Clandestino – Manu Chao

, por Alexandre Matias

Tirando o finde pra resgatar txts…

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Existe um país que não está no mapa. Debaixo de marcas, nações, dinheiro, leis e qualquer espécie de censo, o povo deste país vive cada dia como uma nova luta, divertindo-se à medida que trabalha. Em botecos e barracas de camelô, carregando produtos nas costas e sentando-se no chão, esta população não conhece luxo, riqueza ou a possibilidade de crescer. Vive numa corda bamba, de costas para o capitalismo, que vêem como um câncer que tirou a energia vital da maioria das pessoas. O dinheiro fez com que as pessoas se distanciassem do cotidiano, sem conhecer seus vizinhos, presas em apartamento e tendo falsas experiências de vida através da televisão e dos computadores.

As pessoas deste país tenta driblar o destino como com um passo de dança, buscando a arte nas pequenas coisas da vida, a beleza no menor toque. Para estes de pele morena mais vale um amigo que um apresentador de talk show, uma tarde de conversas que um livro lido, o contato humano que a informação. Todos os povos que foram massacrados pelos brancos euro-americanos têm estes valores no centro de sua sociedade, como uma forma de resistência cultural. Índios americanos, latinos, africanos, hindus, árabes – povos que sobrevivem com seus rituais e danças, privilegiando o convívio e a comunidade ao isolamento amedrontado imposto pelo capitalismo europeu. O terceiro mundo é um grande país que vive uma era de medo e exploração que ameaça sua própria existência. Uma longa noite.

A metáfora é de Manu Chao, líder do falecido Manu Negra, em seu excelente primeiro disco solo. Clandestino – Esperando La Ultima Ola…. “Uma longa noite de 500 anos”, ele lamenta no disco. “Quando sairá o sol?”, espera ansiosamente. Transitando entre as culturas, os ritmos e os idiomas das diferentes faces deste país intercontinental, Manu é o traficante da liberdade. Atravessando fronteiras com o idealismo romântico de Che Guevara, ele prega aos quatro ventos sua versão dos fatos, como um Fox Mulder solitário dos trópicos, querendo expor a verdade a todo custo.

“Tudo é mentira neste mundo/ Tudo é mentira, é verdade”, segue cantando. Sim, é verdade. Escutamos a versão dos fatos e adotamos todos os padrões do povo que nos explora. Ele abre o disco comentando a sua situação perante olhos oficiais: “Correr é meu destino/ Para burlar a lei/ Perdido no coração da grande Babilônia/ Me chamam de clandestino porque não levo papéis”. Fugindo do braço da lei, ele explica outra reputação na segunda faixa, “Desaparecido”: “Me chamam de desaparecido/ Quando chegam, já fui/ Voando venho, voando vou/ (…) Quando me procuram não estou/ Quando me encontram não sou eu/ O que está a sua frente, porque saí correndo”. A constante fuga é seu destino de nômade andarilho: “Levo no corpo uma dor/ Que não me deixa respirar/ Levo no corpo uma culpa/ Que me faz sempre caminhar/ (…) Levo no corpo um motor/ Que está sempre a funcionar/ Levo na alma um caminho/ Que nunca vai chegar”. “Perdido no século vinte”, se pergunta, “quando chegarei?”.

Correndo de um lado pelo outro, ele canta em inglês, espanhol, português e francês, repetindo trechos de música no decorrer do próprio disco, misturando e convergendo ritmos e dando o mesmo recado – não há diferença entre os povos, todos são iguais. É o mesmo lamento, é a mesma canção, o mesmo pulso, o mesmo pesar, alegria e dor. A opressão apenas é mais um fator que nos une e Manu lamenta os “dias de lua” que vivemos, nessa noite que parece que não tem fim. “Acima a lua, vê!”, aponta em “Luna y Sol”, ao mesmo tempo em que espera o nascer de um sol que não vem.

Diferentes gêneros se encontram na música de Manu, sem distinção. House, rock, mariacchi, reggae, samba, funk, rumba, ju-ju, dub, calipso, rap, guarânia, mambo, salsa… Toda música de rua descende da mesma origem, é o que canta a alegre voz de Chao. Usando instrumentos convencionais (o violão é seu fiel companheiro de viagens), a música em Clandestino sai de todos os sons. Desde um insuportável chaveirinho made in Paraguai (aquele que faz ruídos de videogame) até o som do vento, a música ambiente é parte fundamental do disco. Transmissões de rádio (a internet deste país) e barulho de gente completam os espaços das músicas, nos colocando no meio de um grande e lotado mercado livre. A forma que ele utiliza as vozes das pessoas ganha especial destaque em faixas como “Por El Suelo (Esperando La Ultima Ola)” e “Lagrimas de Oro”, quando um insuportável locutor de FM em inglês e um narrador de jogo de futebol em rádio AM em português explodem suas vozes no lugar de um solo, transformando a voz humana num estranho mas eficaz instrumento. Todos obedecem a apenas uma regra: o ritmo. Ele faz as pessoas caminharem e a música fluir, faz a vida seguir seu rumo.

“Eu sou um rei sem coroa, passeando na grande cidade/ Porque eu sou o rei do bongô”, diverte-se no toast repente “Bongo Bong”, que metamorfoseia-se rapidamente na francesa “Je Ne T’Aime Plus”. Sua fluência rítmica é suficiente para comprovar sua vida de cigano moderno. Mas chegamos até “Minha Galera” e ouvimos passear pelo português brasileiro gingando gringo: “Minha maconha/ Minha torcida/ Minha querida/ Minha galera/ Minha cachoeira/ Minha menina/ Minha flamenga/ Minha capoeira/ Minha Valéria/ Minha maloca/ Minha larica/ Minha cachaça/ Minha cadeia/ Minha vagabunda/ Minha vida/ Minha mambembe/ Minha ladeira”. O cara passou uma bela temporada no Brasil e saiu daqui apaixonado. Como sai de qualquer país.

Afinal, esta é sua sina. Carregar a música e a cultura de um lado para o outro, trocar experiências e manter o mundo em contato com ele mesmo. “Passe este manifesto adiante”, diz o subcomandante Marcos, do Exército Zapatista, sampleado. Notícias são bobagens, o que importa é saber se o coração ainda está batendo. Manu Chao corre o planeta no ritmo deste pulso, avisando-nos que ainda estamos vivos. E ajuda a manter a pulsação.