A renascença de um jornalismo sobre música

Na minha primeira colaboração para a revista da UBC – na edição número 41 – falo sobre como as transformações tecnológicas acabaram por virar o jornalismo que cobre música do avesso – pulverizando-a em centenas de novos autores que ainda não se conversam nem se organizam, por isso não são vistos como uma força importante, nem por si mesmos, muito menos pelo público.

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A crítica de música nunca esteve tão viva

O estado de confusão e a sensação de fim de ciclo são sintomas de uma nova fase da produção jornalística musical brasileira, que está prestes a renascer em outra escala

É comum ouvirmos dizer que a crítica musical ou jornalismo voltado para a música desapareceu e que estas atividades, que antes eram resumidas diariamente nos cadernos de cultura dos principais jornais do país, perderam espaço para a agenda cultural, pauta onipresente nestas mesmas publicações.

Isso é uma generalização. Há uma profusão gigantesca de textos jornalísticos ou de opinião sobre a igualmente extensa produção musical brasileira. Mas se antes só precisávamos acompanhar determinados veículos para saber o que estava acontecendo, agora precisamos fazer um verdadeiro trabalho de mineração para descobrir onde se discute a produção musical brasileira atual, quem a discute e em que formato acontece esta discussão.

No princípio eram as revistas independentes e fanzines, que aos poucos migraram para a internet e se transformaram em revistas eletrônicas (ou e-zines). No final do século passado veio a invenção do blog – inicialmente um diário online de cunho pessoal -, que permitia que neófitos da rede pudessem publicar seus conteúdos sem entender de tecnologia e das linguagens eletrônicas que transformavam um texto em um site. Blogs e sites começaram a conviver numa espécie de realidade paralela que se expandiu em razão exponencial com a chegada das redes sociais, que impulsionaram ainda mais a autopublicação. E logo esta discussão não era nem mesmo mais escrita – e mesmo quando era, tornava-se fragmentada.

Estou falando de listas de discussão por email, fóruns online, comunidades digitais, grupos de interesses específicos no Facebook e discussões encadeadas no Twitter, canais no YouTube, perfis no LinkedIn, podcasts, textos no Medium, grupos no WhatsApp. Além da produção que foi para outras mídias para além das digitais: jornalistas que viraram biógrafos ou autores de livros sobre música, que transformaram críticas em teses acadêmicas, que realizam entrevistas com artistas em frente a um público pagante, que foram para a frente das câmeras ou para os microfones das rádios. A vasta produção de jornalismo e crítica musicais no país expande-se para atividades que não eram consideradas jornalísticas, como discotecagens, cobertura em mídias sociais, curadorias e direção artística.

O jornalismo passa, nesta segunda década do século, por uma situação semelhante à da música no início dos anos 2000. Quando o MP3 e o compartilhamento P2P permitiu que as pessoas tivessem acesso gratuito a todo o tipo de música, a música digital saiu de sua infância e entrou em uma puberdade que, como tal, tinha tons dramáticos. Era o apocalipse: o fim do mercado fonográfico como o conhecíamos, o fim das grandes gravadoras, o fim do CD e até falou-se no fim da música.

A mesma coisa acontece com as notícias, só que em vez de um software, a ameaça são as redes sociais – especificamente o ecossistema do Facebook (principalmente o WhatsApp). Ali o público não paga por notícias e as consome regurgitadas por amigos, parentes e desconhecidos, que copiam e colam textos sem dar a origem da informação, que publicam informações falsas como se fossem verdadeiras e criam novos vínculos de confiança, abandonando os velhos títulos que balizavam o mercado das notícias.

Os jornais impressos são como as gravadoras no final do século passado: lidam principalmente com um produto (o jornal ou o CD) e entram em parafuso com a novidade que espalha notícias para além de seus domínios. A fragmentação da sociedade em milhares de nichos a partir da popularização da internet, fez que ela perdesse eixos centrais na sustentação de realidade que determinavam parâmetros seguidos de forma coletiva globalmente e o jornalismo talvez tenha sido uma de suas vítimas mais emblemáticas. Como aconteceu com a indústria, a arte, a política e o entretenimento, a indústria da comunicação foi frontalmente atingida pela internet e pelas redes sociais. Rádio e TV sobreviveram às duras penas, enquanto a mídia impressa parece fatalmente ferida.

