Neil Young e eu

Eis a íntegra do texto sobre o melhor show que eu vi na vida que escrevi para o Caderno C quando ainda trabalhava em Campinas.


Clicando na foto, você pode ler o texto na página e descobrir qual foi o pior show do terceiro Rock in Rio, na minha opinião

O tempo não existe
Neil Young e o Crazy Horse fazem um show histórico no Rock in Rio 2001

“Você é como um furacão
Há calma em seus olhos
E eu estou sendo levado
Para algum lugar mais seguro
Onde está o sentimento
Quero te amar
Mas estou sendo levado”
(Like a Hurricane)

Quando Neil Young deixou o palco quase às três e meia da madrugada de domingo, o público presente sabia que havia assistido um dos maiores shows de suas vidas. Com sua rara percepção sobre a existência humana, o velho caubói conduziu os mais de cem mil espectadores da noite mais tranqüila do Rock in Rio 2001 a um universo paralelo, onde rock e realidade podem ser a mesma coisa. Esqueça a entrega messiânica do R.E.M., o freak show de Axl Rose e o teatro épico do Iron Maiden. Quando Young e seus velhos companheiros do Crazy Horse subiram ao palco, fizeram uma apresentação antológica, um dos melhores shows de rock já vistos no País. Em pouco menos de duas horas, o velho Young nos mostrou que é possível fazer rock e dizer a verdade, ao mesmo tempo.

Por que a verdade? Porque todos os aparatos do showbusiness se esfacelam à presença do pistoleiro sonoro. O Palco Mundo, hi-tech e hiperbólico, se tornou uma simples garagem caipira, com quatro peões trocando horas de ócio por um exercício artístico superior, onde melodia e barulho fazem parte da mesma linha lógica de raciocínio. Young abre mão de conceitos civilizados e medidas de tempo e espaço, transformando onde quer que esteja em seu pequeno e preciso mundo particular. Aqui, o instinto é a razão e a natureza é o fluxo vigente. Seja no maior festival de rock do mundo ou no quintal de sua casa, o velho bardo canadense não precisa de nada além de sua guitarra para explicar como a vida é simples.

Quando adentrou ao palco principal, colocou o público presente nesta realidade alternativa. A imagem, finalmente palpável a olhares brasileiros, era um clássico perene: quase dois metros de altura, um jeito desengonçado de tocar guitarra (pernas arqueadas, passos largos e trôpegos, entortando-se para os lados à medida que distorcia o som), camiseta de banda (o equivalente norte-americano de camiseta de candidato, no caso, da banda inglesa Placebo), calça jeans e um estratégico chapéu de caubói. Nas mãos, uma coleção de guitarras Gibson Les Paul tão clãssica quanto o dono. Entrou acompanhado de sua corja de bandoleiros musicais: o rotundo guitarrista Frank Sampedro, o baixista Billy Talbot e o baterista Ralph Molina. Vestidos como se estivessem indo para mais uma noitada em um bar de beira de estrada, o grupo começou a aula com “Sedan Delivery”, do clássico-mor Rust Never Sleeps.

Para delírio do público, a banda emendou o “Hey, Hey, My, My (Into the Black)”, hino country rock de celebração rock’n’roll, cantado em uníssono pela turba. Entre uma música e outra, a banda se entregava à desconstrução sonora, à distorção contemplativa, ao ruído em estado bruto. Era didático: não há diferença entre ordem e caos quando se vive a vida do jeito certo, aproveitando cada minuto, degustando cada experiência, sorvendo sentimentos e sensações independentes de sua origem.

“O amor e só o amor sobrevive”, canta com sábia experiência o cristianismo caipira de “Love and Only Love”, “o ódio é tudo que você acha que é”. A sabedoria se esconde nas entrelinhas de uma velha canção sertaneja, que canta o amor e o ódio com a mesma intensidade. A microfonia arrefecia para a brisa campestre do country americano, dando a deixa perfeita para a belíssima e clássica “Cinnamon Girl”, de seu primeiro disco com o Crazy Horse (Everybody Knows This is Nowhere, de 1971). Cada música terminava com uma seqüência de acordes bradados num mesmo ataque, como se toda vez pronunciassem um fim épico. Mas a música crescia a partir dos pedaços de ruído trepidados pela banda e inevitavelmente a coda de barulho tornava-se uma canção à parte, sem refrão, letra, introdução, solo: apenas uma parede de ruído, como se, ao desvendasse a alma por trás do esqueleto formulaico de cada uma das faixas. Nas filigranas da microfonia, poesia indizível, sentimento intraduzível, força que não se fala – se sente.

