Clash – London Calling

, por Alexandre Matias

Eram quatro sujeitos briguentos, geniosos, difíceis de se lidar. Mimados como a primeira tropa da nova revolução musical e comportamental no planeta, os quatro tornaram-se ainda mais temperamentais, explodindo raiva em cima de todos com quem conviviam, incluindo eles mesmos. Mas, juntos, Mick Jones, Joe Strummer, Paul Simonon e Topper Headon tinham um entrosamento difícil de conceber mas transparente, intacta.

“Raiva pode ser poder” cantaram em seu disco mais memorável – o clássico London Calling – e seguiram este credo por toda sua curta existência, erguendo, como na gênese do rock, a bandeira da insatisfação, apatia e rebeldia de toda uma geração contra uma série de regras preestabelecidas por adultos de forma agressiva e sem meios termos. Grunhindo opiniões sobre todos tipos de política (governamental, individual, social, internacional, sentimental, existencial), o grupo traduzia os elementos básicos do rock como parte de uma revolução pessoal que, através de suas músicas, batia em todas as portas recrutando soldados da nova cruzada. “O rock da revolução”, como eles mesmos disseram, “é um estado de choque”.

Mas embora a química perfeita dos músicos combine com suas personalidades exigentes e sua imagem praticamente intacta (comparando-se apenas ao Who no quesito “rock perfeito”), o Clash começou através das mãos de um empresário, Bernie Rhodes, que quis aproveitar o vácuo deixado por mais um das picaretagens de seu rival, Malcolm McLaren. Este havia juntado quatro moleques com total liberdade para serem os piores possíveis e tocarem o mais alto que conseguissem (criando os Sex Pistols). Com eles, o empresário conseguiu o espaço que queria para lançar suas idéias e, depois de circular pelas ruas de Londres à noite, inventou a estética do punk e a vendeu para a mídia.

Rhodes havia percebido a possibilidade de McLaren estar certo e na mesma hora catou músicos da banda 101ers com da London SS, duas bandas barulhentas que lutavam por um lugar ao sol pelos squats londrinos. Da 101ers (cujo nome saiu do número do squat que eles moravam – o mesmo da sala de tortura de 1984, de George Orwell) saíram o guitarrista Keith Levene, o vocalista Joe Strummer e o baterista Terry Chimes (também conhecido por Tory Crimes, apelido que pode ser traduzido por “crimes do partido trabalhista”). Da London SS saíram o guitarrista Mick Jones e o baixista (e estudante de arte) Paul Simonon. O nome, Clash (“confronto”), era uma palavra freqüente nas manchetes dos jornais.

Levene saiu da banda logo no começo, iniciando sua carreira de outsider (sairia também, mais tarde, do Magazine e do Public Image Ltd.), Chimes substituído rapidamente por Tony James (que depois iria para o Generation X e, mais tarde, para o Sigue Sigue Sputinik), que saiu para dar lugar a Topper Headon (que havia tocado no London SS). Como um quinteto, eles entraram na primeira turnê dos Sex Pistols pela Inglaterra em 1976 – na lendária Anarchy in the UK Tour (que deu origem a grupos como Joy Division, Buzzcocks e Siouxsie & the Banshees) – e logo se tornaram o equivalente Rolling Stones dos Beatles Sex Pistols.

A princípio, a comparação era justa. Em seus dois primeiros discos (The Clash – ainda com Chimes – e Give’Em Enough Rope), o Clash era uma banda tão barulhenta como os Pistols, mas mais viscerais. Como os Stones, o Clash bebia direto na fonte da música negra: enquanto Jagger, Richards e Jones contrabandeavam discos de blues e rhythm’n’blues norte-americanos no início da década de 60, os quatro punks vinham se embebedando de música jamaicana, que ao mesmo tempo que tomava conta dos guetos londrinos vinha ganhando popularidade e entrando na mídia através de Bob Marley.

Gravaram “Police & Thieves”, de Junior Murvin, em um de seus primeiros singles, e “Complete Control” foi produzido por Lee “Scratch” Perry. Este contato com o reggae e seus afluentes deu-lhes não apenas uma noção mais pessoal e ao mesmo tempo global da noção de política que o grupo pregava em seus hinos do contra com menos de dois minutos, como funcionou como a chave para a expansão do conceito punk que o Clash abriria logo depois de gastar sua munição pesada nos discos de estréia.