Mas isso é uma fase. O que vem acontecendo é uma reestruturação de parâmetros que nos faz perceber que o jornalismo de outrora agia exatamente como as redes sociais fazem hoje: reduzindo as informações a um único bloco de agentes, desprezando todos os outros que não dançavam conforme sua música. As redes sociais têm a desculpa de que este padrão é robótico, seu algoritmo é dirigido pela inteligência artificial. Antes, o algoritmo do jornalismo era humano e restringia o acesso do público às novidades a partir do gosto e dos interesses de um crítico ou um editor, criando a falsa ilusão de que aquelas escolhas eram a realidade musical existente.

Isso acabou. Jornalistas encastelados em suas torres de marfim, recebendo discos e informações privilegiadas direto dos artistas e da indústria e decidindo o que o público deve ler ou ouvir é um passado quase caricato de tão distante. O jornalista corre atrás das notícias, estabelece novos vínculos com artistas e produtores e expande os horizontes de seu público. O grande desafio atual é fazer este jornalismo chegar ao público de forma sustentável – desafio semelhante que a indústria da música tinha antes desta nova era de aplicativos de streaming. E do mesmo jeito que o Spotify ainda não é a melhor solução (outras virão em breve), um Spotify de notícias também não resolverá este problema – mas pensar em caçar e distribuir esta produção jornalística em vez de simplesmente considerá-la inexistente por não vir à superfície em escala industrial é a chave para voltarmos a ter um jornalismo de música consistente – e, diferente de antes, plural, acessível, profundo e divertido. A consciência desta nova fase é o primeiro passo desta redescoberta.

Análise da trilha sonora de Super Mario World

Muito bom! Feito por um pessoal do curso de Cinema da UFPE, no Recife.

Impressão digital #0060: Crítica musical e jornalismo cultural

Minha coluna no Caderno 2 desse domingo foi sobre o debate que participei na quinta passada.

Mudança inevitável
Crítica musical e internet

Na quinta-feira da semana passada, participei do 3.º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, evento que ocorreu no Sesc Vila Mariana e trouxe nomes como o cineasta alemão Werner Herzog, o filósofo esloveno Slavoj Zizek, a ensaísta norte-americana Camille Paglia e o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez. Estive em uma mesa cujo tema era A Produção Musical Contemporânea e a Crítica Especializada e, comigo, participavam os jornalistas Pablo Miyazawa, editor da versão brasileira da revista Rolling Stone, e Marcus Preto, do jornal Folha de S. Paulo, e o músico Zeca Baleiro.

Muitos podem estranhar a presença de um editor de um caderno de tecnologia – que é o que faço, caso alguém não saiba (edito o Link, publicado todas as segundas-feiras neste jornal) – em uma mesa que se propunha a discutir produção cultural e crítica musical, mas bastou o papo começar para perceber que não dá para dissociar o que está acontecendo tanto em termos de criação quanto de avaliação – artistas e críticos estão sendo igualmente afetados pelo impacto que as mídias digitais (não só a internet, mas principalmente ela) vêm causando em suas atividades.

Pablo falou da dificuldade em falar de lançamentos de discos numa época em que estes aparecem primeiro na internet e depois nas lojas – antes, até mesmo, de chegar aos jornalistas, que, em outros tempos, recebiam os álbuns previamente para que pudessem publicar suas matérias simultaneamente ao lançamento comercial. Zeca Baleiro concordou e disse que a melhor crítica musical feita no Brasil atualmente – e a pior – vem acontecendo longe dos jornais e sim em blogs.

Citei que tive a felicidade – ou melhor, a sorte – de cobrir música na época em que o Napster apareceu, em 1999. O primeiro programa de trocas de MP3 revolucionou a forma como consumimos música até hoje e em menos de um ano depois de seu lançamento, seus criadores já sentavam em bancos de tribunais sendo acusados de ter facilitado a pirataria.

