Planos-seqüência clássicos

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E por falar em plano-seqüência, separei alguns clássicos pra matar o tempo. Começando pelo principal deles, o ousado início de A Marca da Maldade, de Orson Welles. Se ele inventou o cinema em Cidadão Kane, com esse filme ele inventou o cinema B:

Tem vários outros aí embaixo:

 

Dario Argento 2009

O mestre do horror italiano está para lançar Giallo, falado em inglês. Mesmo com o Adrien “só tem uma expressão” Brody encabeçando o elenco, é bom lembrar que estamos falando do sujeito que fez a ponte entre Hitchcock e o cinema de horror, criando todo um subgênero incomparável, o giallo – que significa “amarelo” em italiano (escrevi mais sobre isso quando falei da trilha sonora que o grupo Goblin escreveu para o livro Suspiria).

Suspiria – Goblin

Outro texto ressuscitado.

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Dario Argento é comumente associado à grande cinematografia e à cúpula do cinema de horror, ganhando adjetivos suntuosos como “o Hitchcock gore”, “Walt Disney ao contrário” ou “o Visconti da violência”. Mas seu perfeccionismo obsessivo e insistência na originalidade artística foram muito além do cinema. E fora da sétima arte, um de seus grandes feitos foi ter transformado uma banda italiana que imitava grupos de progressivo inglês numa versão jazz-funk de um grupo formado por integrantes do Pink Floyd (Gilmour e Wright) e do Black Sabbath (Butler e Ward) instrumental e proto-eletrônico que faria as trilhas sonoras de seus principais filmes.

O Goblin era uma espécie de supergrupo do prog italiano, uma cena que, como boa parte dos progressivos europeus continentais, se limitava a copiar o que o Genesis, o Yes e o Emerson, Lake and Palmer faziam. Formado por integrantes de bandas de nomes como Rivelazione, Ritratto di Dorian Gray, Etna e Era di Acquario, o quinteto seguia a formação clássica das bandas do gênero: Tony Tartarini nos vocais, Claudio Simonetti nos teclados, Massimo Morante nas guitarras, Fabio Pignatelli no baixo e Walter Martino na batera. Se apresentavam como Cherry Five e, depois de serem contratados pela gravadora Cinevox, foram apresentados a Argento, que procurava um artista para compor a trilha de seu novo filme.

Argento começou bem no cinema, graças à influência do pai, o produtor Salvatore Argento, que colocou o filho no ramo com o cargo de roteirista. Esperto e com cinema tatuado no DNA, Dario logo conseguia destacar-se no negócio, especialmente quando colocou o ponto final no roteiro de C’era Una Volta Il West (Era uma Vez no Oeste), de Sergio Leone, em 1968. O feito lhe deu a oportunidade de crescer na carreira e no ano seguinte, lançava-se na direção, filmando os três primeiros marcos do thriller italiano: L’Uccello dalle Piume di Cristallo (O Pássaro das Penas de Cristal, de 1969), em que a testemunha acidental de um homicídio ocorrido numa galeria de arte moderninha o transforma em alvo do assassino, e Il Gatto a Nove Code (O Gato de Nove Caudas, de 1970), onde um assassino com um cronossomo a mais é procurado em um hospital, e Quattro Mosche di Velluto Grigio (Quatro Moscas de Veludo Verde, de 1971), em que um baterista de uma banda de rock é perseguido por um psicopata de terno preto. Considerada sua “trilogia animal”, estes três filmes estabelecem o nome de Dario Argento como um dos mais importantes do novo cinema italiano. Além de estabelecer um gênero novo (o suspense) e aclimatado para o público de seu país (embora suas histórias passem em outros países), Argento se mostra um diretor rebuscado, esteta, perfeccionista. Planos e cortes de cena sugerem que o diretor assistiu muito Hitchcock em seus anos de formação, e a tensão psicológica é seu principal vínculo com o espectador. A trilha sonora dos três filmes ficou a cargo do lendário Ennio Morricone, dando o ar clássico e formal que os filmes pediam.

Estabelecido, Argento queria mudar. Inspirado pelo tipo de gênero que desenvolvia no cinema, resolve ir além. Se dispõe a entrar num universo há muito infiltrado na cultura italiana, onde sexo, violência e o sobrenatural convivem naturalmente com o dia-a-dia das pessoas, mesmo que de forma velada e mascarada. Procurando o sentido da sanidade nos porões da psiquê humana, o gênero “giallo” (amarelo, em italiano) reunia elementos de horror, suspense, policial e conspiração política. Ele entra no imaginário do país graças à editora Mondadori, de Milão, inspirada pelos pulps norte-americanos, decide publicar uma série de livros baratos com histórias que misturavam acontecimentos extraordinários – quase sempre violentos e brutais – acontecidos com pessoas comuns. Não havia nome para a coleção – ela era reconhecida graças às capas amarelas dos livros.

