Triste a notícia da partida de um dos maiores articuladores da cultura brasileira das últimas décadas. Danilo Miranda transformou o Sesc de São Paulo não apenas em uma força de produção cultural para além da parca visão do mercado de entretenimento como foi um dos principais fomentadores dos alicerces da cultura do Brasil, investindo tanto em infraestrutura quanto em catálogo, em fomento e educação, em acervo e abertura para novos nomes, tanto do palco quanto dos bastidores. Mostrou que a indústria e o comércio podem coexistir com arte e lazer sem detrimento mútuo e mudou a cara da produção cultural brasileira, desde seus agentes mais básicos até superproduções, passando por parcerias entre instituições públicas e privadas e conexões com a alta cultura de todo o planeta. A cultura brasileira seria completamente diferente – mais fraca, menos ousada e mais servil – sem sua presença. Salve seu Danilo, fará falta!
O Mídia Tática Brasil deu início aos seus trabalhos nesta sexta, 7 de março, com uma mesa redonda histórica – literalmente. Afinal, foi a primeira vez que duas forças antagônicas do pensamento pós-eletrônico se encontraram pessoalmente: de um lado, o americano John Perry Barlow, vice-presidente da Electronic Frontier Foundation e autor Declaração de Independência do Ciberespaço; do outro o inglês Richard Barbrook, do Hypermedia Resource Center e autor do Manifesto Cibercomunista. Só isso bastaria para a noite no Sesc Avenida Paulista ser rotulada com o adjetivo citado no início, mas se levarmos em consideração que tal encontro aconteceu no Brasil, num evento de natureza inédita por aqui e com a chancela do governo federal, podemos crer que as implicações são muito mais profundas do que em qualquer outra circunstância – especialmente para nós, brasileiros.
Mas o que deveria ser um embate de forças e idéias, tornou-se um motivo para ambos defenderem seus pontos de vista ao mesmo tempo que espezinhavam-se mutuamente. Tirando todo o debate ideológico e informacional, o que se assistia era à velha arenga entre ingleses e norte-americanos: um acusava o outro de ser radical demais, caricato demais, previsível e ingênuo demais. Cada um à sua maneira: Barlow exibindo aquele showmanship ianque que substitui o carisma por uma arrogância sarcástica [“De onde eu venho, do Wyoming, ser chamado de stalinista é um insulto”, depois que Barbrook apenas citou o stalinismo como parte do cânone do comunismo]; Barbrook arregalando os olhos à cada declaração de efeito do americano, engolindo gargalhadas em tom de desprezo e cuspindo sua franqueza britânica como o punk acadêmico que é [“Deus me perdoe por concordar com John Barlow”, disse antes de concordar com o óbvio de uma proposição do público – que a fome seria um problema mais urgente que a inclusão digital]. O clima tenso e animoso era cortado pelas piadas populistas de Barlow e pelos comentários irônicos de Barbrook.
Sentado na ponta à esquerda da mesa, Barlow é, fisicamente, o que aconteceria com Chuck Norris se ele se tornasse pastor evangélico de TV. Sua atuação era puro showbusiness, naquele tipo de entonação “como eu sou foda” que o Jô Soares faz para agradar sua claque. Parte do público [auditório lotado, gente em pé e nos corredores], deslumbrou-se com o papo furado caubói: “Fiz parte de uma banda, que não é muito conhecida aqui no Brasil… O Grateful Dead”, “Eu coloquei o Timbuktu online”, “Não fui a Davos este ano”. Jocoso, defendia o ciberespaço como um fim em si mesmo, um universo paralelo que deve adequar-se à realidade offline.
Já Barbrook, no canto direito, parecia uma cruza de Ken Kaniff [um dos personagens sórdidos do Eminem] com um dos caras do Madness. Chapeuzinho de palha e blaser um número menor, movimentava-se constantemente durante o discurso de Barlow. Dirigia-se rispidamente ao microfone, falando em tom sério quando apresentava os conceitos de sua Gift Economy e mostrava esgar ao discordar do que seu colega de mesa propunha. Insistia constantemente que não há diferença entre o ciberespaço e a vida real, que um é apenas a projeção do outro; enquanto Barlow filosofava sobre um ser como a mente [o ciberespaço] e outro como o corpo [a realidade].
Ficaram trocando farpas, Barbrook se referindo à Barlow como neoliberal e Barlow chamando Barbrook de nervosinho. Mas não deixa de ser notável o fato de Barlow reduzir a internet à lógica capitalista, desprezando conceitos fundamentais da rede em prol de opiniões controversas como “se a Internet fizesse alguma diferença, eu estaria preso” [como disse ao Pedro Dória, do Nomínimo]. Barbrook contrapôs-se de imediato: “Se a internet não fizesse diferença, eu não estaria aqui”.