Como os Sex Pistols, o Clash esgotou-se após o segundo disco. O punk tosco e primitivo contra tudo e contra todos dos dois grupos começaria a se repetir, foi a gota d’água. Os Pistols debandaram em San Francisco, depois da única e fatídica turnê pelos Estados Unidos, em que Syd Vicious furava suas mãos com cacos de vidro gigantescos só para impressionar os caubóis americanos. O Clash desviou o esgotamento criativo por culpa do reggae. Ao adotar o ritmo jamaicano, o grupo inglês logo tinha um vínculo com algo maior que a classe operária inglesa. Logo falavam de problemas mundiais, de crises internacionais e dos oprimidos em geral. Musicalmente, o reggae libertava-os dos padrões estéticos tradicionais do punk. Por um lado, a influência latina e africana os deixava confortáveis com as variantes de ritmo. Por outro, tomavam emprestado o soul e o blues que os reggaeiros surrupiaram dos EUA para transformar o ska em rock steady. E finalmente o dub os mostrou que não há limites se o assunto é experimentação em estúdio.

Assim, começaram a gravar o disco que os consagraria na história do rock. Mais do que firmá-los como sobreviventes da primeira leva do punk inglês, London Calling transformou o grupo num grupo de rock perfeito. Expandindo seus horizontes musicais à medida que o disco vinha sendo gravado, o Clash resolveu aventurar-se por diferentes terrenos sonoros, indo cada vez mais longe à medida que iam andando. E à medida que iam gravando, assistidos pelo produtor Guy Stevens (o mesmo do Mott the Hopple), desvendavam a amplitude da música popular de seus tempos e ligavam pontos e gêneros, descortinando não apenas o amadurecimento musical do grupo, mas todo um universo musical cujas partes insistiam em fingir não ser um todo. “Eclético” foi o adjetivo usado para descrevê-lo no início, mas o Clash não estava sendo várias bandas, mas apenas eles mesmos, quem eles queriam ser. Com o auxílio do tecladista Mickey Gallagher (que tocava nos Blockheads, com Ian Dury) e de um time de metais, o disco tem reggae, jazz, rockabilly, rock, música latina e a versão que a dinâmica entre quatro sujeitos de convivência difícil dava à música que eles tocavam.

“London Calling” abre às marteladas que Joe Strummer e Mick Jones dão em suas guitarras à medida que Topper Headon golpeia metronomicamente sua bateria. Paul Simonon entra escorregadio, sorrateiro, como se observasse o tumulto à distância até a introdução deixar Strummer berrar o início da música. “Londres chama as cidades distantes/ Agora que a guerra começou e a batalha vem aí”, Joe canta sobre uma Londres decadente, mas de outro ponto de vista. Se antes gritava London’s Burning como se comemorasse o caos que é o inferno, agora assiste a tudo friamente, sem emoção: “A era glacial está vindo/ O sol se aproxima/ Máquinas parando, o trigo cresce magro/ Um erro nuclear, mas eu não tenho medo/ Porque Londres afunda e eu vivo à margem”. A mensagem é simples, mas descrita de forma apocalíptica e fatal; o instrumental também amadurece instantaneamente. Mick Jones empunha sua guitarra como um verdadeiro guitar hero (mas sem solar, apenas soltando os guinchos que o punk lhe ensinou), a cozinha deixa a canção com ar pesado e sombrio, Strummer canta como se fosse o último homem vivo e eles se dão ao luxo até de alguns overdubs, como as guitarras invertidas da metade da música e o código morse ao final.