E ao mesmo tempo em que os autores do software eram processados, o Radiohead lançava seu quarto CD, que vinha sendo aguardado devido ao sucesso de seu antecessor, OK Computer. Só que, pela primeira vez na história, aconteceu um fenômeno novo: o disco apareceu na internet meses antes de ter sido lançado comercialmente. Sem refletir, a indústria cravou que o disco seria um fracasso de vendas, pois muitos dos fãs que comprariam o disco já o teriam em casa, em seus computadores, de graça. Para piorar, Kid A, o disco que havia vazado, era experimental e hermético. Mas a indústria errou – e o álbum foi um dos mais vendidos daquele ano, mesmo tendo aparecido gratuitamente antes de ser lançado.

As mudanças que vêm sendo impostas pela digitalização quase sempre são recebidas com ceticismo ou temor, sem que se pense em como os ouvintes – agentes culturais sem nome, mas tão importantes quanto a indústria, a crítica e o artista – vão recebê-las. Por isso, me sinto felizardo por ter começado a cobrir tecnologia a partir de mudanças que ocorreram na área cultural. E, assim, posso participar de uma mesa sobre crítica musical, mesmo que não exerça essa função.

A produção musical contemporânea e a crítica especializada

O Sesc foi sagaz e já subiu online a íntegra (quase duas horas!) da mesa que participei ontem no 3º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, realizado pela revista Cult, em que conversei sobre o papel da crítica musical nos dias de hoje, ao lado do Marcus Preto, do Pablo Miyazawa e do Zeca Baleiro. Põe o fone, aperta o play e deixa o papo rolar. Vale inclusive passear pelo canal do YouTube deles, que tem todas as íntegras das mesas do evento. Muito bom.

Pedro Alexandre Sanches mandando a real

Bravo, Pedro!

A nova crítica musical

Essa também saiu na última Simples. Mas é coluna, não é matéria.

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Era uma vez um tempo em que as pessoas não sabiam se informar. A era eletrônica tirou o começo-meio-e-fim das coisas e percebemos que informação é produto. Esteja no Jornal Nacional ou no Orkut, é só o final de um processo. Não nos iludimos tanto porque o alerta de Lenin (“para saber os motivos, procure saber quem se beneficia”) transformou-se em equação de reconhecimento do inconsciente coletivo, que percebe o quanto foi enganado.

Assim, vemos a dissolução do crítico de música. O sujeito que, numa penada, lança uma banda ou destrói as vendas de um disco, está com seus dias contados. Não porque está em vias de extinção, mas porque suas prerrogativas básicas tornaram-se requisito mínimo para qualquer pessoa, graças à internet. Um bom dia dedicado à frente do computador pode lhe transformar num especialista em quase tudo – no caso da música, tudo.

Escolha um artista e passeie pelos AllMusic, Wikipedia, Pitchfork e NME da vida, baixe discos, veja fotos, filmes, e sua fachada está pronta. Foi-se o tempo em que poucos semanários ingleses ditavam a moda. O mundo girava em torno de LA, NY e Londres, porque eram as únicas cidades capazes de exportar notícias locais como produto internacional.África, América Latina, Ásia? David Byrne e Peter Gabriel ainda não tinham inventado a world music.

A internet mudou isso. Hoje qualquer um pode produzir conteúdo sem a necessidade de um intermediário para publicar e distribuir. Todas as músicas do mundo estão à mão de qualquer um. E percebeu-se que o crítico musical é apenas um sujeito com mais tempo para dedicar-se ao estudo, à leitura e à apreciação do que uma pessoa comum. Não é uma divindade encarnada (“a Crítica”), nem um guru ou uma diretriz do bom gosto. É só um cara que pode explorar seu gosto pessoal com o respaldo de um veículo de grande alcance.

Mas isso não significa o fim da crítica, pelo contrário. Como a internet é o veículo de maior alcance da história (sem contar o potencial de alcance, ainda maior), todo mundo é um crítico musical cujo gosto e preferência devem ser respeitados e nutridos. Ninguém melhor do que um especialista em algo que você não faz questão de acompanhar para te dizer o que merece atenção. E estamos todos nos especializando.

Depois eu falo mais disso.