“Fuckin’ Up” voltou ao território do rock em estado bruto, para o melhor momento do show – e da minha vida neste meio, embora vocês não precisassem saber disso. A seqüência “Cortez the Killer” e “Like a Hurricane” e traduzia toda a força natural de Neil Young: a primeira faixa trazia seu hino maior de amor aos povos ditos primitivos, contando a história do colonizador Hector Cortéz, que dizimou a população asteca após ser bem recebido pela mesma. A segunda (com Sampedro ao teclado), sua maior balada de amor, a dura e recofortante constatação que amor carrega o bem e o mal, o hoje e o sempre, o pequeno e o grande. Ambas músicas se misturaram, num épico sem duração. O relógio – essa maquininha que inventamos para regrar o que não tem regra – marcaram 23 minutos ao todo, mas durante estas duas canções, o tempo parou, estático, e Neil Young o segurou na mão (com os dedos sangrando), como uma pequena e opaca gema bruta. Impossível segurar as lágrimas. “Rockin’ in the Free World” veio de brinde, para sacramentar a geração grunge (foi gravada pelo Pearl Jam) e calar a boca do lema piegas do festival. Mundo melhor, quis dizer Young, é um mundo livre. Keep on rocking.

A banda saiu e voltou com a excelente “Powderfinger”, outra de Rust Never Sleeps. “Me proteja da pólvora e do dedo”, berrava a familiar voz esganiçada, “cubra-me do pensamento que puxou o gatilho/ Pense em mim como aquele que você pensava que não iria embora tão jovem, com tanto a fazer”. A contrapartida, “Down By The River” (também de Everybody Knows…), veio em seguida, fazendo o público brasileiro cantar numa só voz o pesar da culpa de um amor mal resolvido. Felizaço, agradeceu ao público com a última, o libelo feminista “Welfare Mothers”. Ergueu sua guitarra com um largo sorriso e bateu no peito, sem dizer uma palavra ao público. Não precisava.

O tempo voltou ao normal quando as luzes acenderam, mas a lição havia sido profetizada. Para que peder-se com bobagens como dinheiro, fama, sucesso e sorte se tudo que precisamos para viver está dentro de nós? Basta descobrir o amor à vida e cultivá-lo – mas para isso, é preciso que largar tudo e voltar para o campo, pegar a esposa e demitir o emprego, plantar o dia e colher a noite numa safra atemporal. Viver é simples.

SETLIST

“Sedan Delivey”
“Hey, Hey, My My (Into the Black)”
“Love And Only Love”
“Cinnamon Girl”
“Fuckin’ Up”
“Cortez The Killer”
“Like a Hurricane”
“Rockin’ In The Free World”
“Powderfinger”
“Down by the River”
“Welfare Mothers”

10 anos do melhor show da minha vida

Mumu lembra que hoje faz uma década que Neil Young deu o único ar de sua graça elétrica em solo brasileiro, num texto altamente pessoal:

Lembro de chegar na Cidade do Rock quando tocavam os Engenheiros. Pensei: “quero ver o Neil Young da grade, vou já pra briga”. Felizmente a Liana tava comigo e disse “nah, vamos depois, vai ser tranquilo”. Quase sempre ela tá certa, então concordei. Ela tava certa. Era o menor público de todo o festival, umas 150 mil pessoas no total. Tocou o Dave Matthews e, quando terminou a Sheryl Crow, era hora da aproximação. A Liana quase sempre tá certa, mas eu não podia esperar que fosse tanto. À medida que todo mundo ia embora depois da Sheryl, comecei a ficar puto e gritar “porra, vocês estão malucos, é o Neil Young que vai tocar agora”.