A faixa-título cai com a força de uma bomba, mas mesmo entre a poeira levantada percebemos ser uma canção correta, bem acabada, pop (tanto que o Kid Abelha surrupiou sua introdução para compor “Educação Sentimental II”, substituindo o baixo pelo sax). Não tem a agressividade de um coquetel molotov nem a violência de um porrete, mas acerta em todos os alvos em que mira justamente por tirar o punk da sociedade. Enquanto a maioria reclama das condições de vida e contra o sistema, o Clash sai um pouco da cidade e tenta observar tudo de fora. Com este distanciamento – e graças à então nascente crítica musical rock nos Estados Unidos -, eles contaram a história do rock de seu próprio ponto de vista. O punk não era uma ruptura, era apenas uma afirmação de uma certa marginalidade que sempre existiu no ser humano. A diferença é que marginal vem de “margem” e não significa ladrão ou mau caráter. Por todo London Calling assistimos histórias de personagens que negam-se a viver como o sistema quer justamente por ir de encontro ao indivíduo. E entre caubóis, soldados, apostadores, fugitivos, artistas, rude boys, rockers, mocinhos e operários, o Clash mostra que é preciso sair da vida quadrada que planejaram pra gente se quisermos ter um mínimo de verdade em nossas vidas.

“Brand New Cadillac” aponta para uma direção que não havíamos pensado no punk inglês. Enquanto o punk americano sabiam quem eram seus ancestrais (os Ramones amavam surf music e bubblegum, os Talking Heads e o Blondie era um grupo de garagem, os Feelies recitavam Beatles e Rolling Stones e Modern Lovers e Velvet Underground, o Television urbanizava a guitarra psicodélica), a versão britânica do surto de rebeldia juvenil que tomou o planeta de assalto nos anos 70 faziam questão de mostrar o quanto diferente eles eram de tudo que havia vindo antes. A primeira onda de punk da Inglaterra é tosca, mal tocada, grotesca, rude, primitiva: Sham 69, X-Ray Specs, Damned, 999.

O Clash surgiu como uma das primeiras bandas daquela tropa pioneira capitaneada por Johnny Rotten, Syd Vicious, Steve Jones e Glen Matlock. Mas à medida que esta primeira geração se viu presa no próprio estilo que haviam irrompido, uma segunda aparecia sem vergonha de dizer que eram herdeiros de alguns ídolos do passado. O Joy Division citava Velvet Underground e Doors, o Gang of Four usava Marx e funk ao mesmo tempo, as bandas da 2Tone – Specials, Madness, Selecter – desvendavam o ska dos anos 60 para a eternidade, os Buzzcocks e os Undertones vinham da fase careta dos Beatles. Podia ser um mundo novo, mas existia um passado.

Quando o Clash invade os anos 50 de jaqueta e topete empolgadíssimo com o Cadillac novinho que a namorada do protagonista acabou de comprar, eles oficializam essa tendência. Encarnam o rockabilly com uma garra não vista desde “Long Tall Sally” e Strummer encarna o mocinho que toma um pé na bunda na última cena (“Balls to you daddy”/ Ela não vai voltar pra mim!”) com perfeição, enquanto a banda, afiadíssima, galopa o rock caipira americano em direção ao punk. E enquanto todos esperam que o herói da música seja o vocalista, vemos sua namorada, com um carrão, deixando o cara pra trás.

“Jimmy Jazz” volta ainda mais no tempo e muda o espaço. Logo estamos num beco sujo e mal iluminado, onde a guitarra perambula chutando latas ao som de pessoas conversando em algum clubinho noturno. O assobio desinteressado entra em ação junto com o baixo e Strummer explica a situação: “A polícia entrou procurando Jimmy Jazz/ Eu disse, ele não está aqui, mas já esteve”. Boemia de subúrbio, jazz ainda sendo tratado como coisa de marginal, a canção dança enquanto caminha, rebolando à medida que anda, contando os tempos da música a cada passo. A primeira intervenção do trio de metais acontece nessa faixa, tirando o Clash do punk e sua filosofia de vida dos anos 70. Logo o punk não é mais bandido, nem os bandidos são os vilões, os vilões têm um charme próprio deles. “Que alívio”, agradece Strummer, “me sinto como um soldado e pareço um ladrão”.

“Hateful” entra incisiva, disposta a quebrar o ambiente sossegado que o lado A parece estar criando. Mas no lugar de um esporro punk tradicional, eles conduzem sua energia para as tradicionais batidas pesadas de Bo Diddley, numa ótima faixa, com backing vocals trabalhados de forma inteligente e criativa, que canta sobre a triste relação de pseudoamizade entre usuário e traficante de drogas: “Tudo que eu quero ele me consegue/ Tudo que eu quero ele me dá, mas não de graça/ É odiável/ E é pago e eu agradeço por não estar em nenhum lugar”. “Rudie Can’t Fail” encerra esta introdução do disco com mais um reggae na carreira do Clash. Canta sobre fugir de casa e encarar o mundo “bebendo cerveja como café da manhã”. Mas diferente dos outros reggaes do grupo, este é mais melódico, com o time de metais e com cozinha bem amarrada transpondo o Clash para o Caribe. E é o primeiro vocal de Mick no disco (“Sing Michael Sing”, ordena Strummer no começo da canção): “Fui ao mercado entender minha alma/ O que eu preciso, não tenho”.

