentas digitais que estão moldando sim uma nova cultura. Não há escapatória – este novo romantismo é tão reacionário quanto o primeiro, que achava que a era industrial ia destruir uma paz no campo que só existe na cabeça de quem nunca morou no campo. Já escrevi inclusive sobre como essa venda de cocos na praia ou essa choupana rural é ilusória se isolada do resto da sociedade. Esse Walden só é possível mentalmente e talvez seja isso que Jarvis Cocker esteja pregando no manifesto neo-trogolodita: a volta para a caverna da mente.

* Duas N. do T. em relação ao texto de Jarvis Cocker: A frase “tights come down” (“calças caem”) não faria sentido ao ser traduzida literalmente porque é parte de uma brincadeira fonética em inglês para decorar a diferença entre estalagmites (que saem do chão) e estalactites (que saem do teto). A expressão completa é “Mites come up, tights come down” e é traduzida literalmente como “insetos sobem, calças descem” para lembrar a direção de ambas formações a partir de seu sufixo: “mites” lembra “estalagmite” e “tight” lembra “estalactite”.
** A segunda nota se refere ao acrônimo “Des-Res”, usado pelo mercado imobiliário inglês para explicitar que determinado imóvel (especialmente após reformas) é uma “residência desejável” (“desirable residence”, “des res”).

Sobre a nossa relação com a tecnologia

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Escrevi na edição de novembro da revista Brasileiros sobre o livro novo do Dave Eggers, o excelente O Círculo, e a nova edição do Neuromancer, marco-zero do cyberpunk, do William Gibson (que já havia citado por aqui). Segue o texto:

Em círculos
O clássico “Neuromancer” e o novo romance de Dave Eggers; lançados em um intervalo de 30 anos, livros tratam de assuntos semelhantes

Uma das desvantagens do mundo de transformações por segundo em que vivemos é que são tantas as mudanças, em tantas áreas diferentes, que a ficção científica, antes o farol das revoluções tecnológicas do século 20, agora tem de correr atrás para não ficar defasada. A forma como a internet entrou em nossa rotina, por exemplo, caducou centenas de obras que não cogitaram um século 21 como tendo acesso instantâneo, a partir de qualquer aparelho, ao maior banco de dados da história, que também tem afetado nosso consumo de mídia. TV, rádio, jornais e revistas já padecem ao rascunho multimídia que ainda são os sites de internet, uma plataforma que ainda engatinha para encontrar sua excelência narrativa, entre sistemas operacionais e navegadores diferentes. E isso levando em conta apenas o futuro digital, traçado a partir da popularização da internet – sem contar outros futuros possíveis, em áreas bem diferentes como a indústria farmacêutica, a engenharia genética, a robótica, a nanotecnologia ou a biotecnologia.

Mesmo assim, um dos poucos livros a cogitar essa realidade online – Neuromancer, de William Gibson –, inaugurou há 30 anos o subgênero cyberpunk e escapou desse envelhecimento instantâneo. “O fato de que leitores do século 21, vivendo em nações como o Brasil, ainda estejam dispostos a ler um romance de ficção científica anterior ao telefone celular e em que aparelhos de fax ainda estão presentes, me encanta”, escreve na introdução da edição de aniversário do livro, relançado no Brasil pela Editora Aleph. “Para mim, Neuromancer nunca foi sobre ‘como o futuro seria’, mas sobre o que fazemos, como espécie, com as ideias que temos a respeito do futuro. É um romance sobre como a tecnologia nos modifica ou fracassa em suas tentativas de nos modificar, geralmente de maneiras que os desenvolvedores dessa tecnologia sequer são capazes de antecipar.”

Hoje, Microsoft e Apple, empresas responsáveis pela disseminação da web na última década do século passado, ao personalizar o computador no início da década de 1980, já são velhas conhecidas. Google e Facebook, no entanto, ainda são relativamente jovens: não têm nem 20 anos de idade (o Facebook completou 10 neste ano), mas já se embrenharam assustadoramente em diferentes camadas de nossas vidas. E por mais que o século 21 nos tenha trazido outras marcas à rotina – Dropbox, Samsung, eBay, Netflix, Amazon, Twitter e PayPal são outras que nos vigiam em diferentes áreas –, nenhuma delas chega perto da penetração e onipresença do site de buscas criado pela dupla Sergey Brin e Larry Page e pela rede social criada por Mark Zuckerberg.