E ele ainda teve a manha de ressuscitar um texto que o Tomate já havia reativado em 2008, além de achar a resenha para o show que eu mandei no dia seguinte ao show (cá o republico em um minuto), pois meus últimos dias como editor do Caderno C do Correio Popular de Campinas foram dedicados a uma semana dedicadas ao terceiro Rock in Rio, há dez anos. Depois disso, tirei férias e comecei a trabalhar em São Paulo. Nunca nem tinha parado para relacionar uma coisa com a outra, mas…

Aquele Rock in Rio foi loucaço (esse próximo não me convence, mas estou ficando velho), mas os minutos na frente do Crazy Horse se alongam até hoje perenes, sóbrios, sem idade. Ecoa até hoje na cabeça, entre os fisgões que os anzóis de seus solos de guitarra engancham na memória sonora, o mantra do velho Young sobre a vida (“It’s all one song!”) que me persegue diariamente como uma versão sangüínea da noção de Robert Anton Wilson de que não somos substantivos e sim verbos – e nos flexionamos com o tempo. O transe a que Young submeteu seu público fez levitar. Não é à toa que carrego o ingresso desse show (um cartão magnético de cor marrom anos-70) em meu patuá.

E aí vasculho meus arquivos e descubro que a capa da edição reunia os dois últimos dias do festival, o dia do péssimo show do Red Hot (cujo maior destaque, se não me engano, foi o Deftones, pra você ter uma idéia) e o penúltimo, quando Sheryl Crow abriu pro Neil Young. Enquanto a página dois foi inteira dedicada ao mestre (sob o título que eu mesmo dei, quando enviei o texto do Rio – “O tempo não existe”), a capa sugere outra onda, com o título que brinca com o jingle do festival e parece me apontar um rumo: “A vida começa agora”. Como se os anos em Campinas tivessem sido os de ensaio.

Mas acho que é inevitável voltar ao passado e revê-lo como rascunho, não?

Isso me lembra que estou há quase dez anos em São Paulo. Caceta.

Quando o Trabalho Sujo era uma central de caderno de jornal

Não resisti e resgatei umas edições velhas do Trabalho Sujo impresso, tirei umas fotos e redimensionei pra colocar aqui no site. As fotos estão com cores diferentes não por conta da idade do papel, mas porque parte delas eu fiz de dia (as mais brancas) e a outra de noite (as amareladas). Dá uma sacada como era…


Nesta edição, dois segundos discos: o do Planet Hemp e o do Supergrass.


Nesta eu falei do Panthalassa, disco de remix que o Bill Laswell fez com a obra de Miles Davis, o segundo disco do Garbage, entrevista com Virgulóides, disco de caridade organizado pelo Neil Young e uma explicação sobre um novo gênero chamado… big beat.


Entrevistei os três integrantes do Fellini (Jair, Thomas e Cadão) para contar a história da banda, numa época em que eles nem pensavam em voltar de verdade (depois disso, eles já voltaram e terminaram a bandas umas três vezes). Também tem a história do Black Sabbath, uma entrevista que eu fiz com o Afrika Bambaataa e o comentário sobre a demo de uma banda nova que tinha surgido no Rio, chamada Autoramas.


Disco de remix do Blur, disco póstumo do 2Pac, Curve e entrevista com Paula Toller.


Discos novos da Björk, dos Stones, do Faith No More e do Brian Eno.


Discos novos do Wilco (Summerteeth), Mestre Ambrósio, coletâneas de música eletrônica (da Ninja Tune, da Wall of Sound – só… big beat – e de disco music francesa), resenha da demo da banda campineira Astromato e entrevista com o Rumbora.


Resenha do Fantasma, do Cornelius, do Long Beach Dub All-Stars (o resto do Sublime), do Ringo e do show dos Smashing Pumpkins em São Paulo, com a entrevista que fiz com a D’Arcy.


Vanishing Point do Primal Scream, disco-tributo ao Keroauc, Coolio e a separação dos irmãos da Cavalera.


Reedição do Loaded do Velvet Underground, Being There do Wilco e o show em tributo á causa tibetana.


Especial Bob Dylan, sobre a fase elétrica do sujeito no meio dos anos 60, com direito à entrevista com o Dylan na época, que consegui através da gravadora e um texto de Marcelo Nova escrito especialmente para o Sujo: Quem é Bob Dylan?


30 anos de Sgt. Pepper’s e o boato da morte de Paul McCartney.