Depois de cinco faixas que explicam didaticamente os limites do álbum, London Calling começa pra valer. “Spanish Bombs” nos leva à Guerra Civil espanhola, numa das melhores músicas do disco. Novamente com vocais de Mick Jones, a faixa descreve um cenário em que as forças militares do governo espanhol (que deram um golpe liderado pelo General Franco em 1936) aniquilavam os rebeldes anarquistas em fuzilamentos em praça pública. Jones canta sobre os “buracos de bala nas paredes do cemitério”, “o exército esfarrapado consertando baionetas para lutar em outro front” e “os carros pretos da Guardia Civil”. No refrão, em espanhol, Mick traz a revolução para o nível pessoal, declarando-se apaixonado pela causa que persegue: “Yo te quiero y finito/ yo te querda, oh, mi corazón!”. Em outras músicas ele continuará cantando entre o global e o individual, usando o amor como metáfora da política e explicando o jeito certo dos dois darem certo – com a verdade.

A voz fria e grave de Mick Jones contrapõe-se à garganta rasgada de Strummer, cujo excelente timbre o transforma numa espécie de roqueiro seminal, clássico, irmão temporão dos primeiros rockers e dos galãs de Hollywood dos anos 50. E é assim que ele entra em “The Right Profile”: “Onde eu que eu vi esse cara?/ No Rio Vermelho?/ Em Um Lugar ao Sol?/ Talvez em Os Desajustados/ Ou A Um Passo da Eternidade?”. Descreve o acidente de carro que matou o ator Montgomery Clift (“Eu vejo um carro destruído à noite/ Cortar o aplauso e diminuir as luzes/ A cara de Monty está quebrada no volante/ Ele tá vivo? Ele sente?”) e da reação de espanto dos transeuntes, que o reconhecem incrédulos: “Todo mundo diz: ‘Ele tá legal?’/ Todo mundo diz: ‘Como ele é?’/ Todo mundo diz: ‘É lógico que é engraçado/ É o Montgomery Clift, honey!”). Strummer canta a apatia do protagonista morto (“Nembutol anestesia tudo/ Mas eu prefiro álcool”) e o desespero dos fãs (tendo um colapso próximo ao fim da música), encarnando ambas formas de energia como se pudesse senti-las. “The Right Profile” também conta com metais, que dão o groove jazzy que os Stones conseguiram em Exile on Main Street.

“Estou perdido no supermercado/ Não posso mais comprar alegremente/ Eu vim aqui por causa daquela oferta especial: / Personalidade garantida”, Jones canta sussurrando sobre a base que sua guitarra havia desenhado dos oito primeiros compassos de “Lost in the Supermarket”. Tocado de forma leve e correta, este refrão acaba criando a sensação de desespero totalitarista que o capitalismo impõe (“Estou sintonizado, assisto seus programas/ Guardo cupons dos pacotes de chá/ Eu tenho meu disco de grandes hits da discoteca/ Esvazio uma garrafa e me sinto um pouco mais livre”). Durante as estrofes, o teclado de Mickey Gallagher surge sutil e ao mesmo tempo imponente, deixando Jones livre para suas recriações na guitarra. Ele não decide entre a base ou o solo e deixa o instrumento falar mais alto no primeiro solo de guitarra. E durante um lamento sobre a solidão (“Os garotos no pátio e os canos na parede/ Fazendo barulho como companhia”), Mick Jones batiza o grupo de humor canadense Kids in the Hall.