Parêntese para o ministro: Gil, que mediava o debate, no centro da mesa, veste bem o traje de ministro da cultura, mostrando-se desenvolto para abordar as ramificações da discussão, todos parentes do tema central, inclusão digital. Mais do que isso, traçou paralelos didáticos a respeito de proteção de patentes e direitos autorais eletrônicos e aproveitou uma deixa para registrar em público sua opinião sobre a reforma da previdência [“se formos nos basear em direitos adquiridos, a escravidão não teria acabado”].
Constantemente bilíngüe [brasileiramente britânico], mostrou-se um tanto equivocado sobre alguns conceitos [não é possível chamar de “ciberanarquista” um sujeito que defende o direito de propriedade [como se referiu a Barlow], nem dizer que “o capitalismo deu certo” em mais de 200 anos e “o comunismo deu errado em menos de 80”]. E, claro, aproveitou o microfone para cantarolar [“vestiu uma camisa listrada e saiu por aí…”, cantou à menina de camisa listrada que recolhia as perguntas do público], o que eu, pessoalmente, acho do caralho. Mídia tática é isso aí.
Mas se como ministro Gil foi correto, o mesmo não pode se dizer de sua atuação como mediador. Descaradamente puxou a sardinha pro lado de Barlow, a quem servia de anfitrião na semana passada. Os dois trocavam elogios como velhos camaradas e em alguns momentos o ministro deixou escapar o desprezo por alguns conceitos de Barbrook. Mesmo na mediação propriamente dita, quando se dirigia aos dois a fim de confrontar algum tema, virava o corpo para o lado de Barlow e terminava o debate concordando com o amigo. Não deixa de ser irônico o fato de Gil ter passado boa parte do debate voltado para a direita.
Fossem apenas as inconveniências ideológicas dos gringos, até passaria. Mas Gil falhou ao não estender o debate aos outros presentes: Danilo Miranda, do Sesc; João Cassino [que veio no lugar de Beá Tibiriçá], dos Telecentros, Ricardo Rosas, da organização do Mídia Tática, e Evandro Prestes, do Online Cidadão, apenas comentaram em uma ou outra oportunidade.
O debate ficou mais tenso quando recorreram ao tema da pirataria – Barbrook levantando a bandeira preta ao aplaudir a pirataria como vitória do povo sobre as corporações; Barlow baixando o polegar ao simplificá-la como crime organizado. Levantou-se a questão sobre a troca de arquivos via internet, que acabou respingando em Gil que, ao ser confrontado por uma pergunta do público que pedia a opinião sobre do ministro sobre o assunto, “como integrante da indústria fonográfica”. Encurralado, mostrou o crachá: “Eu, como ministro, tenho que defender a lei, o estado de direito”, safou-se, salientando que, no entanto, as leis precisam ser revistas devido à mudança dos meios.
Interessante observar que, a despeito de suas posições o ciberespaço em relação à realidade, os textos-chave de John e Richard proclamam seus conceitos básicos usando paralelos com o mundo real: Barlow emulou a Declaração da Independência de seu país, Barbrook o célebre Manifesto Comunista escrito em Londres por Karl Marx e Friedrich Engels. Ambas analogias são conservadoras e reacionárias [mesmo que Barbrook tenha usado sua referência ironicamente], nenhuma vislumbra um texto-chave a partir de uma base nova e eletrônica – nada de paralelos com o morto-vivo universo da palavra impressa.
O debate terminou como o fim de uma guerra de nervos: sem conclusão, conceitos em aberto, os participantes virando-se para lados diferentes. Mas vale sublinhar aqui a experiência descrita por Evandro Prestes, do Online Cidadão, que não apenas ilustra o papel do Brasil na nova cultura eletrônica, como prova que o uso da cultura como intermediação dos conceitos de tecnologia e liberdade pode ser a saída mais eficaz para este embate. Ele contou como a grande maioria da população que não é familiarizada à internet se sente desconfortável com as regras impostas pelo computador, deixando pouco espaço para a intuição. Até que ele encontrou um sujeito feliz, passeando pelas páginas, clicando nos links, abrindo novas janelas, pulando de site em site. Entusiasmado, começou a conversar com o novato internauta que, ao perguntado sobre o que ele estava lendo, respondeu, sem pestanejar, que não sabia ler. O fato, que fez a maioria dos presentes na palestra apiedar-se do caso citado, no entanto foi encarado de outra forma por Cassino: “Ele estava desenvolvendo todo o deslumbre, o lado lúdico, e entusiasmado com o universo do computador”, coisa que os outros não conseguiam – pois têm dificuldade de ler. E, alfinetando não apenas o ministro presente como o público do debate, concluiu que “inclusão digital também é para vocês, da cultura”. Ao tratar a cultura como algo alheio a seu universo, Prestes mostrou o imenso abismo no debate eletrônico brasileiro – e, ao mesmo tempo, jogou a corda para o outro lado, disposto a construir a ponte. O lance é saber se alguém vai pegar.