Terror Twilight do Pavement, Wiseguys (big beat!), o disco de dub do Cidade Negra (sério, rolou isso), a demo do 4-Track Valsa (da Cecilia Giannetti) e entrevista com o Rodrigo do Grenade.


Pulp, Nação Zumbi, Ian Brown e Seahorses, uma coletânea de clipes ingleses e entrevista com Roger Eno, irmão do Brian.


30 anos de Álbum Branco, show do Man or Astroman? no Brasil, primeiro disco do Asian Dub Foundation, entrevista com a Isabel do Drugstore e demo do Crush Hi-Fi, de Piracicaba.


Os melhores discos de 1997: 1 – OK Computer, 2 – Vanishing Point, 3 – When I Was Born for the 7th Time, 4 – Homogenic, 5 – O Dia em que Faremos Contato, 6 – Dig Your Own Hole, 7 – Sobrevivendo no Inferno, 8 – I Can Hear the Heart Beating as One, 9 – Dig Me Out, 10 – Brighten the Corners… e por aí seguia.


20 anos de Paul’s Boutique, do Beastie Boys, disco do Moby, demo do Gasolines e entrevista com Humberto Gessinger.


Rancid, Superchunk e entrevista com o Mac McCaughan (do Superchunk), Deftones e Farofa Carioca (a banda do Seu Jorge).


Simpsons lançando disco e a lista dos 50 melhores do pop segundo Matt Groening, segundo disco do Dr. Dre, entrevista com Júpiter Maçã que então lançava seu primeiro disco.


A coletânea Nuggets virou uma caixa da Rhino, a cena hip hop brasileira depois de Sobrevivendo no Inferno, disco dos Walverdes e entrevista com Henry Rollins.


Sleater-Kinney, Fun Lovin’ Criminals, Little Quail, demo do MQN e entrevista com o Mark Jones, da gravadora Wall of Sound (o lar do… big beat).


25 anos de Berlin do Lou Reed, disco novo do Pin Ups, disco do Money Mark e entrevista com Chuck D, que estava lançando um livro na época.


Especial soul: a história da Motown e da Stax (lembre-se que não existia Wikipedia na época) e caixas de CDs do Al Green e da Aretha Franklin.


Retrospectiva 1998: comemorando um ano que trouxe artistas novos para a década…


…e os melhores discos de 1998: 1 – Hello Nasty, 2 – Mezzanine, 3 – Fantasma, 4 – Jurassic 5 EP, 5 – Carnaval na Obra, 6 – Deserter’s Songs, 7 – This is Hardcore, 8 – Mutations, 9 – The Miseducation of Lauryn Hill, 10 – Samba pra Burro. Em minha defesa: só fui ouvir o In the Aeroplane Over the Sea em 1999. Não tente entender visualmente, era um método muito complexo de classificação dos discos, um dia eu escaneio e mostro direito.


Beastie Boys, Scott Weiland e Boi Mamão.


A história do Kraftwerk (que vinha fazer seu primeiro show no Brasil), o acústico dos Titãs, Propellerheads (big beat!) e entrevista com Ian Brown.


Segundo disco do Black Grape, coletânea de 10 anos da Matador e entrevista com o dono da gravadora, Gerard Cosloy.


A carreira de Yoko Ono, disco novo do Ween, coletânea de Bauhaus, John Mayall e Steve Ray Vaughan e a trilha sonora de O Santo (cheia de… big beat).


Stereolab, Racionais, Metallica e 3rd Eye Blind (?!).


Disco de remixes do Primal Scream, caixa do Jam, entrevista com DJ Hum, Sugar Ray e disco solo do James Iha.


Cornershop, show à causa tibetana vira disco, Bob Dylan, Jane’s Addiction, Verve e entrevista com Lenine.


Disco de remixes do Cornelius, Sebadoh, Los Djangos, Silver Jews, entrevista com o Lariú e demo do Los Hermanos.


Disco de remixes da Björk e o novo do Guided by Voices.


Disco novo do Sonic Youth, reedição dos discos do Pussy Galore e entrevista com Edgard Scandurra.


Cobertura dos shows do Superchunk no Brasil, Pólux (a banda que reunia a Bianca ex-Leela que hoje é do Brollies & Apples e a Maryeva Madame Mim), Prince e Maxwell, coletânea da Atlantic e entrevista com os Ostras.