“Clampdown” é a vez de Strummer atacar o sistema. As três últimas músicas do lado B do disco são petardos pessoais contra o imperialismo vigente. “Lost in the Supermarket” usa da ironia e da inversão de valores; “Clampdown” é direta e didática; “Guns of Brixton” – de Paul Simonon – vê pelo ponto de vista do oprimido. A versão de Joe Strummer para a investida ideológica explica, sobre um punk tradicionalmente clashiano (baseado no ritmo e na seqüência de simples acordes), as principais regras do jogo, ao trabalhar para um patrão. “Você cresce e se acalma/ (…) E começa a vestir azul e marrom/ Então precisa de alguém para mandar/ Pra se sentir grande/ Você afunda até brutalizar/ Você acabou de matar pela primeira vez”. A agressividade marcial da canção ajuda a enfatizar a força das letras: “Deixe a fúria ter sua vez, raiva pode ser poder/ Você sabia que pode usá-la?”. Jones entra no meio da canção, invadindo com um trecho de uma música sua que não conseguiu sobreviver ao tempo, tornando-se coadjuvante de Strummer ali. Mas não fez por menos: “Vozes em sua cabeça estão dizendo/ ‘Pare de gastar seu tempo, nada vai acontecer/ Só um tolo acreditaria que alguém irá te salvar/ Os caras da fábrica estão velhos e gastos/ Você não tem nada a perder, por isso saia correndo/ São os melhores anos da sua vida que querem roubar”.

É claro que um conjunto pode se basear apenas no talento de uma só pessoa. Mas quando duas personalidades dividem o mesmo palco, uma tensão criativa emblemática é travada, gerando jóias perfeitas. A existência de um terceiro elemento nesta disputa, um ponto de equilíbrio entre os dois egos do grupo, é uma das características mais clássicas na história do rock. É só pensar em George Harrison nos Beatles, Sérgio Dias nos Mutantes, John Bonhan no Led Zeppelin, Keith Moon no Who, Sterling Morrison no Velvet Underground e por aí vai.

No Clash, este terceiro vértice era o baixista Paul Simonon. Enquanto Strummer se esforçava para transformar-se num bad boy à americana, Simonon era tudo que ele queria ser. Topete, olhar distante e ar de apatia que dava o tom blasé que Strummer incorporava, Paul era estudante de arte e morava nas ruas, um misto de James Dean com Dean Moriarty do punk. Tocar baixo numa banda punk era só mais uma das coisas que ele achou que podia fazer, mesmo sem nunca ter tocado um instrumento. Foi lá e conseguiu seu lugar. A ponto de compor sua primeira música no Clash em seu melhor álbum e transformá-la em um dos principais momentos do disco.

“Guns of Brixton” não tem meios-termos. “Quando chutarem sua porta da frente/ Como você vai sair?/ Com as mãos na cabeça/ Ou engatilhado?/ Quando a lei vier/ O que você vai fazer?/ Baleado na calçada/ Ou no corredor da morte?”. É um reggae fantasmagórico, que o usa o poder de hipnotismo do dub para juntar nuvens negras sob o disco. O baixo de Simonon é ostensivo e agressivo, como uma arma levantada em direção ao ouvinte, e combina com o vocal monocórdico e com sotaque rasta forçado. “Você pode nos esmagar/ Você pode nos pisar/ Mas terá que responderá/ Às armas de Brixton”, saúda a principal colônia jamaicana em Londres. Como “Within You Without You” no meio de Sgt. Pepper’s, “Guns of Brixton” tem um papel fundamental em London Calling: é ela quem dá o crédito de rua do grupo. Sem ela, London Calling soaria como a árvore genealógica do rock contada por analistas políticos. Com ela, o disco ganha de volta toda energia punk que abandonara a favor do rock’n’roll.

A eficácia de “Guns of Brixton” pode ser sentida na ordem das músicas a seguir. “Death or Glory”, um dos mais céticos e apaixonados hino ao rock’n’roll, seria a opção perfeita para abrir a segunda parte de um disco cujo nome de trabalho era The New Testament (O Novo Testamento). Mas invejosos do trunfo de Simonon, Strummer e Jones resolveram recomeçar com um reggae, para mostrar que também conseguiriam fazer aquilo (dariam a resposta na dobradinha “One More Time”/ “One More Dub” no álbum seguinte, Sandinista!).