Google e Facebook fo­­­ram aceitos ao oferecerem serviços gratuitos de forma universal. A partir dessa oferta, as duas empresas foram reunindo comunidades ao redor de seus algoritmos que, aos poucos, traçavam o perfil individual de seus usuários para, finalmente, mostrar propaganda personalizada para cada um deles. As duas empresas criaram seus próprios sistemas de anúncios que ligavam o consumidor a outros clientes, aposentando veículos de comunicação e agências de publicidade para dominar a propaganda digital. Resta saber o que pode aparecer para superar essa hegemonia digital. É o que nos propõe Dave Eggers em seu novo livro, O Círculo, recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras.

O título do livro também é o nome dessa nova empresa que conseguiu ultrapassar Google e Facebook na forma como foi adotada por todo o planeta. O Círculo consegue reunir todas as plataformas digitais do mundo (inclusive Google e Facebook) em num mesmo ambiente, de forma que todas as pessoas do mundo precisam estar nessa nova rede social se quiserem participar de qualquer atividade online. A conta no Círculo funciona como uma identidade digital e a rede pede apenas que você abra mão do seu anonimato para utilizá-la. A rede foi inventada porque um de seus fundadores estava farto de ter de decorar senhas e para isso criou uma plataforma de identidade única, chamada TruYou, que ainda matava trolls e outras espécies de incômodos online. Foi a fagulha que deu origem não apenas ao interesse do público em geral, mas também à expansão da empresa rumo a outras áreas da sociedade em que a identidade social fosse exigida.

Conhecemos o Círculo pelos olhos de uma novata, Mae, que é indicada para entrar no Círculo pelas mãos de uma amiga de faculdade, Annie. Esta é integrante da Gangue dos 40 (referência à Camarilha dos Quatro, do governo de Mao na China), conselho da empresa que ajuda seus fundadores a traçar os rumos de expansão da marca. Como os outros integrantes da Gangue, Annie é jovem, decidida e obcecada, um perfil quase caricato dos executivos pós-modernos. Ela convida Mae para o Círculo quase numa tentativa de manter seu vínculo com o passado emocional que aos poucos vem perdendo. Annie mostra cada atividade desenvolvida pela empresa para Mae e para o leitor, bem como seu campus paradisíaco, seus funcionários satisfeitos e saudáveis e seus fundadores, os Três Homens Sábios.

Esses homens são paródias de figuras que vemos diariamente entre o noticiário de negócios, tecnologia e relações internacionais. Eamon Bailey é o adulto entusiasta, padrinho e profeta daquele ambiente mágico em que a tecnologia resolve todos os problemas, o rosto público agradável que sempre anuncia para o resto do mundo as novidades da empresa. Tom Stenton é o CEO obstinado, disposto a transformar tudo em dinheiro, o capitalista engravatado que faz o mundo perfeito de Bailey funcionar, que tem um estranho hobby relacionado a espécies raras de animais. Ty Gospodinov é o gênio juvenil que bolou todo aquele organismo digital e hoje vive recluso, aparecendo apenas em transmissões em vídeo.

Pelas páginas do livro, vamos entrando nesse aparente paraíso digital e aos poucos percebemos que o enorme círculo eletrônico está mais para uma ilusão destrutiva. Eggers desconstrói o Grande Irmão de George Orwell através das distrações propostas por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo e revela um Círculo que mais lembra aqueles visitados por Dante na ida ao Inferno em sua Divina Comédia. A saga de Mae desce, inclusive, aos subterrâneos onde antevê um futuro nada amistoso para o resto do mundo – enquanto sua amiga Annie perde-se dentro do delírio de onipresença da empresa que antes comemorava.

É uma visão pessimista e amarga do mundo digital, especificamente da forma como abrimos mão de nossas liberdades e individualidades para alimentarmos enormes máquinas de invasão de privacidade. Eggers foi criticado por desenhar uma caricatura nefasta do Vale do Silício, mas a crítica só reforça a carapuça de quem é criticado.

Projetando um futuro im­­preciso e breve, sem precisar datas para o Círculo para não perder a validade em poucos anos, Eggers não está falando de uma realidade que virá. Ele está falando de nossos dias, repetindo o velho clichê de que a ficção científica finge antecipar o futuro para dissecar o presente. Se não parece ficção científica é porque o século 21 parece ser o da não-ficção científica – carros que se dirigem sozinhos, dinheiro eletrônico, ciberguerra e a vigilância online são parte do noticiário atual, não de previsões futuristas. E se a realidade digital de nossos dias não lhe causa um mínimo mal-estar pessimista é porque você não está olhando direito.