…e na cobertura dos shows do Superchunk eu ainda consegui que a banda segurasse o nome do Trabalho Sujo para servir de logo na página.

Editei o Sujo impresso entre 1995 e 2000. Durante esse período, ele teve vários formatos. Começou como uma coluna na contracapa do caderno de cultura de segunda e em 1996 virou uma coluna bissemanal ocupando 1/6 da página 2 do mesmo caderno. No mesmo ano, voltou a ter uma página inteira, nas edições de sábado e entre 1997 e 1999 ocupou a central do caderno de domingo. Neste último ano, voltou a ter apenas uma página, nas edições de sábado. Na época em que eu fazia o Sujo impresso, eu era editor de arte do Diário do Povo e, por este motivo, participei da criação do site do jornal em 1996 – e garanti que o Sujo tivesse uma versão online desde seu segundo ano. Foi o suficiente para que ele começasse a ser lido fora de Campinas (onde já tinha um pequeno séquito de leitores, que compravam o Diário apenas para ler a coluna) e ganhasse algum princípio de moral online, que carrego até hoje.

Na época, eu dividia o gostinho de fazer a coluna com dois outros compadres – o Serjão, que era editor de fotografia do jornal e que hoje está no Agora SP, e o Roni, um dos melhores ilustradores que conheço. Os dois são amigos com quem lamento não manter contato firme, mas são daquelas pessoas que, se encontro amanhã, parece que não vi desde ontem. Juntos, éramos uma minirredação dentro da redação – tínhamos reunião de pauta, discussões sobre o layout da página e trocávamos comentários sobre os discos que eu trazia para resenhar. No fim, eu fazia tudo sozinho na página (como faço até hoje), da decisão sobre o que entra ao texto, passando pela diagramação. Sérgio e Roni entravam com fotos e ilustras, mas, principalmente, com o feedback pra eu saber se não estava viajando demais ou de menos. Nós também começamos a discotecar juntos, mais um quarto compadre, o William, e, em 97, inauguramos o Quarteto Funkástico apenas para tocar black music e groovezeiras ilimitadas, em CD ou em vinil. Não era só eu quem escrevia no Sujo (eu sempre convidava conhecidos, amigos e alguns figurões), mas Roni e Serjão, por menos que tenham escrito, fizeram muito mais parte dessa história do que qualquer um que tenha escrito algo com mais de cinco palavras.

No ano 2000 eu fui chamado pelo editor-chefe do jornal concorrente, o Correio Popular, maior jornal de Campinas, para editar seu caderno de cultura, o Caderno C, cargo que ocupei durante um ano, antes de me mudar para São Paulo. Neste ano, para evitar confusões entre os dois jornais sobre quem era o dono da coluna (e não correr o risco de assistir a alguém depredar o nome que criei no jornal que comecei a trabalhar), decidi tirar o Sujo do papel e deixá-lo apenas online. Criei minha página no Geocities para despejar os textos que publicava em outra coluna dominical, no novo jornal, chamada Termômetro. Mas, online, seguia o Trabalho Sujo -até que, do Geocities fui para o Gardenal, e isso é ooooutra história.

Um dia eu organizo tudo bonitinho, isso é só pra fazer uma graça – e matar a minha saudade.

Kid A – Radiohead

Senão me engano, essa resenha saiu no Correio Popular em pleno ano 2000, mas a Ana do Whiplash pediu pra republicar e graças a isso, consegui resgatá-la…

***

kida

Como as décadas finais de pelo menos dois séculos anteriores, os anos 1990 foram marcados por uma retrospectiva dos 90 anos anteriores, aglutinando em células compactas de conhecimento tudo aquilo que a centena de anos completa ao final da década quis dizer pausadamente. Mas a década que encerrou-se no final do ano passado foi caracterizada por outros sabores: a ironia e o excesso de informação. Associadas, estas duas qualidades despem a grande verdade sobre a sociedade capitalista às vésperas do novo milênio, um paradoxo em escala planetária que nos emburrece à medida que mais aprendemos. O saber está no ar, mas ninguém está interessado em mostrar como usá-lo.