“Wrong’Em Boyo” começa como uma balada punk (com teclados e sopros mágicos), descrevendo uma partida de pôquer entre Billy e Stagger Lee, até que o primeiro, percebendo que vai perder, anuncia mentalmente ao parceiro de mesa que vai roubar “Vou ter que deixar minha faca em suas costas”. “Vamos começar tudo de novo”, pára Strummer no meio da música, transformando-a num ska festivo. A letra é um sermão: “Por que você tenta roubar/ Passar por cima dos outros/ Você não sabe que é errado roubar aquele que tenta?/ É melhor parar, é onda errada” e o clima da canção transforma a aula numa pregação gospel nas ruas de Kingston, num dos melhores momentos caribenhos do grupo.

Sem esperar, “Death or Glory” entra com a base do refrão, para que o público possa cantá-lo antes da música efetivamente começar. Num belíssimo trabalho de guitarras, eles explicam a mitologia do rock’n’roll em uma frase: “morte ou glória torna-se apenas mais uma história”. Eles explicam a repetição da história e como esta acaba se justificando, despindo o rock de suas farsas: “Qualquer idiota cheio de trejeitos cavando ouro do rock’n’roll/ Pega o microfone e diz que morrerá antes de se vender/ Mas acredito nisto e foi confirmado em pesquisas: ‘Aquele que come freiras, mais tarde se junta à igreja’”. Jogando a fama no lixo, eles explicam qual é a deste sentimento chamado rock – “De todo porão sujo e de toda rua suja/ Ouço cada uma das palmas batidas sobre cada um dos ritmos/ É o ritmo do tempo, o ritmo que deve ir/ Se você tem tentado por anos, já ouvimos sua canção”.

“Death or Glory” é uma ode ao gênero maior que “Rock’n’Roll” do Led Zeppelin, “It’s Only Rock’n’Roll” dos Stones e talvez até que “Rock and Roll” do Velvet Underground. Ela varia tempos, abre espaços, cria cenários diferentes à medida que é executada praticamente sem sair do ritmo original, sempre tocado com vigor. Quando Strummer começa a improvisar, balbuciando que “vamos marchar um longo caminho/ vamos viajar por um bom tempo/ vamos viajar pelas montanhas/ vamos viajar sobre os mares”, ele parece um Winston Churchill do punk, só carisma e presença de espírito, clamando as tropas para uma luta que possivelmente não acabe nunca: “Vamos criar problemas, vamos criar o inferno!”, brada entusiasmado, antes da banda voltar ao refrão.

“Elevador, subindo”, sorri o mesmo Strummer no começo de “Koka-Kola”. Na mira do Clash agora está a cocaína, que, em 1979, era a droga da moda. Apesar de conhecer os efeitos nocivos da droga, o grupo não quer reprimi-la – apenas a usa como forma de ironizar da nascente nova classe dominante, jovens executivos engravatados que mandariam nos anos 80 achando que eram modernos porque usavam brincos e… cheiravam cocaína. “Nos corredores lustrosos do 51º andar/ Dinheiro pode ser feito se você quiser mais/ Decisão executiva – precisão clínica/ Pula da janela, cheio de indecisão/ Recebi uma boa nova do mundo da propaganda/ (…) Koka adiciona vida onde não existe/ Então, pare cara. Pare” – ele diz “so freeze man, freeze”, como se apontasse uma arma para o ouvinte.

“É a pauta que refresca nos corredores do poder/ Quando os altos cargos precisam de altas doses um pouco antes do happy hour/ Sua mala de pele de cobra, suas botas de couro de jacaré/ Você não precisa de lavanderia, mande-os pro veterinário”. Yuppies e publicitários, “seus olhos parecem bolas de pinball/ Sua língua fica igual um peixe”, eles acabariam com os anos 80. “Propaganda de Koka-Kola e kokaína/ Descendo pela Broadway na chuva/ A luz do neon diz isso”. A música aponta que a cocaína está onde poucos pensavam na época “Na Casa Branca, que eu sei/ Em Berlim (fazem há anos)/ e em Manhattan”.