Logo, “giallo” significava todo o gênero que prendesse a atenção popular graças a choques de possibilidades improváveis descritas com requintes de crueldade. A razão da popularidade do “giallo” era o aspecto rotineiro das histórias – não haviam monstros do horror (como vampiros ou lobisomens) nem detetives intrépidos (e sim policiais que tremiam frente ao perigo). Logo, ele se tornou uma referência popular italiana e foi tratado como um gênero em si mesmo, criando autores de renome internacional – como Leonardo Sciascia e Umberto Eco -, que partiam da rotina italiana para os extremos da imaginação.

Mas por mais que tente-se definir “giallo” como um gênero, ele não é descrito por parâmetros claros. É como “brega”, “pop” ou “world music” – adjetivos flexíveis para determinar estados de espíritos que mudam com o tempo. Ele varia de acordo com a demanda popular, com o espírito coletivo da época, com as ansiedades e expectativas da população leitora, podendo tornar-se meramente policial ou político até chegar aos limites da violência

E era lá que Argento queria ir. Enquanto foi desenvolvendo sua cinematografia, percebeu o efeito que as cores fortes provocavam nos espectadores de filmes, e queria ir lá. Para isto, deixaria de lado a sugestão e o suspense de seus primeiros filmes e se entregaria ao horror explícito. Quanto mais gráficas as mortes, mais saturadas as cores. E aproveitando-se de ter ganho a consciência do espectador através de um tratamento de choque de cromoterapia aplicada diretamente aos olhos, forçava o vínculo inicial – o terror psicológico – ao abismo da sanidade. E em 1973, fez dois filmes-laboratório antes de aplicar suas novas teorias à película: La Cinque Giornate (Cinco Dias em Milão, uma sátira sobre a agitação política em 1848) e La Bambola (A Boneca, sobre a caçada a um serial killer). Ambos filmes tiveram sua trilha escrita pelo compositor Giogio Gaslini, que emulava em termos o trabalho que Morricone havia feito nos três primeiros filmes de Argento, com um pé no jazz.

Mas quando começou a filmer Profondo Rosso (Vermelho Profundo), em 1974, a trilha de Gaslini realmente comprometia o resultado final. Tentando acompanhar o raciocínio do diretor, ele radicalizou o aspecto de sua música que mais tinha de talentoso – a referência jazzística – para a trilha do novo filme. Mas enquanto as imagens evocavam força e intensidade, a trilha de Gaslini se limitava a propor harmônicas ou tônicas descendentes. Dario não queria jazz e explicou-se a seu compositor. Usaria a trilha escrita pelo autor, mas com outro tipo de interpretação.

O filme começa como um suspense tradicional de Argento, que aos poucos vai assumindo novas cores – especialmente o vermelho, claro. Saturando o Technicolor, ele consegue um efeito surreal sobre as cenas de violência, as mais gráficas da história do cinema, até então. Disposto a fazer o espectador sentir dor através da indução visual, ele entrega suas vítimas ao sofrimento corriqueiro, sempre levado ao extremo. Por isso, nada de armas de fogo, aparelhos de tortura ou líquidos corrosivos. Argento prefere incitar a dor através de situações comuns ao público médio. Por isso, uma faca é usada mais para dilacerar do que para esfaquear; por isso cabeças batem em quinas de mesa; vidros quebrados retalham pessoas; água fervente é usada como arma. Usando o mesmo David Hemmings que Michelangelo Antonioni usou em Blow Up (1966) como protagonista, Argento espera que o espectador esteja preparado para o mesmo tipo de imersão cinematográfica do clássico filme sobre a Swinging London. Só que em vez de entrarmos na mente egoísta de um fotógrafo sórdido, estamos entrando num universo de dor e horror.

Estes dois elementos ganham pequenas óperas visuais no decorrer do filme. Sempre que o roteiro original pede um determinado fôlego, o diretor obriga o público a ser apresentado a outra forma de narrativa. Menos polida e mais agressiva, ela é filmada com muita intensidade e distorção de imagem e cores, ganhando contornos de pesadelo psicodélico, a pior bad trip da história.

É aí que entra o Goblin. Ou melhor, o Cherry Five, como ainda era conhecido na época. Trabalhando sobre as melodias compostas por Gaslini, eles repetem a troca de ambiente proposta pelas cenas de horror. Começa uma das parcerias mais sólidas da história do cinema. Disposto a aterrorizar a audiência musicalmente, o Cherry Five se entrega a jam sessions de funk psicodélico pesado, com influências como Jimi Hendrix, Black Sabbath, Blue Cheer e o Bitches’ Brew de Miles Davis escancaradas. Casando esporros elétricos com cenas cheias de sangue e sofrimento, Dario Argento e antiga banda progressiva conseguem efeitos audiovisuais que inspirariam várias gerações de cineastas e músicos.