Na música pop, estas características foram detectadas pela primeira vez pelo U2. Embora ecos destas qualidades já viessem cantando os 1990 por caminhos alternativos na década anterior (como os discos Paul’s Boutique, dos Beastie Boys; Pills’n’Thrills and Bellyaches, dos Happy Mondays; e Into the Dragon, do Bomb the Bass), foi apenas com Achtung Baby que elas se encontraram com o teor que filtrou a década. Ali estão a paixão pelo virtual frente à realidade (“Even Better than the Real Thing”), referências à história do rock (“Who’s Gonna Ride Your Wild Horses?”, “One”), paranóia (“The Fly”) e um misto de expectativa com esperança (“Zoo Station”). “Você? Você estava falando do fim do mundo”, debochava Bono enquanto mudava radicalmente o visual de sua banda, abandonando a pose de sacerdotes do rock e entrando num terreno estranho à sua antiga religião: a música eletrônica, um carnaval de ritmos e cores fundido com o preto e branco ríspido do fotógrafo Anton Corbijn. O disco de 1991, no entanto, não funcionava sozinho. Vinha acompanhado de uma extensa turnê dividida em três fases (Zoo TV, Zooropa – que acabou virando disco – e Zoomerang), que assistia a banda entre dezenas de monitores de TV e automóveis pendurados no palco, numa clara alusão à deselegância burra pré-colapso do capitalismo. Numa fantasia de caubói prateada, Bono rasgava notas de dólar enquanto, como pastor evangélico, anunciava que teve “uma visão”: “TELEVISÃO!”, berrava frente ao câmera que, do palco, registrava tudo pelas telas espalhadas no show. Juntos, a Zoo Tour e Achtung Baby deram o tom “rir pra não chorar” que acentuou-se nos anos 90.

A ironia virava fórmula e todas as mídias passaram a usá-la, primeiro o cinema, depois a TV, caindo no gosto popular e reverberando, assim, por todas as formas de comunicação. Falar a verdade era constrangedor demais – ou melhor, falso demais -, por isso era melhor fingir querer dizer justamente o oposto, finalmente, desta forma, atingindo seu objetivo. Passamos a ler textos que nos fingiam contar o contrário do que realmente queriam dizer, ouvir músicas que ridicularizavam o hábito de ser humano, ver filmes cujo verdadeiro tema só é desvendado da metade para o fim, contradizendo tudo que havia sido visto desde o começo. A propaganda passa a se ridicularizar na tentativa de ganhar crédito com o consumidor. Tudo é muito falso, todo mundo sabe; então porque não assumimos falsamente esta falsidade? Era isso que a ironia nos anos 90 significou: uma espécie de afirmação de identidade cultural às avessas, corrompendo nosso entendimento da realidade numa mão dupla, que ao mesmo tempo que acende uma vela pro sim (afirmando algo), acende outra pro não (ridicularizando aquilo que está sendo afirmado, simultaneamente). Sem um, nem outro, caímos na década do “tanto faz”, em que as pessoas passaram a fazer exatamente o que o capitalismo queria, plugando-se às necessidades consumistas como se estas fossem responsáveis pelo bem estar espiritual – não material. Até Alanis Morrissette, em seu maior hit, perguntou: “Não é irônico?”.

É neste cenário que o Radiohead surge como força disposta ao desequilíbrio. O grupo surgiu na Inglaterra no começo dos anos 90, mas só conseguiu fazer sucesso nos Estados Unidos, graças ao hit “Creep” (do LP Pablo Honey, de 93), ganhando primeiro o público, depois a crítica americana. “Você é tão fucking especial”, sussurrava o vocalista Thom Yorke, “mas eu sou uma coisa, sou um esquisito”. Só ganhou algum reconhecimento em seu país ao se levar mais a sério em The Bends, de 94, onde deixavam de falar de relações cotidianas para contemplar a sociedade moderna como um todo, num dos primeiros discos conceituais da década (tantos viriam depois). O grau de importância do grupo foi crescendo tão logo eles ganhavam intimidade como músicos, contemplando possibilidades diversas a partir do formato três guitarras (Yorke, Jonny Greenwood e Ed O’Brien), baixo (Colin Greenwood) e bateria (Phil Selway). Reinventando o rock clássico como fazia o indie rock americano na metade da década passada (com uma certa dose de ironia, claro), o Radiohead chamava cada vez mais atenção.