“The Card Cheat” começa ao piano, uma baladaça anos 50 tocada com a força de uma banda punk. “Eis um solitário gritando: ‘Me segure’/ Só porque está só/ Se o senhor do tempo correr devagar/ Ele não continuará vivo por muito tempo/ Se ele ao menos tivesse tempo de dizer todas as coisas que planejou/ Com uma carta na manga, o que ele conseguiria?/ Não quer dizer nada”, ele canta novamente sobre uma mesa de cartas e a vontade de roubar o adversário cuja face “quebra com um sorriso/ quando ele baixa o rei de espadas”. Cantando como se realmente dependesse disto (em um de seus melhores vocais), Jones passa de apostador a soldado e chora a perda da amada: “Da guerra dos 100 anos à Criméia/ Com uma lança, um mosquete ou um dardo romano/ A todos os homens que enfrentaram sem medo/ A serviço do rei/ Antes de encontrar seu destino/ Certifique-se antes de desaparecer/ Sua amada pode não estar mais na volta”.

“Lover’s Rock” abre o último lado do disco num rock sossegadíssimo, respirando ares caribenhos para cantar o jeito certo de fazer amor: “Você deve tratar sua garota direito/ Se quiser fazer o lover’s rock/ Você deve saber onde beijar/ Se quiser fazer o lover’s rock”. A música prega a atenção às preliminares e uma visão menos machista do ato sexual, afinal “ela não precisa daquela coisa que ela tem que engolir”, canta Strummer para logo depois certificar-se “sabe do que eu tô falando?”. O final da música perde o apelo caliente para ganhar velocidade e ritmo.

Em “Four Horsemen” o grupo chega como quatro caubóis correndo contra a corrente. “Lhes deram todas as comidas da vaidade/ E todas as promessas de imortalidade/ Mas saíram correndo gritando ‘insanidade!’”. A própria formação do grupo é descrita, num misto de velho oeste, Easy Rider e sua própria história: “Um veio do abismo, o outro do penhasco/ Outro bebia todas com um enorme baseado/ Quando pegaram o carona, este não queria mais sair”. E perguntam ao ouvinte o quanto ele está envolvido: “Mas você, você não está procurando, está?/ Não está olhando pra lugar nenhum/ Nunca andará uma milha só/ Ou colocar a si mesmo em julgamento/ Você me disse que a sua vida está ruim/ Eu acredito, mas pra mim parece triste/ Mas esse é o preço a se pagar/ Por ficar de preguiça todo dia”. I’m Not Down, cantada por Jones e Strummer, é o cuspe na cara do torturador: “Fui espancado, jogado fora/ Mas não estou mal, não estou mal/ Fui exposto, mas cresci/ E não estou mal, não estou mal”. O rock de resistência termina com um desafio: “Você agita por aí e acha que é o mais durão no mundo, em todo mundo/ Mas você está ruas distante de onde fica realmente duro/ Você nunca foi lá”.

O disco termina com “Revolution Rock”, um reggae de celebração ao punk rock. “Todo mundo destrua as cadeiras e dance neste ritmo novo/ Esta música aqui abala nações/ Esta música aqui causa sensação/ Diga à sua mãe, diga ao seu pai/ Tudo vai ficar bem/ Você sente? Não o ignore/ Vai ficar legal”. O clima pra cima do ritmo jamaicano contrasta-se com o manifesto que é London Calling, mas é essa a mensagem: a revolução é uma festa, não é uma guerra – e o rock é o meio.

Escondida sem créditos, o boogie rock “Train in Vain”, gravada para o semanário NME, traz Mick Jones trazendo os conceitos políticos novamente para o nível pessoal. “Você disse que me amava e isso é um fato/ Agora me deixa, dizendo-se aprisionada/ Algumas coisas você pode explicar/ Mas meu coração ainda dói/ Você ficou ao meu lado?/ De jeito nenhum”. Com o coração partido, o marginal sofre da única coisa que realmente o fere. Românticos, o Clash entra para a história do rock como um dos grupos mais coesos de todos os tempos (ou “a única banda que importa”, como clamam seus fãs). London Calling é seu credo – segui-lo não é necessário. É inevitável.

1. London Calling
2. Brand New Cadillac
3. Jimmy Jazz
4. Hateful
5. Rudie Can’t Fail
6. Spanish Bombs
7. The Right Profile
8. Lost in the Supermarket
9. Clampdown
10. The Guns of Brixton
11. Wrong ‘Em Boyo
12. Death or Glory
13. Koka Kola
14. The Card Cheat
15. Lover’s Rock
16. Four Horsemen
17. I’m Not Down
18. Revolution Rock
19. Train in Vain (Stand by Me)

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