O grupo assina a trilha de Profondo Rosso como Giorgio Gaslini & The Goblins e o disco segue o enorme sucesso de público que o filme, lançado em 1975, transformando o grupo em um nome popular no pop italiano – algo que os integrantes do Cherry Five sequer imaginavam. Aproveitando o que achavam ser seu único momento de fama, Martino e Tartarini deixam o grupo pouco antes do embarque para a primeira turnê italiana depois do disco. Os dois formariam o conjunto Libra e a banda, agora rebatizada apenas Goblin, recruta Agostino Marangolo para a bateria – que, experimentando e muito com ritmo e percussão, permite que o grupo atinja novas fronteiras musicais. É com esta formação que gravam o disco Goblin, em que estabelecem o método experimental usado nas gravações como novo som do grupo. Lançado em 1975, Goblin, o disco, não fez o mesmo sucesso de Profondo Rosso e a banda, frustrada, quase acabou. (Vale checar a atordoante viagem sci-fi funk “Snip Snap”, conduzida com dois tecladões elétricos).

Argento de novo entra na história e força a banda a trabalhar juntos novamente, desta vez compondo a trilha para seu novo filme, Suspiria, antes mesmo de qualquer tomada ser realizada. Suspira começa como uma tentativa de adaptação de um ensaio de Thomas DeQuincey sobre “As Três Mães” – bruxaria pesada. Mas logo a adaptação se transforma num conto de fadas moderno, que assiste à dançarina Suzy Banyon descer às profundezas mais assustadoras de sua existência, quando deixa os Estados Unidos para estudar numa assustadora academia de dança na Alemanha. Para encurtar a história, a academia é um covil de bruxas e sua diretora – Elaina Marcos, a própria Mater Suspirion.

O segredo do filme é que a saturação do Technicolor – amarelo, azul e vermelho – é constantemente forçada, sem a separação de “vida real” que Profondo Rosso fazia, comparando as cenas mais leves com as mais violentas. Em todo o filme, o vermelho, em especial, é vermelho demais, artificial demais, e ele está em todo o lugar: tapetes, cortinas, paredes, vinhos, tijolos, esmaltes e, claro, sangue. Aliado à atmosfera germânica caricata da academica de dança, o vermelho nos joga no meio de um conto de fadas teutônico, cheio de personagens bizarros, mulheres sombrias e até um criado corcunda.

Com a trilha de Suspiria, o Goblin faz seu melhor disco. O jazz-funk psicodélico ganha mais nuances e sai do formato rítmico tradicional para explorar novos ares. Assim, a faixa título pode remeter a “One of These Days” do Pink Floyd, mas a melodia infantil que inicia a faixa e os murmúrios e gritos abafados (“Witch!”, quase infantis), a levam para o sobrenatural. E assim segue o disco: um pé no experimentalismo assustador, outro no rock pesado e improvisado. “Witch”, a segunda faixa, remete a uma “Carmina Burana” ainda mais mundana e hostil, com gritos de pavor em vez do coral lúgubre. “Sighs” mescla ecos desencarnados, gritos inumanos e um violão repetitivo, verdadeiro mantra do inferno.

O lado B do disco pega mais leve. A base eletrônica de “Markos” permite o grupo entrar em uma espécie de bebop eletrônico sem música, com uma percussão espacial que remete à Arkestra de Sun Ra. “Black Forest” e “Blind Concert” seguem prerrogativas tradicionais do jazz funk, a primeira mais contemplativa e a segunda mais ágil, criada em torno de uma base de piano fantasma, que surge ocasionalmente pelo andar da faixa. A inocente “Death Valzer”, uma valsa tocada apenas ao piano, entre o boogie-woogie e a melancolia é o clássico banho de água fria que compositores de terror jogam no espectador ao final do filme.

A trilha, como o filme, foi outro grande sucesso e selou a carreira da banda ao lado do diretor, que ainda colocaria música em vários clássicos de Argento, como Inferno (1978), Zombi (1978), Tenebrae (1982) e Phenomena (1984). A banda acabou em 1985, e seus integrantes seguiram em erráticas carreiras solo (apenas Simonetti se estabeleceu como compositor de trilhas sonoras). Mas o status cult de Dario Argento e a febre de horror que tomou o mundo pop no final dos anos 80 e começo dos anos 90, reestabeleceram o Goblin como uma das bandas mais assustadoras a fazer música para cinema. Do lado de Suspiria, apenas os Tubular Bells de Mike Oldfield (a trilha sonora de O Exorcista), o Exorcista II (de Ennio Morricone) e os “ch-ch-ch… ah-ah-ah…” de Sexta-Feira 13, conseguem meter tanto medo.