Até que atingiu seu auge com o clássico inato OK Computer, ácida descrição da sociedade capitalista sem ironia nenhuma. Ao reproduzir as normas do novo dia-a-dia sem se preocupar com sentido lírico (quase todas as composições do disco de 97 empilhavam referências e situações sem o comprometimento com o sentido), ia nos vestindo com a roupa do andróide paranóico que a vida consumista de hoje nos transformou. O disco também antecipava a invasão techno ao mercado que aconteceria naquele mesmo ano (com os discos Dig Your Own Hole, dos Chemical Brothers; e The Fat of the Land, do Prodigy), mas apenas nas entrelinhas – a produção sci-fi de Nigel Godrich deixava apenas um ar eletrônico no álbum. Sem contar a música em si, as progressões guitarreiras que mudavam a atmosfera das canções, dando uma dinâmica inédita ao som do grupo. Incensado pela crítica, OK Computer tornou-se padrão de excelência do rock dos anos 90.

E o que fazer depois disto? Depois que toca-se o céu, resta outro rumo senão a queda? O grupo passou a dedicar-se a uma turnê em que viu-se condicionado ao máximo do capitalismo que criticavam. Laureados como a mais importante banda de rock do mundo, o Radiohead tentou lançou um EP (Airbag / How Am I Driving?) e dois vídeos (a coletânea de clipes 7 Television Commercials e o homevídeo Meeting People is Easy) na tentativa de esgotar a responsabilidade em torno do próximo álbum. Em vão: cada produto lançado era recebido como prova que o sucessor de OK Computer vinha aí.

A solução seria eliminar os parâmetros conhecidos e assim o grupo começou a trabalhar: Thom Yorke desencantou-se com a melodia e passou a procurar alternativas rítmicas. Ed O’Brien queria um disco curto, enxuto, com canções simples e diretas. Colin preferia um álbum mais aprofundado na eletrônica, mas sem soar “techno”. Kid A (EMI) é o produto das cinco (seis, contando o produtor Nigel) perspectivas de como o grupo fugiria do formato OK Computer.

O resultado é um disco árido, tenso, pós-rock, ermo – adequado para o ano 2000. Enquanto a quantidade de informações contida no álbum anterior dava um aspecto de poluição visual ao disco, o novo álbum elimina recursos visuais em favor de uma música sem rosto, sintética, ciborgue, futurista. Mas enquanto o futuro de OK Computer era hi-tech e bucólico, o de Kid A é vago e ameaçador, como se o espírito de máquinas mortas sobrevoasse por cima de desértica paisagem pós-apocalíptica.

O disco abre com teclados lunares que reverberam ondas eletromagnéticas que funcionam como uma canção de ninar por onde Thom Yorke pode improvisar apaixonadamente a letra. “Tudo está no lugar certo”, ele canta ao começo do disco, repetindo os versos à medida que a canção se robotiza, cada vez mais. Entra a faixa-título, novos teclados (e caixa de música marcando o andamento, ao lado de uma bateria de bebop) descortinam o caminho para a entrada do vocal, um zumbido metálico que com certeza canta algo, mas em idioma indistinguível. A voz de Yorke é distorcida por um aparelho pré-histórico chamado Ondes Martenot (usado na trilha de Star Trek) e remete ao Menino A, o primeiro clone humano, como reza a mitologia radioheadiana.

Esta forma carinhosa que o grupo se refere à pioneira cópia de DNA humano posta em prática num laboratório (que poderia se chamar qualquer coisa mas é reconhecido com uma intimidade familiar) torna possível outro paralelo com Stanley Kubrick, o maestro cineasta cuja pompa e pulso firme à direção, já que OK Computer remetia instintivamente a 2001 (quando a máquina contra-ataca). No novo disco, o Radiohead contempla A.I., a ode não-filmada do cineasta à robótica, em que ele assume que as máquinas são herdeiras do legado humano, nossos descendentes. O grupo vai além e pensa no clone como descendente, a máquina perfeita projetada pela natureza e reprogramada de acordo com nossa vontade. Mas que vontade? Racional ou instintiva? O grupo deixa a resposta em aberto, por enquanto.

“The Nation Anthem” nos apresenta ao baixista da banda, Colin Greenwood, que puxa um groove funk pesado que escurece mais ainda à entrada de um time de metais reverenciando os graves pesos-pesados de John Coltrane. Em falsete, Yorke canta a vontade e a disposição de mudar, que aos poucos impregna o inconsciente coletivo: “Todo mundo por aqui / Todo mundo vai parar aqui / O que está acontecendo? / (…) / Todo mundo vai parar aqui / Todo mundo vai parar o medo / O que está acontecendo?”. Ao citar literalmente o nome do mítico disco político de Marvin Gaye (What’s Going On? – O que está acontecendo?), o grupo nos lembra que os tempos atuais são tão (ou mais) interessante que os anos 60 que inspiraram Gaye a se perguntar sobre a ordem mundial. O grupo prega decisões coletivas como a melhor forma de ir contra o individualismo robótico e passivo de OK Computer. Não é nenhum pouco diferente do que a simbólica luta anti-FMI / OMC / Banco Mundial que já nos deu notórias batalhas como em Seattle (no ano passado) e Praga (semana passada).

“How to Disappear Completely and Not Be Found” finalmente apresenta os violões, enquanto o vocalista nos lembra que o filme Matrix é na verdade uma metáfora da nossa situação atual: “Eu não estou aqui / Isso não está acontecendo”, balbucia Yorke, enquanto o disco vai ficando cada vez mais lento, atingindo seu ponto máximo de estática na instrumental “Treefingers”, entrando vagarosamente no terreno gelado das brancas vibrações eletrônicas de Brian Eno. “Optimistic” poderia ser irônica caso se referisse à sociedade (ainda mais com este título – “otimista”). Mas a paisagem que o grupo vê é pós-civilização e o otimismo a que se referem é um abandono das tecnologias, uma volta à natureza, onde a lei da selva – perfeita – reina soberana: “Os peixes grandes comem os pequenos”, canta a letra sobre guitarras psico-metálicas que poderiam ter saído de Led Zeppelin III, “tente o melhor que você pode / O melhor que você pode é o suficiente”. “In Limbo” parece apenas descritiva, ecos e guitarras dissipando conforme a paisagem é mostrada: “Estou do seu lado / Não há onde me esconder / Estou perdido no mar / Você está vivendo uma fantasia / Não se importe comigo”, num novo ataque ao individualismo.

O ritmo marcial technopop que soa através de “Idioteque”, marcando um compasso eletrônico por onde a sociedade do desperdício é cruelmente descrita, em vocais familiares (mas entrelaçados de uma nova forma) de Thom Yorke: “Deixa eu te dizer que você é o primeiro / Eu vou rir até minha cabeça sair / Eu vou engolir até explodir / Já vi muito / Já vi tudo / A era glacial está vindo”. Descreve os seres humanos como dinossauros às vésperas da extinção, porque já ultrapassaram o limite de consumo de recursos naturais. O sotaque techno (proveniente da atual obsessão do grupo: a gravadora Warp) só ajuda a entender a crítica do grupo, que vai de encontro à letargia e o subsequente estado de automação que o ser humano aos poucos vai se submetendo – o ponto central de OK Computer. Em “Morning Bell”, o grupo volta ao campo da melodia do último álbum (até certo ponto ignorado no novo disco) e como um aparelho de TV ligado durante um bocejo matinal despeja informações de forma vaga e desencontrada – “Eu não conheço o assassino”, “Onde você estacionou o carro?”, “E todo mundo mente para mim”, “Todo mundo mente nas pesquisas” e o golpe final “Todo mundo quer estar lá / Todo mundo quer ser o mesmo / Andando, andando, andando, andando”. A vida moderna é um tédio.

Kid A termina com a melancólica “Motion Picture Soundtrack”: “Pare de mandar cartas / Cartas sempre queimam / Não são como os filmes / Que nos enchem de mentiras brandas”, divaga o vocal triste e tímido do final, que enuncia um clima de felicidade mágica à Walt Disney (orquestras cheias de harpas dedilhadas) por baixo do tremor original do álbum. Estamos no meio de uma cratera, depois da bomba explodir. Esta bomba é o século 20, que se engole cada vez mais à medida que chega ao fim. Quando 2000 passar, zera tudo. É contemplando este futuro que Kid A sorri. É um sorriso estranho, não-humano, pensativo. Mas feliz e esperançoso, como há muito não víamos.